Integra

 A década de noventa assistiu, no Brasil, a uma efervescência de novas experiências no campo educacional. A preocupação com o fracasso e a evasão escolares, especialmente nas classes populares, constituiu-se como motivação principal para se criar novas formas de organização do trabalho pedagógico. Projetos político-pedagógicos implementados em diferentes partes do país preconizaram profundas mudanças na organização do tempo e do espaço escolares, na organização curricular, nas formas de avaliação, nas relações de trabalho entre professores e no trato com o conhecimento2. A forma tradicional3 de organização escolar, que pouco se alterou ao longo do século XX, foi posta em xeque em favor de práticas educativas que pretendem ser mais democráticas e socialmente inclusivas.


 Este contexto de mudanças instigou-me a curiosidade em relação a um aspecto que já atrai minha atenção há bastante tempo: o lugar ocupado pelas práticas corporais no processo de escolarização. O discurso que fundamenta as propostas pedagógicas consideradas inovadoras4 aponta para uma educação comprometida com a emancipação do sujeito e o pleno exercício da cidadania, compromisso esse que deve impregnar a atividade educativa desde a organização do tempo até a seleção de conteúdos a serem abordados. Aponta também para a construção de uma escola configurada como tempo/espaço de vivência cultural e de produção coletiva. Isso me leva a perguntar qual é o papel do corpo neste movimento de inovação pedagógica; e de forma especial, quais as relações que se estabelecem entre as práticas corporais que são desenvolvidas nas aulas de Educação Física e a construção de uma escola diferente dos moldes tradicionais.


 É a partir dessas questões básicas que pretendo desenvolver esta pesquisa, tendo como referência e terreno o Programa Escola Plural da Rede Municipal de Belo Horizonte, que será tomado como representante das experiências educacionais brasileiras consideradas inovadoras.


 O programa escola plural


 Desde 1994, quando foi lançado pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, o Programa Escola Plural vem convergindo olhares atentos de profissionais e pesquisadores ligados à educação. Esse interesse se justifica pelo fato de que o Programa propôs a instituição, nas escolas da Rede Municipal, de uma série de mudanças pedagógicas - muitas delas consideradas radicais - que detonaram um (já latente) processo de ruptura com as práticas tradicionais. A Escola Plural começa, então, a romper com antigas tradições escolares; com programas de conteúdos que atravessaram décadas; com o trabalho docente individualista e solitário; com formas consolidadas de avaliação; com a divisão do ensino em séries, bimestres e horas-aula tão familiares à cultura escolar. Provoca rupturas também nas rotinas e artimanhas do "ofício de aluno"5, demandando do estudante uma nova forma de se relacionar com a escola, com o conhecimento e com as recompensas e sanções.


 De acordo com o caderno "Escola Plural: Proposta Político-pedagógica" (BELO HORIZONTE,1994) - publicação que marcou o lançamento do projeto - a Escola Plural se propôs a "assumir a escola emergente" (p.4), pautando-se em práticas e experiências pedagógicas que vinham acontecendo em escolas da própria Rede.


 "A história das escolas da Rede Municipal de Educação é bastante rica em iniciativas pedagógicas. A partir de 1989, instituiu-se a prática de construção de projetos pedagógicos próprios de cada escola e, segundo muitos depoimentos, esses projetos foram os precursores da Escola Plural porque iniciaram uma nova cultura da escola, isto é, uma escola autônoma no gerenciamento do seu trabalho e na definição dos seus objetivos." (GAME, 2000, p.62)


 Entretanto, mesmo reconhecendo na Escola Plural herança de movimentos pedagógicos anteriores e influência de experiências de outros países (especialmente a Espanha), há que se considerar o contexto político-ideológico de sua implantação. A Escola Plural, assim como outras propostas educacionais com características semelhantes implantadas em diferentes locais como Porto Alegre, Ipatinga, Distrito Federal e Diadema, entre outros, faz parte do projeto político-social das administrações ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT). Uma análise dessas propostas, portanto, não deve ser feita sem considerar as características próprias das gestões administrativas em que elas foram implantadas. Deve-se levar em conta, inclusive, as tensões e conflitos de natureza político-ideológica que permeiam a implantação e a apropriação das propostas, tanto no nível "macro" como no "micro".


 Dentre os pilares do Projeto Escola Plural, destacam-se o estabelecimento de "eixos norteadores" da escola e a reorganização dos tempos escolares - onde a lógica seriada foi substituída pela introdução dos "ciclos de idade de formação".


