Integra

Os relatos de histórias de vida podem tanto afirmar o que já sabemos como dar pistas para a superação de um conflito, uma agonia, um incômodo. Esses "sintomas" surgidos quando passamos a ter certa consciência dos fatos ocorridos na vida parecem se aproximar do sentido de crise apresentado por Medina (1989). Para o autor a palavra "crise" tem muitos significados. Pode ser entendida no sentido popular como uma perturbação que provoca alteração dos fatos da vida, termos como crise econômica, política e existencial são alguns exemplos. Outro sentido para se pensar crise parte de uma base sociológica, trata-se de situação social influenciada por mudança de padrões e normas sociais, podendo ocorrer elaboração de novos hábitos por parte de determinado grupo. No entanto, para o autor, esse impulso direcionado a mudança ainda não seria suficiente para a substituição de uma nova visão. Isso somente seria possível no terceiro sentido apresentado, o médico-psicológico, que está relacionado com a percepção do sujeito no mundo. Esse último desencadearia, de fato, o processo de mudança na visão de mundo do sujeito. Os três sentidos de crise mencionados por Medina (1989) propõe uma revisão do termo, ao invés de pensá-lo como uma situação negativa para o sujeito, trata-se de uma possibilidade para se ampliar a consciência.

Abaixo seguem relatos da educação física vivida ao longo dos anos escolares por cinco alunos do curso de Educação Física da Faculdade Diadema-SP. Todos estão no primeiro ano e tiveram aulas de educação física escolar a partir da década de 1970. A maneira como percebem esta disciplina, com base na própria história de vida, dá elementos para discutir a crise iniciada no processo de formação docente. Um deles já trabalha com Educação Física em academia e relata como percebia sua atuação antes do ingresso no curso e como passou a percebe-la depois.

Os autores/atores e seus relatos de experência

Relato 1

"Tive uma Educação Física na década de 1970 voltada para o preparo de desfiles cívicos, aos esportes oficiais, exercícios que precisavam ser perfeitos. Uma Educação Física onde a exclusão era certa (os gordinhos, os menos capacitados fisicamente), não sabíamos porque tínhamos que fazer. Posteriormente, viu-se uma Educação Física mais "relaxada", onde os alunos definiam o que fazer ("vamos jogar futebol", "que tal uma queimada"), era opcional participar das aulas, e continuávamos com a exclusão e com a ignorância sobre o que faziam ou praticavam" (Maria Aparecida)

Relato 2

"Trabalho há algum tempo em uma empresa pública e comecei a me ocupar, após o expediente, com uma bicicleta que ganhei. Foi aí que surgiu a oportunidade de estar fazendo o curso de Educação Física, mas já pensando naquela Educação Física que tive no passado, onde só jogávamos bola, basquete, corríamos em volta da quadra (...)" (Flávio)

Relato 3

"O ensino da Educação Física Escolar ocorreu da seguinte maneira:

- Da 1ª à 4ª série a prática era mínima e quando acontecia era o que todos já sabem, dois times formados pelos próprios alunos e futebol o tempo todo. E, mesmo assim, fora dos horários de aulas, às vezes até fora do ambiente escolar, lembro-me que o futebol acontecia num terreno baldio que existia próximo da escola porque quem estudava de manhã fazia o futebol à tarde e vice-versa, a prática era assim.
- Da 4ª à 8ª série: acredito que não merece comentários, pois teria que repetir tudo o que escrevi, só acrescentaria que os alunos na grande maioria quatro anos mais velhos e menos motivados para a tal aula de Educação Física.

- Primeiro grau: realmente foi diferente, estudei no SENAI. Fiz o curso de Torneiro Mecânico com equivalência em primeiro grau. Naquela época, o ensino da Educação Física Escolar parte integrava o planejamento anual das disciplinas ensinadas. Também lá, na década de 1970, participei de torneios diversos. Foi a partir destas práticas que comecei a fazer corridas de fundos, as quais faço até hoje, por simples prazer de fazer e para me sentir vivo (...).

Decorridos algum tempo, voltei para os bancos escolares, agora casado, família constituída, voltei para cursar o segundo grau e novamente em curso profissionalizante "magistério". Passei pelo segundo grau, concluí, e sequer falei em Educação Física Escolar. Sei que havia um tempo destinado a ela, no planejamento, tinha até um professor, embora mais faltava do que trabalhava, mas tinha.

Formado, novamente fui para o mercado de trabalho, porém não durou muito. Por sorte consegui tornar-me funcionário público de outra secretaria.

Hoje, novamente estou nos bancos escolares, continuo casado, mais vivido, e ainda descrente com a situação polemizada desde o início da minha vida escolar. Todavia, hoje com um diferencial, estou numa faculdade particular, cursando exatamente "Licenciatura em Educação Física". Por que isso? Com certeza não será por acaso, e sim para poder intervir nesse processo que, no meu entendimento, e acredito ser também o dos meus colegas de curso, para podermos mudar esse quadro" (José Carlos)

Relato 4

"Para vivermos uma vida melhor passamos por várias crises que acabam proporcionando grande auxílio em nossas vidas e é por isso que considero importante passar por elas, porque só assim deixaremos de ser acomodados, e mais, foi assim que aconteceu comigo quando entrei na faculdade com o intuito de cursar Educação Física. Tinha uma visão do curso completamente do que hoje estou presenciando, já venci uma crise de desânimo, pensei até em desistir, pois ouvia críticas do curso e começei a pensar que o curso fosse algo sem importância, pelo simples fato de tanta acomodação que vi durante todo o tempo.

