Integra

 Este trabalho faz parte de uma pesquisa que investiga a cultura escolar do Imperial Collegio de Pedro Segundo, instituição de ensino secundário fundada na cidade do Rio de Janeiro em 2 de dezembro de 1837.


 No presente texto, reflito sobre o processo inicial de escolarização do que hoje conhecemos como Educação Física no CPII, ocorrido no início da década de 40 oitocentista, especificamente discutindo as seguintes questões: (a) qual a formação e quem eram os responsáveis pelas primeiras aulas de exercicios gymnasticos no CPII?; e (b) que representações e justificativas cercaram sua introdução na instituição?


 2. O Imperial Collegio de Pedro Segundo:


 O Imperial Collegio de Pedro Segundo1 (CPII), hoje conhecido como Colégio Pedro II, tem um lugar importante na história da educação brasileira, particularmente quando se trata do ensino secundário. Nesta área, vários são os trabalhos, como por exemplo o de Maria de Lourdes Mariotto Haidar (1972), que consideram a história do CPII como quase que a própria história do ensino secundário no Brasil, especialmente no período monárquico.


 Na pesquisa, sustento que a fundação do CPII esteve atrelada a dois aspectos: [1] ele serviu como uns dos elementos simbólicos restauradores da figura do Imperador nos anos próximos e posteriores a Maioridade; e [2] foi projetado para, no âmbito da instrução secundária, dar formação e coesão a parte da elite imperial, atuando como peça importante no projeto de civilização da sociedade brasileira implementado pelos dirigentes Saquaremas (MATTOS, 1999).


 O CPII, colégio projetado nos moldes europeus, veio reunir em um só estabelecimento de ensino as diversas cadeiras avulsas que até então eram oferecidas isoladamente na Corte e que compunham a instrução secundária naquele momento, fundando um modelo diferenciado. Oferecendo o título de Bacharel em Letras, ele garantia aos seus alunos o acesso às academias de ensino superior.


 O CPII foi criado para servir como um padrão aos demais estabelecimentos de ensino secundário do Rio de Janeiro e das demais províncias. Além de espaço formador de parte da elite imperial, o CPII representava a tentativa do governo organizar e dar direção à instrução secundária. Segundo Ariclê Vechia e Karl Michael Lorenz (1998), os programas de ensino do CPII exerceram influência, ainda que de forma indireta, sobre os estabelecimentos brasileiros de ensino secundário até os primeiros anos da República. Os demais colégios eram incentivados a adequar seus currículos aos do CPII, principalmente a partir de 1854, quando os exames preparatórios passaram a ser realizados em conformidade com os programas desta instituição.


3. A gymnastica no Imperial Collegio de Pedro Segundo:


 No Brasil, durante o século XIX percebemos uma heterogeneidade nos termos que fazem referência ao que hoje entendemos por Educação Física, ou seja, aquele tempo no interior da escola dedicado à pedagogização das diversas atividades corporais. A expressão educação physica aparece mais regularmente neste período no sentido empregado por Herbert Spencer que, como sustenta Fernanda Lopes de Paiva (2001), diz respeito aos quatro assuntos que lhe parecem fundamentais a esse respeito: a alimentação, o vestuário, o exercício corporal e a degenerescência física. É portanto um conceito mais alargado que não se refere propriamente a uma disciplina escolar.


 A historiografia da Educação Física brasileira parece concordar que durante o século XIX o termo mais próximo da realidade do que possuímos hoje, seria a gymnastica. Um tempo destinado no espaço escolar para a tematização de atividades corporais diversas.
Estudar a gymnastica no CPII pode significar investigar o início do processo de escolarização da Educação Física no Brasil, já que o colégio, pelo menos a partir de 1841, apresenta em seu currículo os chamados exercicios gymnasticos.


 Como dissemos anteriormente, o CPII é fundado em 2 de dezembro de 1837. No entanto, seu funcionamento ocorre a partir do dia 25 de março de 1838, dia de abertura das aulas. As informações até agora reunidas por mim e outros pesquisadores levam a considerar que a gymnastica toma parte do programa/currículo da instituição no ano de 1841. No entanto, Escragnolle Doria (1997) fazendo alusão aos primeiros acontecimentos do ano de 1838, cita ofício do primeiro reitor do CPII, Antônio de Arrábida, enviado para o Ministro do Império em 27 de maio de 1838, que fala, dentre outras coisas, de algumas irregularidades acontecidas nos primeiros dias de aula, "sobretudo na aula de Ginástica, e na de Latim, nesta por falta de compêndio" (p.35). Assim, poderia supor que a gymnastica estivesse contemplada desde a fundação do CPII, o que não afirmo diante da ausência de outras fontes mais seguras.