 Os eixos norteadores da escola são um conjunto de princípios e orientações para a organização da atividade pedagógica. Eles contemplam, de forma especial, a importância da articulação da escola com a pluraridade de dimensões da formação humana. Chamam a atenção para o papel da escola como espaço de vivência, construção e expressão da cultura e ressaltam a necessidade de que o currículo se abra nesse sentido. Reconhecem, também, a necessidade da integração do "coletivo da escola" na construção de uma nova identidade dos sujeitos envolvidos. (BELO HORIZONTE, 1994)


 A organização por ciclos tem como principal objetivo dar mais flexibilidade ao tempo de aprendizagem dos alunos. Na medida em que os conteúdos e habilidades têm uma organização flexível dentro do ciclo, é dado ao aluno um tempo maior para aprender e é garantida a continuidade de seu desenvolvimento no ano seguinte, junto com os colegas. (BELO HORIZONTE, 1994).


 As experiências vividas no cotidiano das escolas da Rede Municipal têm revelado múltiplas formas de apropriação das idéias da Escola Plural. Embora o projeto tenha sido implantado em toda a Rede Municipal, a forma com que cada estabelecimento está se apropriando dele articula-se com uma enorme gama de características que vão desde a história de vida dos sujeitos envolvidos às relações da escola com a comunidade e com as instâncias administrativas da prefeitura. A recém-publicada pesquisa "Avaliação da Implementação do Projeto Político-Pedagógico escola Plural" (junho / 2000), realizada pelo GAME-UFMG6, trouxe à luz profundas dificuldades vividas durante o processo de implantação do projeto. Por outro lado, ressaltou também os avanços que têm ocorrido, especialmente no que diz respeito à progressiva incorporação, pelas escolas, de uma cultura que favorece o debate e a busca coletiva de soluções. Acredito que o momento atual, em que se procura avaliar, problematizar e buscar soluções para os problemas detectados na implantação da Escola Plural, convida a mergulhar no cotidiano dos estabelecimentos de ensino, buscando desvelar as práticas envolvidas na construção de um novo projeto de educação.


 A educação física na escola plural: um problema de pesquisa


 Como professora de Educação Física, minha curiosidade se dirige de forma especial aos rumos que esta disciplina tem tomado no atual contexto, quando estão sendo construídas novas formas de organização escolar. A disciplina Educação Física tem atravessado (em especial a partir da década de oitenta) um processo de reflexão e re-significação de seu papel na escola e creio que o contexto de uma experiência como a da Escola Plural seja propício para investigar os significados de corpo, movimento e da própria Educação Física enquanto componente curricular. Busca-se, dessa forma, revelar elementos que possam subsidiar reflexões, discussões e posicionamentos diante de novas formas de organizar o conhecimento na escola.


 O caderno Escola Plural: Proposta Político-pedagógica (SMED,1994), embora não trate especificamente da Educação Física, chama a atenção para a importância da questão do corpo na educação:


 "A educação dos corpos - não o seu adestramento e controle - merece maior atenção nos processos escolares. É uma das lacunas mais lamentáveis em nossa pedagogia. Recolocar o corpo na centralidade que ele tem na construção de nossa identidade e da totalidade da nossa cultura exige criatividade profissional de todos nós."


 Miguel ARROYO, um dos idealizadores da Escola Plural, afirma que dar ao corpo centralidade no processo educativo é uma tarefa fundamental da escola e desafia os profissionais da educação básica a buscar estratégias para recuperar a corporeidade como elemento da formação humana.7


 "Todo o sistema [da Escola Plural] está voltado para o aluno aprender saberes, crescer, desenvolver-se como sujeito sociocultural, na pluraridade de suas potencialidades humanas" (SMED,1996, p.3). Para Cláudia SOARES (2000), essa intenção se reflete no processo ensino-aprendizagem no sentido de uma extrapolação do âmbito da atividade intelectual (que recebe uma ênfase exacerbada no contexto escolar tradicional). A escola "passa a incluir outros aspectos, muitas vezes marginalizados na escola, tais como os processos corporais e manuais, os processos socializantes, a vivência cultural e a estética" (p.25)


 Diante do que foi exposto acima, sou levada a levantar a hipótese de que o contexto das propostas inovadoras de educação (mais precisamente a Escola Plural, no caso deste estudo) favorece, de diferentes formas, a abertura da escola para um maior envolvimento do corpo e do movimento no processo educativo, não mais no sentido de conformação, mas numa perspectiva de valorização do movimento como criatividade e expressão da cultura.


