Integra

Não é simples atribuir significado às coisas.

Primeiro é importante determinar o que entendo por coisas. Coisa pode ser qualquer objeto com existência concreta, como pode ser aquilo que não se nomeia, algo velho ou com pouco valor, aquilo que acontece, que se pensa. Pode ser ainda o que funciona como motivo ou incentivo, um bem, um mal-estar ou ainda a nomeação do demônio.

Coisa pode ser algo muito bom ou péssimo, ínfimo ou imenso. Denominar algo ou alguém de coisa deixa tudo no tamanho exato do que se quer descrever. Por outro lado, o ato de substituir todas essas definições pela palavra coisa pode denotar uma absoluta falta de habilidade com o uso das palavras ou do pensamento para expressar com exatidão o que se quer dizer.

Chamar alguém de Coisinha equivale quase a um sonoro palavrão porque destitui a identidade em forma de nome próprio do humano a quem se refere.

Lembro do tempo em que trabalhei com psico-oncologia e como muitos pacientes que se tratavam de um câncer se referiam à doença como “aquela coisa”. Tinham temor de nomear a moléstia como se aquilo produzisse um efeito multiplicador sobre o mal que ela poderia causar.

E vejo agora essa postura se multiplicar de forma exponencial com o covid-19. A negação primeira em admitir a letalidade da doença, aquela coisinha de nada, uma gripezinha, já leva a quase 2 mil mortes por dia, no Brasil.

Mas, a coisa não para por aí. Começamos mais uma fase vermelha na qual o nível de restrição deveria levar as pessoas a se aquietarem, evitando assim aglomerações e contatos que podem levar à contaminação. Entretanto, a quantidade de exceções abertas, os chamados serviços essenciais, é tamanha que me faz pensar que essa é mais uma atitude protocolar. 

A vida humana não pode ser tratada como uma coisa. E talvez essa seja a razão do caos que vivemos nesse momento. Coisificaram a saúde, a educação, as artes e, claro, o esporte.

Assisto todos os dias, com mais temor, ao crescimento do número de casos de atletas e técnicos contaminados. Minha perplexidade só aumenta com o silêncio das possíveis vítimas que agem como se não houvesse uma alternativa senão caminhar para o cadafalso. Fazendo de conta que é atividade essencial as competições esportivas seguem o calendário independentemente do risco aos atletas e comissões técnicas envolvidos. Curiosamente os museus e as casas de espetáculo deverão permanecer fechadas durante a fase vermelha.

Enquanto escrevo esse texto recebo a notícia do falecimento de mais um técnico de futebol e à contaminação de atletas que permanecem competindo. Não haverá ninguém capaz de enfrentar corajosamente essa situação e dizer: PARE TUDO?

Vida não é coisa. Vida é o bem mais precioso que alguém pode ter porque é por meio dela que a humanidade se materializa e evolui.

Volto a escrever que desejo assistir às competições esportivas tanto quanto desejo estar em uma sala de aula com dezenas de estudantes. Mas, esse momento ainda não chegou e devo lidar com a frustração que isso me causa da mesma forma que as crianças pequenas desejam guloseimas e brinquedos que não podem ter.

O não é pedagógico. A frustração retira o ser humano de um estágio de vida egocêntrico e o coloca na vida em sociedade. E assim coisas são nomeadas e ganham sentido.

Desejo do fundo do meu coração que as próximas semanas sirvam para reduzir a contaminação. Chega de banalizar a morte. Não existe reset para a vida de verdade. Clamo por ação e bom senso.