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Na busca pelos heróis olímpicos não apenas experimento o serviço das companhias aéreas e dos aeroportos, mas conheço de perto a realidade de treinamento e às vezes de moradia dos muitos atletas brasileiros que conquistaram a condição de olímpicos por terem defendido as cores verde e amarela desse país ainda tão desigual. Digo desigual não apenas porque a renda é distribuída de forma injusta seja no nordeste ou no sudeste. Chamo de desigual também naquilo que se refere às condições de atletas olímpicos que mesmo sendo medalhistas ainda continuam, metaforicamente, a carregar lata de água na cabeça para ter como tomar banho, ou sair à caça de algum animal para matar a fome. E assim se mantêm vivos, para espanto dos muitos que vivem nas mansões e coberturas, jogando fora comida do prato e reclamando da baixa potência do ar condicionado…

Essa semana fui entrevistar um medalhista de ouro em um esporte individual. É sempre bom lembrar que ao longo desses 92 anos de participações olímpicas o Brasil ganhou 109 medalhas, sendo 23 de ouro. Dessas 23, 14 vieram de modalidades coletivas e o voleibol foi pródigo nessas conquistas, bem como as esquipes do iatismo. Dos ouros individuais vale destacar os bicampeões olímpicos Adhemar Ferreira da Silva e Robert Scheidt, e a campeã Maurren Magi no atletismo, Rogério Sampaio, Aurélio Miguel e Sarah Menezes no judô.

Deixei para o fim a apresentação do entrevistado em questão porque ele foi o primeiro e único medalhista olímpico da ginástica brasileira até o presente, um verdadeiro herói. Arthur Zanetti com seu pouco mais de um metro e meio é a miniatura de um gigante. Olhar intenso, fala mansa, jeito de menino e disposição de guerreiro, fibra de gente grande forjada na força do trabalho, seguido de perto por seu técnico que se difere um pouco no físico mostra na forma do trato com seus pupilos a razão de formar um campeão olímpico dentro de um ginásio minúsculo onde atletas e técnicos se dedicam ao ensino e à prática da ginástica com espaços e equipamentos improvisados, muito distante das condições de trabalho que se imagina para um campeão. Mas, o Brasil tem mesmo dessas coisas. Depois há quem queira nos fazer acreditar em milagres ou forças superiores. Desculpem os místicos, mas o milagre está logo ali, feito sob nossos olhos e sem alarde. Milagre e sorte só existem para quem trabalha para que eles aconteçam!

Como de hábito pedi para que Arthur contasse sua história. Em função de seu feito recente, muitas das memórias ali contadas já são de domínio público, mas que ouvindo de Arthur, sentado na arquibancada do ginásio que é uma extensão de sua casa, ganhou um colorido mais intenso por conta dos sons dos atletas treinando, do sorriso camarada de Marcos, seu técnico, que fez questão de deixar seu atleta ficar conosco sem a vigilância de sua presença ou de um olhar que pudesse questionar uma história ou declaração sobre algo. Mais que medo o que impera nessa relação é a confiança e o respeito desenvolvido ao longo de mais de 10 anos de trabalho conjunto.

Naquele ginásio em São Caetano do Sul fala-se o português. E o que intriga é como pôde um brasileirinho superar chineses, japoneses, russos e outros gringos que carregam a tradição de tantas outras medalhas conquistadas na modalidade e mais especificamente naquele aparelho?

Arthur respondeu sem afetação: “eu confio no meu técnico!”

Nessas mais de 800 entrevistas que já fizemos eu ouvi de tudo, tanto de quem ganhou, como de quem perdeu. Se for restringir apenas aos medalhistas então fica a dúvida esperançosa de como foi possível, apesar de tanta precariedade, se chegar a um resultado como esse. Mas no caso de Arthur essas questões ficam reverberando muito mais. Seu técnico, Marcos, é um profissional dedicado que busca conhecimento por via eletrônica e estuda de forma criativa aquilo que os outros fazem em lugares onde não faltam recursos. Mas, de todas as virtudes talvez a que mais deva ser destacada seja sua habilidade como estrategista. Brinquei com Arthur sobre o passado de seu técnico e se ele não teria sido um general de guerra. Ele sorriu zombeteiro, olhando para cima como se imaginasse a cena de uma batalha.

Naquele instante criei uma imagem dos ginastas chineses como se fossem os Guerreiros de Xian, também conhecidos como Exército do Imperador Qin, a coleção de mais de oito mil figuras de guerreiros e cavalos em terracota, em tamanho natural, encontradas próximas a Xian, e Marcos a enfrenta-los com uma única peça, Arthur. É o milenar versus o novo. São anos de tradição em uma modalidade dominada pelos orientais contra a ousadia de um pequeno gigante. Pensei nisso porque os ginastas brasileiros nunca conseguiram a vaga por equipe em Jogos Olímpicos e sempre dependeram de seus esforços individuais para conseguir avançar na competição olímpica tanto no geral, como nos aparelhos onde conseguiram desenvolver alguma habilidade mais específica. No caso de Arthur, as argolas.

