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  Algumas dificuldades na atuação com alunos surdos de 5ª à 8ª série do 1º grau, quando então a educação física se propõe a trabalhar o desporto, despertaram o interesse desta investigação.
Percebemos entre outras coisas que, embora executassem os gestos técnicos e praticassem o jogo dentro de suas regras, a maioria dos alunos não compreendia os conceitos envolvidos no jogo, nas regras, nem a nomenclatura específica, peculiar da educação física.
Observávamos também que, em geral, não estabeleciam uma estratégia para ganhar o jogo, não faziam uso do gesto técnico e da própria regra do jogo de forma estratégica. Por exemplo, num jogo de vôlei, não direcionavam a bola ao espaço "vazio da quadra", não lançavam a bola a um adversário menos habilidoso ou mal posicionado dificultando então a jogada, e assim o contra-ataque do time oponente. Logo, na maioria das vezes, o ponto ganho era por erro do adversário, e não porque foi estabelecida uma estratégia. Desta forma, ganhar o jogo era conseqüência de errar menos num contexto individual, e não fruto de uma atividade de fato coletiva.
  Ao depararmos com estas dificuldades compreendemos que aquele caminho, ou seja, ensinar os gestos técnicos e as regras dos jogos simplesmente, não nos levaria a ter o alcance que desejávamos. Entendemos que, a execução do gesto técnico com obediência à regra significava a mecanização, o adestramento do movimento dentro das restrições impostas pelas regras. O que desejávamos era a superação das situações impostas pelas regras com movimento intencional, significativo.
As dificuldades encontradas trouxeram questionamentos quanto à melhor forma de trabalhar com a Educação Física junto às crianças surdas. Considerando o fator maturação, partimos do pressuposto que, com crianças menores, encontraríamos melhores condições de produzir um trabalho que pudesse contribuir para sua organização biopsicosocial, não só auxiliando no processo de alfabetização mas, buscando a alfabetização da educação física.
  Com as crianças em classes de alfabetização, ficou claro que, as dificuldades encontradas centravam-se, basicamente, em dois fatores:
   1º) A ausência de um sistema simbólico que lhes permitisse a abstração dos conceitos.
Não havia um código simbólico comum, compartilhado entre professores e alunos.
Devemos, ainda, considerar que a maioria das crianças surdas é filha de pais ouvintes que não têm a língua de sinais e, quando chegam à escola, não convivem com o adulto surdo que poderá mediar a internalização de conceitos através da linguagem. Pois é assim que tudo começa para a criança, ou seja, através de suas relações é que a criança internaliza conceitos, constrói habilidades, etc., então, a ausência de um sistema simbólico comum a outros membros de sua comunidade é um impedimento para que se articulem socialmente através da mediação simbólica, comum às crianças ouvintes.


   2º) A ausência de estratégias específicas, adequadas às crianças surdas do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)