 A partir dessa hipótese, proponho-me a investigar o papel que a Educação Física - componente curricular que tem como objeto a cultura corporal8 - está desempenhando nos estabelecimentos de ensino que aderiram à Escola Plural, e as maneiras pelas quais a disciplina está se apropriando do processo de transformação promovido pelo programa. Isto supõe mergulhar no cotidiano da escola, buscando desvelar as concepções e práticas que orientam a Educação Física nesse novo contexto (da Escola Plural) e investigar as relações que se estabelecem entre a disciplina, as novas formas de organizar a escola e a vivência da cultura corporal no processo educativo.


 Embora o foco principal do estudo seja dirigido para a Educação Física, procurarei desvelar os sentidos e significados que envolvem o movimentar-se na escola, nos diversos "tempos e espaços" escolares. Isso é fundamental para ampliar a compreensão do papel que o movimento representa dentro do estabelecimento escolar.


 Diante da singularidade de cada estabelecimento escolar na apropriação dos princípios da Escola Plural, deparei-me com a impossibilidade de generalização das repercussões do programa nas escolas e do próprio conceito "Plural". Optei, portanto, por um estudo de caso, que está sendo realizado em uma escola da Rede Municipal que apresenta forte adesão aos princípios e orientações da Escola Plural. A especificidade do caso é, nessa perspectiva, um elemento fundamental, na medida em que fornece a característica metodológica que se necessita, ou seja, a sua novidade, o fato dele ser especial é que interessa (ROESE, 1998, p.192).


 A observação participante é o principal instrumento de coleta de dados utilizado neste estudo, que contará ainda com entrevistas e análise de documentos (em especial as publicações da Escola Plural e os registros dos projetos realizados na escola pesquisada) como instrumentos complementares.


 Notas:


1 Este texto é a síntese do meu projeto de pesquisa de mestrado, aprovado pelo colegiado do Programa de Pós- Graduação Faculdade de Educação da UFMG, sob orientação da Professora Maria Alice Nogueira.


 2. Refiro-me, em especial, às propostas que foram implementadas em administrações do Partido dos Trabalhadores durante a década de noventa.


 3. A organização "tradicional" da escola é entendida aqui como aquela que apresenta, grosso modo, as seguintes características: lógica cumulativa e transmissiva no trato com o conhecimento, divisão por séries, avaliação quantitativa, reprovação, compartimentalização rígida do currículo em disciplinas.


 4. Apesar de sua complexidade e de seu uso muitas vezes polêmico, o termo "propostas inovadoras" será usado aqui para designar as propostas político-pedagógicas que apresentam mudanças significativas na organização do trabalho pedagógico e no trato com o conhecimento, como é o caso da Escola Plural.


 5. Expressão usada por Philippe Perrenoud (1995)


 6. GAME - Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da FaE / UFMG, que realizou esta pesquisa com financiamento da Prefeitura de Belo Horizonte e da Fundação Ford.


 7. Anotações feitas durante fala do Prof. Miguel ARROYO na 23a Reunião anual da Anped (Caxambu, 2000)


 8. Ver Coletivo de Autores, 1992.


 Obs.
A autora é mestranda em Educação pela FaE/ UFMG e professora da Faculdade de Educação Física da Universidade de Itaúna


 Referências bibliográficas


 Arroyo, Miguel G. Experiências de inovação educativa: o currículo na prática da escola. In: MOREIRA, Antônio Flávio (org.). Currículo: políticas e práticas. Campinas- SP: Papirus, 1999.
Belo Horizonte, prefeitura municipal. Escola Plural; Proposta Político-pedagógica. Belo Horizonte: PBH / SMED, out. 1994.
Coletivo de  autores. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
Forquin, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria e Educação, no 5, p. 28-49, 1992
Game. Avaliação da implantação do projeto político-pedagógico Escola Plural. Belo Horizonte: UFMG / FaE, GAME, 2000.
Perenoud, Phillippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995 .
Roese, Mauro. A metodologia do estudo de caso. Cadernos de Sociologia. Porto Alegre, v.9, p.189-200, 1998.
Soares, Cláudia Caldeira. Construindo a Escola Plural: a apropriação da Escola Plural por docentes de terceiro ciclo do Ensino Fundamental. Belo Horizonte: FaE/ UFMG, 2000. Dissertação de Mestrado em Educação.