Integra

Trabalhar no PETI é um exercício diário de superação, é deparar-se continuamente com a injustiça social, com as privações. É vivenciar a realidade dos "esfarrapados do mundo" - como quer FREIRE - que até então eu só incorporava no exercício de minhas leituras.

As atividades pedagógicas são elaboradas em horário complementar à escola, visando a ampliação dos conteúdos culturais, lúdicos e informativos das crianças e adolescentes durante seu processo de desenvolvimento, através da oportunização de atividades artísticas, desportivas e/ou de "aprendizagem" (grifo meu). As tais "aprendizagens" referem-se a: reforço escolar, aulas de informática, línguas estrangeiras, educação para a cidadania, saúde e direitos humanos, educação ambiental e outros.

A integração das atividades junto às instituições escolares é realizada através de parcerias pedagógicas, assegurando o cumprimento dos dias letivos e horário estabelecidos, promovendo recuperação paralela dos alunos com menor rendimento e integrando a escola com as famílias e a comunidade. (MPAS - SECRETARIA DE ESTADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. CENTRO NACIONAL DE FORMAÇÃO COMUNITÁRIA, 2002.) As diretrizes que norteiam a área de Educação Física, e que se postam numa relação de complementaridade à escola, privilegiam os conteúdos da cultura corporal do movimento, objetivando principalmente, estreitar o "desenvolvimento da autonomia, da cooperação social e da afirmação de valores e princípios democráticos." (Caderno Pedagógico: jornada ampliada do PETI, 2002 ). E nesse convívio é construída a cidadania. (Ibid)

Minha atividade como "educador social" - denominação dada pelo projeto aos profissionais envolvidos com estas crianças - situa-se no Município de Belford Roxo, antigo distrito de Nova Iguaçu, nos bairros Xavante e Lote XV, às quartas e sextas, no horário de 08h:00 as 12h:00, onde atendo aproximadamente 40 crianças.

O polo Babi, localizado no bairro Xavante, compreende uma casa simples - área, cozinha, banheiros e varandas - e uma extensa área gramada que a margeia.

O polo Lote XV, localizado no bairro de mesmo nome, aloca-se no térreo de uma casa de dois pavimentos e compreende sala, copa, cozinha e banheiro. O que o distingue do Polo Babi, é que o espaço destinado às práticas físicas situa-se logo a frente da mesma - do outro lado da rua - na quadra de uma escola particular desativada, de estrutura física precária.

Ambos os polos carecem de instrumental adequado para a prática de atividades físicas. Material este, resumido em uma rede de voleibol, cordas e algumas bolas.

Público alvo

São crianças oriundas - em sua maioria - de famílias paupérrimas, desagregadas e sub-empregadas, muitas habitando em invasões e ou em regiões de intenso conflito social, parcial ou totalmente carentes das necessidades básicas de subsistência/sobrevivência.
Apresentam sérios distúrbios de comportamento, precário senso de coletividade e extrema violência. São indivíduos com vidas permeadas por todo o tipo de exclusão e privadas da ordem fundamental de convívio em sociedade: a cidadania.

A educação física com instrumento de intervenção:

Posto sim, a intervenção torna-se um exercício de superação; e, na ordem mesmo, de construir mecanismos concretos que dêem materialidade à transformação destes sujeitos, faz-se viável resgatar nestes indivíduos, os resquícios de suas apreensões culturais, pois, como afirma DAÓLIO: a cultura é a própria condição de existência do homem, exatamente aquilo que o diferencia de outros animais. (CARVALHO e RÚBIO (orgs.), 2001). E qualquer abordagem de educação que negue esta dinâmica cultural inerente à condição humana, (...) correrá o risco de o desumanizar. (Ibid)

Ciente destas responsabilidades, assumo que educação física incorpore estas prerrogativas, e questiono: O que fazer (como diria Freire), para que esta prática educativa transforme a vida destes sujeitos, que altere seu(s) estado(s) de consciência?
Que conceitos, conteúdos e métodos subsidiarão estes "fazeres"?

Partilho a idéia, de que a construção deste planejamento, deve privilegiar todas as vozes que partilham da vivência destes alunos, e que traduzidas e posteriormente compactadas em trajetória comum, forjarão e constituirão meta para uma futura atuação em consonância com sua(s) realidade(s). Pois, tenho comigo, que os espaços possíveis de intervenção, só ganham volume, na medida em que o singular dê visibilidade ao plural, onde se possa construir um planejamento participativo (...)

