Resumo

Se é verdadeiro que, no esporte, não há evento mais universal do que os Jogos Olímpicos, não é menos verdadeiro que, no Direito Desportivo, não há texto mais universal do que a Carta Olímpica.

A existência de regras já era fundamental aos Jogos Olímpicos da antiguidade, seja para estabelecer quem poderia participar ou estar presente nos Jogos, ou para governar a condução dos treinos e os detalhes técnicos das competições. A Trégua Olímpica já incluía a ideia de que, ao menos durante os Jogos, eram as regras e os princípios Olímpicos, fossem escritos ou não-escritos, que deveriam prevalecer.

As regras que governariam os Jogos Olímpicos da era moderna, entretanto, não eram uma prioridade para o Barão Pierre de Coubertin, de modo que somente em 1908, ou seja, 14 anos após a criação do Comitê Olímpico Internacional (COI) que regulamentos internos foram redigidos: o “Diretório do COI”. Ademais, eles meramente estabeleceram princípios básicos relativos à nomeação de membros do COI e a organização periódica dos Jogos. O Diretório não continha nenhuma provisão referente a seleção de cidades organizadoras ou critérios aplicáveis à inclusão de determinado esporte no Programa Olímpico.

O crescimento dos Jogos Olímpicos e do próprio COI obrigou uma evolução da utopia ao pragmatismo, com a emergência gradual da tão chamada Lei Olímpica, o ápice do que seria ocupado pela Carta Olímpica, o texto fundador e fonte fundamental da lei do COI. Essa já era a posição em 1924, embora a Carta Olímpica estivesse nessa época fragmentada em vários textos. Foi somente em 1978 que a Carta Olímpica foi compilada em um documento específico.

O conceito e o objetivo da Carta Olímpica é claro desde sua introdução, o qual assevera que seu propósito é “(…) a codificação dos Princípios Fundamentais do Olimpismo, Regras e Regulamentos adotados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Ela governa a organização, a ação e a operação do Movimento Olímpico, e estabelece as condições para a celebração dos Jogos Olímpicos.”

As funções da Carta Olímpica são essencialmente três: (i) é o documento básico fundamental do Movimento Olímpico, com um status legal, o qual se aproxima ao de uma constituição; (ii) ela define os direitos e obrigações das partes constituintes do Movimento Olímpico, com um status legal similar ao de um contrato; e (iii) é o documento fundamental do COI (ou seja, seus regulamentos que regem sua organização interna – composição; regras de filiação; órgãos de governança, etc.)

No que diz respeito à sua estrutura, a Carta Olímpica, vigente a partir de 7 de julho de 2007, atualmente contém 61 regras – as provisões substantivas. Essas 61 Regras devem ser lidas em conjunto com 31 regulamentos, os quais explicam ou comentam aquelas regras que possam gerar dificuldades ou que sejam particularmente concisas.

No que diz respeito ao seu conteúdo, a Carta Olímpica é um texto legal heterogêneo, que combina princípios gerais com regras mais técnicas e consagra tanto regras coercitivas com meros padrões de conduta. A Carta Olímpica é tanto compreensiva como complexa, consagrando poderes executivos (p. ex. o procedimento para a seleção de uma cidade organizadora dos Jogos); poderes legislativos (p. ex. os requisitos para alteração das regras) e poderes judiciais (p. ex. os mecanismos disciplinares relativos à violação da Carta, das regras e dos regulamentos). A Carta Olímpica foi redigida cuidadosamente, e presta muita atenção ao detalhe – nada escapa ao seu escopo, nem mesmo o Protocolo dos Jogos. É também válido notar que, apesar de alguma rigidez em seus procedimentos de emenda, o conteúdo da Carta Olímpica é dinâmico e tem evoluído através do tempo, como por exemplo a remoção do requisito do status de amadorismo e a adição de matérias subjetivas como o ambiente e “governança”.

É a força e a transcendência da Carta Olímpica sobre todo o universo desportivo (e além) que nós desejamos destacar neste texto. É de fato surpreendente que um documento emanado de uma corporação privada suíça tenha assumido todas as características de um tradado internacional!

A Carta Olímpica é um texto universal, não por causa de sua natureza legal mas, principalmente, devido a um aspecto extrajurídico – sua autoridade moral, baseada na significância social, econômica e esportiva dos Jogos Olímpicos. A Carta Olímpica obriga porque é voluntariamente aceita, ou reconhecida, por aqueles a quem ela é dirigida, e compreende uma comunidade ampla: indivíduos privados, organizações de vários tipos e outros (p. ex. Estados e federações desportivas internacionais).

Essa autoridade moral por si só explica porque um tribunal californiano expressou reservas ao aplicar uma lei estadual em relação à Carta Olímpica (1984), ou o fato que o Conselho de Ministros da União Europeia adotou legislação “(…) levando em consideração as obrigações emanadas da Carta Olímpica” (2003), ou o fato de que, na Turquia, a “Lei Olímpica” transpõe a Carta Olímpica na lei doméstica turca, ou o fato de que as leis básicas do esporte vigentes em países como Portugal, Espanha ou França, transpõe as regras relativas à proteção dos símbolos Olímpicos, os quais estão consagrados na Carta.

Ainda mais notável é o fato de que Estados são formalmente sujeitos à Lex Olympica e ao ius stipulandi do COI, ao se candidatarem para organizar os Jogos Olímpicos.

Nesse aspecto, duas decisões importantes do Tribunal Arbitral do Esporte em Lausanne (o qual também se encontra sob os auspícios do COI), são particularmente impressionantes. Elas proveem que a Carta Olímpica “(…) é hierarquicamente o corpo supremo de regras, que governa as atividades do COI” (julgamento de Beckie Scott, em 2003) no qual suas regras operam como um verdadeiro padrão de referência, o qual só pode ser derrogado de provisões mais restritivas (julgamento de Nabokov, em 2002). Os regulamentos das federações desportivas ou o Código Mundial Antidopagem são bons exemplos práticos deste princípio.

Resulta de tudo aquilo que precede que a Carta Olímpica é um instrumento legal atípico, mas também único, poderoso, universal e inspirador, tudo o que também pode ser dito dos Jogos Olímpicos…

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA:

Chappelet, Jean-Loup, Le Système olympique, Grenoble, PUG, 1991.

Latty, Frank, La lex sportiva : recherche sur le droit transnational, Leiden/Boston, Martinus Nijhoff Publishers, 2007.

Mascagni, Katia, Non state actors in international relations: the case of the International Olympic Committee (IOC), Lancaster University, Department of Politics and International relations, 1993.

Sapienza, Rosario, “Sullo status internazionale del Comitato Internazionale Olimpico”, Rivista di Diritto Sportivo, A. 49, n. 3, Luglio-Settembre 1997, Milano, Giuffrè Editore, pp. 407-415.

Tradução: Angelo Giacomini Ribas http://cev.org.br/qq/angelo-giacomini-ribas