 Pesquisando o conjunto dos ofícios e requerimentos expedidos pelos primeiros reitores do CPII2, encontrei documentos que me levam a referendar a posição de que seria mesmo no ano de 1841 que a gymnastica teve sua entrada no colégio. Pelo ofício de Joaquim Caetano da Silva (Reitor) para Candido José de Araujo Viana (Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império), expedido em 21 de setembro de 1841, é comunicada a contratação de Guilherme Luiz de Taube como Mestre de Gymnastica do CPII3.


 "Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. que hontem, segunda feira, 20 de Setembro corrente, ás cinco horas da tarde, entrou em exercicio o Mestre de Gymnastica que S.M. O Imperador houve por bem conceder a estte Collegio por Decreto de dia 11"
Guilherme Luiz de Taube era brasileiro e ex-capitão do Exército Imperial. Por carta cuja assinatura não consegui identificar fielmente4, anexa ao ofício de Joaquim Caetano da Silva para Candido Viana em 9 de junho de 1841, solicitando a nomeação do Mestre de Gymnastica no CPII, podemos perceber em que circunstâncias esta se deu:
"Senhor


 Aos pés do Throno Imperial de V. M. vém submissasse o cidadão Brasileiro, ex-Capitão do Exercito Imperial por Decreto de 24 de Novembro de 1830, supplicar uma graça. O Supple. é casado no Brasil, tém uma numerosissima familia, e vive na maior miseria, que se pode imaginar. Já a Camara dos Senhes. Deputados Geraés approvão uma resolução em posse do Suppe. auctorisando o Governo á emprega-lo, e sendo ella enviada p.a o Senado, este ramo do Poder Legislativo remetteu-a pa o Governo Imperial em 1837, submettendo á V.M p.a tomar a providencia, que julgásse conveniente, e até agora nem-uma tém sido tomada: o estado de miseria do Supp.e o tem obrigádo a andar ora a servir de feitor, ora de caixeiro, ora á empregar-se em todos os officios. N’este estádo vém elle offerecer-se a V.M.I. p.a para introduzir e ensinar no Collegio, que tomou o glorioso nome de V.M., exercicios gymnasticos aos estudantes. Estes exercicios são reccommendados pela Revista Medica como meios de utilidade para a mocidade: estes exercicios são adoptados e todos os Collegios e Lyceos da Europa, como meios de desenvolver as forças do corpo, e tambem as d’alma. É um meio, que ao Supp.e resta p.a viver, e manter-se; é o pão que pede a V.M.I. para sua infeliz familia, e V.M.I. se dignará acolher seus queixaimes"


 Assegurar um emprego no CPII era objetivo de muitos naquele período5. Assim, tal carta pode mesmo honestamente revelar a difícil situação econômica que Taube se encontrava, assim como pode fazer desta uma estratégia para seduzir o Imperador a aprovar sua admissão.


 Notemos também que o reitor faz alusão a um periódico - Revista Medica - como referência para sustentar a introdução dos exercicios gymnasticos no CPII, prática comum em todos os "Collegios e Lyceos da Europa, como meios de desenvolver as forças do corpo, e tambem as d’alma".


 Joaquim Caetano da Silva ressalta em seus ofícios que solicitam e defendem a contração do Mestre de Gymnastica a importância dos exercicios gymnasticos. Ele pondera sobre "o quanto seria precioso para o mesmo Collegio a instituição de semelhantes exercicios" (Ofício de Joaquim Caetano da Silva para Candido Viana em 13 de agosto de 1841) e afirma que


 "sendo universalmente reconhecida a immensa importancia d’estes exercicios, só me faltava certificar-me da aptidão do supplicante; e havendo-me hoje mesmo convencido d’ella por documentos irrefragaveis, a V. Exa. declaro com a maior satisfação que, deferindo benigmamente a este requerimento, parece-me que fará V. Exa. ao Collegio de Pedro Segundo hum serviço que cobrirá de bençãos o ministerio de V. Exa." (ofício de 9 de junho de 1841)


 Segundo Joaquim Caetano da Silva, a introdução dos exercicios gymnasticos seria além de tudo um prêmio:


 "agora que os Estudantes de Pedro Segundo estudão realmente com huma pontualidade que os torna dignos de muita consideração, encarecidamente supplico a V. Exa. queira conceder-lhes hum conforto de que mais que uma precisão" (Ofício de Joaquim Caetano da Silva para Candido Viana em 13 de agosto de 1841).