"em que todos, com seu saber próprio, com sua consciência, com sua adesão específica, organizam seus problemas, suas idéias, seus ideais, seu conhecimento da realidade, suas propostas e suas ações. Todos crescem juntos, transformam a realidade, criam o novo, em proveito de todos e com o trabalho coordenado." (GANDIM, 2000: 57)

Quando se assume que a Educação Física é eminentemente cultural, há de se considerar, primeiro, a história, a origem e o local daquele grupo específico e, depois, suas representações sociais, emolduradas pelas suas necessidades, seus valores e seus interesses. (CARVALHO e RÚBIO (orgs.), 2001) Já consciente do cotidiano destas crianças, necessitei dimensionar as ações práticas que caminhem juntas às minhas assunções político-pedagógicas. Neste sentido, encontro na tendência crítico-superadora de educação, subsídios que justificam minhas intencionalidades. Se busco - com a Educação Física - atitudes que explicitem minorar as condições opressivas das existências sociais destes indivíduos, concordo que meu agir (...) deverá estar vinculado à explicação da realidade social concreta e oferecer subsídios para a compreensão dos determinantes sócio-históricos do aluno, particularmente a sua condição de classe social. (COLETIVO DE AUTORES, 1992) Se consignatários dos ideais pedagógicos de Freire, somos tentados a engendrar aspectos políticos às nossas ações; e manifestar esta tendência, é ambicionar que os conteúdos educacionais estejam impregnados de valores que sejam intervenientes na vida destas pessoas, e que sejam gestados no calor de suas necessidades, conjugadas à um bem coletivo. Através deste panorama, o paradigma da cultura corporal desvelou-se como uma atitude possível.

Através de um pesquisa prévia com os alunos, identifiquei as práticas físicas comuns aos seus cotidianos, traduzindo o seu folclore, folguedo e regionalidade. A partir daí, de posse destes dados preliminares, procurei mediar nas aulas, atividades que partiam dos seus interesses e àquelas que eu entendia que podiam suscitar o gosto pela participação coletiva e solidariedade.

O fascínio pela competição expressa de sobremaneira as condutas corporais destas crianças, e o embate físico é o resultado comum de resolução de seus conflitos internos e/ou com o outro. Porém, seria demagogia senão puro cinismo, esperar que estes sujeitos, "órfãos de pais vivos", expressem o mínimo de sociabilidade, se no tempo do(s) seu(s) dia-a-dia, no cotidiano de suas vivências, não experimentam/experimentaram o gosto da cidadania.

Resolvi então, incorporar nos nossos encontros, os jogos cooperativos como instrumento de ação, desvinculando a competição dos jogos, multiplicando os "vencedores". Nas aulas, somente são possíveis de materialidade, as atividades que necessitam do outro para acontecer, redefinindo o papel dos sujeitos e refletindo sobre sua participação. No começo, a resistência foi grande, aumentando até as atitudes agressivas, pois o medo dificulta a cooperação, mas como nos sinaliza BROTTO, "sempre que sentimos que nossa segurança está ameaçada, tornamo-nos defensivos, hostis, agressivos." (BARBIERI e BITTAR (orgs.), 1996) Entendo que as carências que estes sujeitos experimentam já são suficientes para os oprimir, e não posso, com a Educação Física, potencializar a perda. Posto sim, utilizar os jogos cooperativos é acreditar que tais atividades, (...) eliminam o medo do fracasso e o sentimento de fracasso. Eles reforçam a confiança em si mesmo, como uma pessoa digna e de valor. (ORLICK citado por BROTTO, 1995)

No tempo presente - após 8 meses de intervenção - já experimento a colheita de resultados satisfatórios, e percebo que, apesar dos comportamentos agressivos ainda se cristalizarem em alguns momentos, suas manifestações já se fazem minorar sensivelmente.

Múltiplas são as possibilidades de intervenção, porém, o despertar do novo, somente ganha vida quando o compromisso for a principal meta dos educadores.

Espero sinceramente que as idéias lançadas aqui multipliquem-se em novos fazeres. Novos por contemplar a infinita capacidade dos homens em criar.

Referências bibliográficas

  •  Barbieri, Cesar Augustus S.; Bittar, Ari Fernando. (orgs). Esporte Educacional: uma proposta renovada. Recife: Universidade de Pernambuco/UPE-ESEF: MEE/INDESP, 1996.
  • Brotto, Fábio Otuzi. Jogos Cooperativos: se o importante é competir, o fundamental é cooperar. São Paulo: CEPE/USP, 1995.
  • Carvalho, Yeda Maria de; RUBIO, Kátia (orgs.). Educação Física e Ciências Humanas. São Paulo: Hucitec, 2001.
  • Coletivo de autores. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
  • Gandim, Danilo. A prática do Planejamento Participativo: na educação e em outras instituições, grupos e movimentos dos campos cultural, social, político, religioso e governamental. 8ª ed. Petrópolis. RJ: Vozes, 2000.
  • MPAS - secretaria de estado de assistência social. centro nacional de  formação comunitária. Fundação João Pinheiro. A gestão social e a política da assistência social para crianças e adolescentes: caderno do agente. Brasília: MEC, 2002.
  • MPAS - secretaria de estado de assistência social. Caderno Pedagógico: jornada ampliada do PETI. Brasília: MEC, 2002.