O que admira no conhecimento e habilidade de ambos é que a estratégia de Marcos, que levou à medalha de Arthur, nada tem de relação com atitudes antiéticas que vimos em competições de outras modalidades. Ali não houve manipulação de tabela, combinação de resultados ou ocultação de habilidade. Sabedor da competência de Arthur jogou com a sabedoria de um estrategista guardando para o momento oportuno, a final, a sequência exata de movimento, como uma royal straight flush no pôquer.

É incrível imaginar quantas coisas estão envolvidas na conquista de uma medalha. Mais incrível ainda é saber que depois de toda essa batalha, e de uma guerra vencida contra um exército, o retorno para mais uma jornada seja marcado pelo descaso, pela falta de apoio e pelo desprezo por uma verdadeira façanha do esporte brasileiro. Arthur mais do que medalhista é um ideal de ego para muitas crianças e jovens que treinam naquele ginásio precário em São Caetano do Sul. Afinal, ele foi, viu e venceu. O que assusta nesse caso é que sua conquista para aqueles que compartilham o mesmo espaço representa a dúvida sobre o futuro, afinal se um campeão olímpico não é capaz de receber as condições para continuar a brilhar, imagine o que um iniciante terá que passar até alcançar o alto do pódio?

Na fala de Arthur aparece a indignação por essa situação inaceitável, porém sem o rancor de quem vive o descaso. Ele tem plena consciência da expectativa que paira sobre si para os Jogos que se realizarão no Rio de Janeiro em 2016. Lá ele terá que defender o título conquistado. Óbvio que o público esperará dele o mesmo resultado obtido em Londres, mas por incrível que pareça, quando ele poderia estar treinando com melhores equipamentos e patrocínios para seguir sua jornada ele ainda continua a contar com a criatividade de seu pai para fazer engenhocas que auxiliem no seu treinamento.

E ainda querem nos fazer acreditar que somos ou seremos, até 2016, uma potência olímpica.

Por katiarubio
em 10-02-2013, às 16:03

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Tags: Arthur Zanetti; atletas olímpicos; estudos olímpicos

Comentários

Mais um belo texto. Emocionante, sem deixar de tocar em questões importantíssimas. Parabéns Kátia, Arthur e Marcos.

Por Henrique Amoedo
em 10-02-2013, às 16:23.

Olá Kátia,

Apreciei deveras seus escritos. Seguindo a linha de seu pensamento, tenho duas observações que talvez venham a se somar no seu trabalho, até porque “como treinar” talvez fuja um pouco do seu foco.
Sem desprezar a importância de um bom técnico, equipamento e patrocínio, existe outra variante antagônica ao “descaso” (como disse) a que foi relegado um atleta, especialmente um medalhista de ouro. Refiro-me ao deslumbre que alguns sofrem pelo resto de suas vidas devido à exposição na mídia. Foi o caso, p.ex., de alguns campeões de voleibol em 1992. Não sei se já os entrevistou, mas com sua perspicácia e profissionalismo, poderá sacudir e tirar do porão de suas mentes como o sucesso tempestivo altera comportamentos. No ano seguinte á conquista da medalha de ouro, a CBV (leia-se Nuzman) teve que intervir energicamente para que as coisas voltassem aos seus lugares, tal os disparates comportamentais de alguns selecionáveis.

Quanto à realidade do treinamento, creio que seria de muita valia dar uma espiadinha e conhecer alguns conceitos psico-pedagógicos de técnicos renomados que regem o treinamento de atletas tornando-os muitas vezes “especiais”. Estão contidos no livro “O código do talento”, do jornalista Daniel Coyle. Este leria para o Arthur: “E Davi, metendo a mão no alforje, tirou dali uma pedra e com a funda lha atirou, ferindo o filisteu na testa; a pedra se lhe cravou na testa, e ele caiu com o rosto em terra. (I.Samuel 17, 49)
É imperdível!

Por Roberto Pimentel
em 10-02-2013, às 17:28.

Imagine uma nação a onde a ciência não é base da educação física escolar, do esporte de base, do esporte universitário e muito menos olímpico, a onde os poucos resultados são em grande parte fruto de uma obstinação pessoal dos atletas e de seus treinadores, isso é o Brasil 2016….

Por Marcos Antonio Pereira dos Santos
em 10-02-2013, às 21:55.

Excelente matéria. Parabéns pelo seu digno e oportuno trabalho.

Paulo Murilo.

Por Paulo Murilo
em 10-02-2013, às 22:22.

Prezada Katia,

Excelente texto, mais adiciono, ainda, que 2016 já passou e muito pouco foi feito. A ausência de uma política pública integrada que pense o esporte formação – rendimento não foi feita e não será feita a médio prazo. Agora, algumas ações começam a acontecer e quem sabe em 2024 possamos colher frutos.
Quanto aos nossos heróis, a primeira conquista apesar de ser muito, mas muito difícil será sempre mais fácil do que a segunda conquista. Nossos atletas viraram heróis de uma nação sem uma boa cultura esportiva. Agora, virão as cobranças, os adversários ávidos por superar um medalhista olímpico, a inevitável comparação das condições de treinos existentes, etc. E aí os nossos heróis começam a perder o que tinham de melhor: Aquele brilho nos olhos que tiveram a Sara e o Arthur. Espero estar errado.