 Os ofícios de Joaquim Caetano da Silva nos permitem avançar ainda mais nas reflexões. Assim, em 3 de setembro de 1841, ele propõe a Candido Viana:


 "Em observancia ao Aviso de 21 de Agosto proximo passado, em que V. Exa. me ordena que informe qual será o ordenado que convem consignar ao Instructor de Gymnastica de que precisa este Collegio: tenho a honra de propôr o ordenado annual de quatrocentos mil reis, obrigando-se elle a dar em cada semana sete horas de exercicio, a saber duas na quinta feira, e huma em cada hum dos cinco dias de aula. E, aproveitando a ocasião, abalanço-me (?) a representar a V. Exa. a conveniencia de não se dar ao Gymnasta o titulo de Professor, pela razão de concederem os Estatutos a todos os Professores, não sei se acertadamente, o direito de serem juizes de todas as doutrinas nos exames geraes"


 Pelo ofício podemos inferir que os alunos do CPII tinham a prática da gymnastica diariamente na instituição. Ele também nos aproxima de algumas das representações sobre os responsáveis pela gymnastica, estes que por lidarem com uma atividade prática eram denominado mestres e não poderiam obter o título de professor.


 Quanto aos vencimentos de Taube, saliento que com relação a professores e mestres de outras cadeiras do CPII, parece que ele recebia uma quantia maior. Pelo menos é o que considera Joaquim Caetano da Silva em ofício de 25 de março de 1843 para José Antonio da Silva Maya, já que nos


 "oito mezes e meio, que serviu, rendêrão-lhe 403/300, mais do que lhe seria devido por hum anno inteiro, mais do que pagou o Collegio, pelo mesmo espaço de oito mezes e meio, aos Professores de Inglez, Francez, Dezenho e Musica, todos antigos na casa, e todos pressionados com muito mais trabalho que o Mestre de Gymnastica".


 Pelo que pude apreender dos ofícios e outras fontes, a gymnastica era uma prática desejada e relevante, pelo menos para o reitor Joaquim Silva, e uma dificuldade naquele momento estava na oferta de pessoas habilitadas a ministrar tal arte. É o que ele cita quando da saída de Taube do CPII:


 "Não sendo facil achar hum bom Mestre de Gymnastica, e correndo os alumnos continuo risco, se elle sahir maó; com o mais profundo respeito tenho a honra de lembrar a V. Exc. a conveniencia de substituir-lhe hum Mestre de Dança" (Joaquim Caetano da Silva para José Antonio da Silva Maya em 15 de junho de 1843).


 Concluindo, saliento que: (1) ) havia uma escassez de profissionais da gymnastica, sendo os primeiros mestres do CPII de origem militar6; (2) a prática da gymnastica nas escolas já era reconhecida e defendida, sendo que as justificativas para sua introdução no CPII vinham de sua importância higiênica, de sua presença em colégios europeus e até de uma possível dimensão lúdica.


Obs.
O autor, prof. Ms. Carlos Fernando Ferreira da Cunha Junior é professor da UFJF.


Notas:

 1. Denominação do Colégio Pedro II na época do período monárquico.


 2. Os ofícios e requerimentos podem ser encontrados no Arquivo Nacional.


 3. A nomeação de Taube é oficializada por Decreto de 11/09/1841.


 4. Supomos que a assinatura seja de Bernardo Pereira de Vasconcelos.


 5. A seção de manuscritos da Biblioteca Nacional reúne um número elevado de solicitações de indivíduos solicitando inúmeros cargos no CPII.


6. O mesmo pode ser inferido analisando a formação dos mestres de gymnastica do CPII ao longo da década de 40.


 Referências bibliográficas


Doria, Escragnolle. Memória-Histórica do Colégio Pedro II: 1837-1937. 2ª edição. Brasília: INEP, 1997.
Haidair, Maria de Lurdes M. O Ensino Secundário no Império Brasileiro. São Paulo: EDUSP/Grijalbo, 1972.
Mattos, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. 4ª edição. Rio de Janeiro: Access, 1999.
Paiva, Fernanda Simone Lopes de. Relatório de pesquisa submetido ao exame de qualificação. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 2001 (mimeo).
Vechia, Ariclê; Lorenz, Karl Michael (Orgs.). Programa de Ensino da escola secundária brasileira: 1850-1951. Curitiba: Editora do Autor, 1998.