Pensando na criança como um indivíduo inserido em um determinado contexto sócio-histórico cultural, devemos estabelecer estratégias significativas, compatíveis ao seu nível de interesse, motivação, tendências, etc., e a partir disso então, intervir adequadamente no processo ensino-aprendizado, desenvolvimento, atendendo às suas demandas, possibilitando assim, a potencialidade de suas capacidades.
  Os alunos do INES, são surdos, moram no Rio de Janeiro e, na sua grande maioria, fazem parte da população sócio-econômica cultural desfavorecida. Por isso, e, por questões de discriminação, o INES será para muitas crianças o único espaço de acesso à educação física e, porque não dizer, talvez o único espaço onde possam compreender seu direito à cidadania.
  Nosso questionamento básico era: como faríamos com que as crianças surdas, que não tem esse sistema simbólico que é a fala, pudessem deduzir, estabelecer estratégias de jogo, para que de fato compreendessem e as superassem através das possibilidades de seu corpo/movimento e de atividades coletivas. Enfim, como faríamos para que internalizassem conceitos peculiares e específicos da educação física?
  Começamos então a utilizar um outro sistema de sinais que facilitasse progressivamente a aquisição desses conceitos, dessas habilidades, baseado na Teoria da Psicologia Sócio-Histórica-Cultural. Pois, esta nos forneceu os melhores caminhos para as questões que percebíamos na criança surda. A questão principal estava ligada à integração dela numa sociedade que compartilha de um sistema simbólico comum, organizado sócio-historicamente. Entendemos que as idéias, sobretudo de Vygotsky, seriam um caminho facilitador, mais do que isso, compreendemos a amplitude do desenvolvimento considerado por essa teoria como sendo um processo de construção onde acontece um entrelaçamento de influências biológicas e sócio-históricas culturais, e que esse processo de construção depende de um membro representante da cultura para que possa transmitir a essa criança modos de fazer humano.
  A partir desta perspectiva, o CORPO/MOVIMENTO se revela numa dimensão integradora do sujeito, e organizado socialmente.
É com movimento que nos relacionamos e descobrimos o nosso corpo, o corpo do outro, os objetos, o meio físico e o meio social. Enfim, o mundo que nos cerca e o "Eu".
  O corpo em movimento expressa as ações do sujeito no mundo, revelando em cada um, um arquiteto e sua cultura. E, a educação física através de diversas práticas, possibilita a organização da construção do movimento, não simplesmente um movimento em si mesmo, mas o movimento integrado, do sujeito único, ativo, criativo e interativo, inserido em determinado contexto sócio-histórico cultural. O movimento de cada um dos arquitetos da espécie humana construído a partir de referenciais culturais específicos.
O trabalho realizado no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), tem como população alvo, crianças em classes de alfabetização, 1ª e 2ª série do 1º grau.
  A 2ª série atual, participa desta proposta de trabalho há quatro anos, visto que, esta teve início em 1992 e, atualmente, compreende além das classes de Alfabetização, uma 1ª série e uma 2ª série. Contudo, em função do limite estabelecido pela Comissão do Evento, será apresentado parte do processo, aquela que se refere às crianças em classes de alfabetização, com faixa etária compreendida entre 6 e 10 anos.
  O fundamento básico do trabalho é o movimento corporal como fator de organização do desenvolvimento infantil.
  Através da internalização de conceitos peculiares, específicos à educação física, objetiva-se estimular a aquisição de habilidades motoras, cognitivas e afetivas, integradas e organizadas socialmente.
 II - Material e Método
 Nas atividades com as crianças, todos os materiais utilizados são de diferentes texturas, formas, tamanhos, pesos e cores.
 Também são utilizados os materiais habituais à prática da educação física, como: bolas, arcos, cordas, colchonetes, bastões, etc. Foram confeccionados materiais específicos, como: sacos de algodão, cartelas de nomes, verbos, etc, pregadores de roupa, tapetes, bolas de isopor, palitinhos coloridos, cartelas numeradas, cartelas das partes do corpo, figuras geométricas, tapetes com figuras geométricas coloridos, caixas de papelão coloridas, etc.
 O trabalho é baseado nos fundamentos teóricos da Teoria da Psicologia Sócio-histórica Cultural. Sobretudo das seguintes postulações teóricas de Vygotsky: A importância do sistema simbólico, a Zona de Desenvolvimento Proximal, a confecção de instrumentos, e o uso de signos intermediários para a aquisição de conceitos, a mediação/interação/intervenção do adulto e outras crianças no processo ensino-aprendizado, desenvolvimento (ação compartilhada).
 E, é estruturado a partir de um sistema misto e aberto de signos: as cores azul, amarela, verde e vermelha; os números de um a nove, e as formas geométricas , círculo, quadrado, triângulo e retângulo. Os elementos unitários deste sistema foram escolhidos por considerarmos que estes eram conhecidos pelas crianças.
 Esse sistema é aberto em função das várias significações que cada elemento pode assumir. Por exemplo, a cor vermelha pode ter vários significações para diversas atividades como parar, lançar, correr, etc, ou seja, existe um deslocamento da significação simbólica de cada elemento do sistema na dependência de um acordo prévio a cada atividade.
 As atividades se iniciam com o trabalho a partir do próprio corpo, e são o caminho para concatenar as etapas subsequentes de forma que a criança possa, a partir de um trabalho com o próprio corpo no concreto, chegar à abstração com o uso de signos intermediários. Desta forma, o planejamento proposto compreende unidades básicas interrelacionadas, podendo ter sua seqüência alterada para atender as especificidades de cada turma, que também determina o ritmo de cada unidade. Assim, as crianças de acordo com suas necessidades, definem dentro do planejamento básico proposto, seus próprio planejamento.
 Para que possamos chegar progressivamente aos jogos com regras e, aos jogos-tarefas, partimos necessariamente de atividades corporais orientadas, cujo objetivo é o conhecimento, a consciência de seu próprio corpo e uma auto imagem corporal positiva, a busca da aceitação e valorização de seu próprio corpo. Afinal, é a partir do referencial e do conhecimento do próprio corpo, que posteriormente se compreende as relações que esse corpo pode estabelecer com meio circundante.
 Em função das peculiaridades da criança surda, são utilizadas durante o desenvolvimento do planejamento, estratégias específicas, objetivando atender às suas demandas e desenvolver as potencialidades de cada indivíduo.
 III- Conclusão
 Para finalizar, ressaltamos que as dificuldades encontradas na nossa atuação com alunos de 5ª a 8ª séries, nos remeteu a conflitos e questionamentos em relação à prática da educação física na escola.
 Buscar novos caminhos e diferentes formas de atuação, significou antes de mais nada, entrar em contato com nosso próprio conflito: Quem somos nós, professores de educação física? Quais são os nossos objetivos na escola?
 Ansiosos por uma prática mais coerente, consciente, significativa, vislumbramos novas possibilidades de atuação, que não aquela de reproduzir modelos.
 Foi descortinando e aceitando a cada dia novos desafios, que superamos inúmeros preconceitos, muitas vezes existentes no próprio meio da educação física.
 Nossa proposta de trabalho nos revela a impossibilidade de continuarmos isolados e excluídos do contexto escolar, como bem diz Rosas:
"O movimento humano, enquanto instrumento de educação que busca a cidadania deixa de ser apenas físico para assumir um papel social e se integrar no todo escolar." ( ROSAS, A., in Virgolin/Alencar, 1994, p.149)

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