Hoje, compreendo melhor como a Educação Física é importante em nossas vidas. Quando cursei o Ensino Médio, não tinha este entendimento, talvez seja exatamente esta compreensão quem está me dando forças e me fazendo pensar e lutar por uma nova Educação Física, de renovação, de mudança etc.

Comparando épocas escolares anteriores, percebo grande diferença, pois quando eu as cursei, os alunos, em geral, tinham total liberdade e eles próprios administravam suas aulas. O professor se passava por mero assistente. Concluo, com isso, que há uma diferença entre as duas experiências: uma aula onde o professor adestrava seus alunos e outra, ele não sabia mais como gerenciar sua própria aula.

Partindo dessa premissa, percebo que a maior dificuldade destes profissionais é de passar para seus alunos o que realmente representa e qual o significado, que tem a Educação Física, agindo muitas vezes de forma errônea, pensando apenas em desenvolver o físico, esquecendo-se do seu psicológico e da cultura corporal de cada um" (Cibele).
Relato 5

"Antes de entrar no curso eu costumava exigir que todo mundo fizesse tudo igual, de forma mecanicista, todos do mesmo jeito, como o professor falava. Agora, acredito que a pessoa pode agir conforme a sua habilidade, não como se quer e sim do jeito dela. Isto é o ideal. Exigir de todos o mesmo movimento é complicado, pois cada um tem seu jeito, sua cultura, suas habilidades e não dá pra ser padronizado (o movimento)" (Simone).

Os sentidos da educação física vivida e a necessidade da crise

Os relatos sobre a vivência em aulas de educação física parecem apresentar três sentidos de aula: primeiramente aquela voltada para a aptidão física e para o aprendizado de técnicas e táticas dos esportes, em que as aulas eram direcionadas a atingir certa padronização de ritmos, gestos e expressão corporal, neste mesmo sentido segue o relato de aula ministrado pela aluna. Essa forma e conteúdo de aula possibilita pensar sobre a visão de corpo, ser humano, esporte e educação física presentes. Esse tipo de aula parece ser construída tendo como principal foco o desenvolvimento das capacidades e habilidades físicas dos sujeitos, o entendimento de corpo predominante parece estar voltado exclusivamente ao fator biológico. Se os alunos possuem corpos semelhantes do ponto-de-vista biológico, todos podem correr a mesma distância, repetir os mesmos gestos, saltar distâncias próximas, jogar de maneira cada vez mais eficiente por tentativa de repetição, enfim, esse tipo de aula procura tornar os sujeitos aptos e rentáveis e essas qualidades têm sido, historicamente, interesse de uma sociedade em processo de desenvolvimento industrial, tornando os sujeitos preparados para as atividades de trabalho e fortes e saudáveis para a defesa da pátria.

O segundo sentido parece estar próximo da idéia de uma educação física "esvaziada", em que a aula não é direcionada por objetivos específicos dessa área ou sequer planejada, sistematizada, organizada. É apenas uma "atividade", em que os alunos têm a possibilidade de reproduzir o que já aprenderam nos espaços não escolares. Grosso modo, poderíamos dizer que é uma não aula.

Contrário a esses dois anteriores, o terceiro sentido que podemos identificar nos relatos apresentados é o que para nós seria identificador da "crise", iniciada com o ingresso no ensino superior. É a obtenção da consciência dos significados da educação física vivida ao longo dos anos escolares e o processo de rompimento com esta referência. É justamente o incômodo causado pelo que foi a experiência anterior e a tentativa de reconstrução da mesma a partir de novos conceitos. Nesse sentido, parece estar aqui presente o sentido de crise que possibilita uma mudança na visão e percepção do sujeito no mundo. Para ocorrer, de fato, uma ruptura com a educação física nos moldes da experiência vivida, parece ser necessário que se passe pelo incômodo, perturbação, próximo do sentido popular de crise apontado por Medina (1989), provocando alterações nos fatos da vida. Mas não somente isso, que esse incômodo inicial seja parte de um mergulho no reconhecimento da relação do sujeito com o mundo, da consciência dos significados das ações humanas, do papel de professor, do que se ensinar, dos objetivos da educação física na escola.

Considerações finais

Apresentamos aqui algumas idéias sobre a necessidade da crise ser vivida no processo de formação docente a partir dos conceios propostos por Medina (1989). Esperamos que essas reflexões não se esgotem aqui, mas que contribuam para o debate na educação física e para a revisão de conceitos nos cursos de formação docente. Esses primeiros apontamentos são fruto do processo de construção dos autores/atores como professores de educação física e das discussões e leituras realizadas no Grupo de Estudos Educação Física, História e Cultura - FAD. Reconhecemos que o abalo está somente no início.

Os autores Ms. Adriano Mastrorosa e Ms. Cínthia Lopes da Silva são professores e os autores, e Cibele Silva Teixeira, Flávio dos Santos Silva, José Carlos Ribeiro, Maria Aparecida da Silva Catalano e Simone Maria Mendonça são acadêmicos em Educação Física da Faculdade de Diadema e todos membros do Grupo de Estudo Educação Física, História e Cultura - Faculdade Diadema.
Referência bibliográfica

  •  Medina, J.P.S. 1989. A educação física cuida do corpo e... "mente": bases para a renovação e transformação da educação física. Campinas: Papirus.