Integra

   Nestas férias de verão, no litoral norte do estado de São Paulo, passei defronte a uma instalação de lazer/esporte em certa cidade do litoral norte do estado de São Paulo. No primeiro plano, uma pista de skate, com sua característica sinuosidade, pintada com cores vibrantes. Ao fundo, uma quadra poliesportiva, coberta e cercada por grades, portões fechados com cadeado. Tudo muito bem cuidado. Pena que não fotografei. Mas indaguei a mim mesmo, e compartilho a indagação com o/a leitor/a: qual espaço mais atrairia s crianças e jovens, a pista de skate ou a quadra de esportes (coletivos)? A primeira, livre de barreiras, colorida; ou asegunda, e ncaixotada entre telas de arame, fechada a chave?Esta i magem inspirou-me a reflexão que se segue.
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Nesses tempos de fatos trágicos e tragicômicos, soa banal falar de Educação Física escolar. Afinal, aula de Educação Física tem a ver com alegria, diversão, sociabilidade, respeito mútuo, afetividades, inclusão... Conflitos também, mas uma boa abordagem didático-pedagógica pode transformá-los em oportunidades de educação rumo a patamares civilizatórios mais elevados. Tudo exatamente no que parece marchar para trás a sociedade brasileira em termos de valores proclamados e de práticas concretas. Mas já disse certa vez que a educação (não apenas a escolar) é a primeira e a última trincheira de toda luta e transformação social; por isso nós, educadores profissionais, temos que prosseguir.

Valendo-me desta metáfora, penso que nossas "trincheiras" estão mal posicionadas e nossas "armas" são ultrapassadas. Em 2007 publiquei artigo [1] em que afirmei que a Educação Física precisava deslocar-se do culturalismo para "o que está além e aquém da cultura". Trata-se de uma argumentação de base fenomenológica e semiótica que não vou reproduzir aqui, dado o espaço/tempo que exigiria. Disse à ocasião que a abordagem culturalista da Educação Física escolar brasileira (que se iniciou em meados da década de 1980), não tinha ainda realizado todas as suas potencialidades. Hoje, sou mais contundente: a abordagem culturalista está esgotada. Assim, talvez seja melhor falar não em reposicionamento das trincheiras, mas em sair da trincheira culturalista para o campo aberto, de peito aberto, correndo os riscos inerentes. Estamos no Brasil, entendo eu, em um ponto de inflexão, na cultura, na política, na economia,nos costumes, em um processo que se iniciou há cerca de 20 anos. Não seria nem será  escolar ou na Educação Física como um todo, queiramos ou não, gostemos ou não... Já disse o pai da Sociologia moderna, E. Durkheim, que as instituições sociais são dotadas de inércia. Em outras palavras, continuam a existir mesmo quando sua função social está esgotada. Agora é a hora da Educação Física escolar, com um pé no passado e outro no presente, lançar-se ao futuro (que nunca pode ser totalmente previsto), não em linha reta, o que seria mera continuidade, mas obliquamente, na diagonal.

A continuidade é insistir nas dicotomias: natureza x cultura; teoria x prática; ciências humanas x ciências biológicas etc.. A obliquidade é a imbricação das significações que aparentam ser opostas, mas que não as são necessariamente nas experiências dos sujeitos-que-se-movimentam. Educação Física é saúde E educação, não saúde OU educação. É preciso atentar à experiência vívida e vivida dos sujeitos "em situação de movimento" (BETTI; GOMES DA SILVA, no prelo) [2], não apenas nas estruturas e conceitos abstratos dos conteúdos e suas taxionomias. Será preciso incluir, não excluir abordagens teórico-metodológicas, com a humildade de reconhecer os limites de cada uma. Será preciso abrir espaço à Psicanálise, à Neurociência e à Semiótica (dentre outras novas frentes do conhecimento) para não continuarmos a andar em círculos.

Temos então uma Educação Física acabada e uma inacabada. Quem irá prosseguir? Sou pessimista por um lado, pois não acredito que o aparato científico-burocrático do sistema de pós-graduação em Educação Física seja capaz de realizar este desentrincheiramento e esta mudança de direção. Mas sou otimista por outro, pois já percebo indícios de deslocamento diagonal fora das trincheiras, em alguns escritos e falas de pouc*s professor*s universitári*s inquiet*s, que apresentam teorias e proposições marginais (que dizer, à margem, nas beiradas, sem holofotes e prestígio...), que forçam a inclinação da linha reta para a diagonalidade. Não vou elencar ess*s colegas aqui, talvez o faça em outra oportunidade. Quiça el*s façam a referida inflexão, corram riscos e se lancem às diagonais do futuro, ao lado de tant*s professor*s da educação básica que são críticos, criativos, cultos, compromissados e corajosos (todas palavras coincidentemente iniciadas pela letra "c") que militam na educação básica - embora proporcionalmente sejam poucos.

Somente um* professor* dotado de todos estes "Cs" poderá compreender porque crianças e jovens estão preferindo as pistas de skate (e outros espaços e práticas similares) às aulas de Educação Física. É o que tenho percebido no meu entorno. Talvez, se conseguirem compreender esse fenômeno, est*s professor*s (novos atores em campo) consigam também animar, "dar vida" (do latim "anima"=alma; princípio da vida) àquela gaiola da cidade litorânea do estado de SP. Por isso sou um "otimista cauteloso" quanto à Educação Física escolar: um novo ciclo só pode iniciar-se quando acaba o anterior. Acabou um, o novo ainda mal se inicia.

(Bauru, 18 fev. 2019)

NOTAS

[1] BETTI, M. Educação física e cultura corporal de movimento: uma perspectiva
fenomenológica e semiótica. Revista da Educação Física/UEM, v. 18, n.2, p. 207-217, dez 2007.
Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/3277/2343

[2] BETTI, M.: GOMES-DA-SILVA, P. Corporeidade, jogo, linguagem: a Educação Física nos anosiniciais do ensino fundamental. São Paulo: Cortez, no prelo.