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Os profissionais da área da Educação deparam-se constantemente com questões relacionadas com o medo na aprendizagem.


 Os compêndios direcionados para a técnica do ensino e da aprendizagem encontram-se dotados de uma gama imensa de procedimentos facilitadores capazes de extinguir o medo do aprendiz. Comumente, estes manuais desenvolvem um percurso demonstrando quão eficiente deve ser a aquisição de conhecimentos teóricos ou habilidades psicomotoras caso se consiga trabalhar com a extinção do medo no aprendiz. Eles preconizam determinadas técnicas de aprendizagem previamente desenvolvidas que, devidamente aplicadas, se tornam eficazes para alcançar o sucesso esperado. Deste modo, vários modelos de aprendizagem disponíveis contribuem para que o medo emergente em uma situação de aprendizagem seja prontamente desfeito, abrindo o caminho para o que deve realmente ser aprendido, sem os fantasmas obstaculizadores da aprendizagem. Os planejamentos de ensino são providos de conteúdos incentivadores à consecução de técnicas facilitadoras da aprendizagem desbloqueiem os constantes medos, inadequados e desagradáveis, que se acumulam no ato da aprendizagem.


 Apesar dos profissionais de ensino estarem habilitados para atuarem na superação do medo, nos propomos em estabelecer uma outra visão em relação à esta problemática na aprendizagem. Isto significa dizer que não compartilhamos com a idéia de que o medo deve ser encarado como um obstáculo que atrapalha a aquisição de conhecimento e de habilidades psico-físicas. O enfoque de nossa pesquisa encontra-se voltado para uma direção contrária, ou seja, de que o medo é o ponto de partida para identificar o aprendizado do sujeito até o momento imediatamente anterior à sua ocorrência.


 Para um melhor entendimento é preciso inverter o processo e, através de olho clínico, analisar a ocorrência do medo como um aviso de que o aluno chegou ao seu limiar de potencialidade no processo de aprendizagem. O medo anunciado pelo aluno indica claramente que se este aluno estava integrado em um processo de aprendizagem, ele denuncia ao professor que a atividade se encontra além do seu potencial internalizado até este instante.


 O que temos experenciado em nosso cotidiano escolar é a grande oportunidade de estabelecer o potencial dos alunos para adquirir novos conhecimentos e habilidades a partir da identificação do medo quando da realização de uma atividade. Na verdade, ao objetivarmos o ensino em função de um determinado conhecimento ou habilidade, nos enveredamos em um processo de aprendizagem nos valendo das atividades que estão sendo ensinadas e do que realmente está sendo aprendido.


 O procedimento clássico comumente refere-se à realização de uma bateria de questões teóricas para sabermos se o aluno aprendeu, ou então, da demonstração do aluno de certos movimentos que foram previamente exigidos. A ocorrência do medo durante o processo de aprendizagem também demonstra que os limites da capacidade de absorção do aluno para aprender foram desrespeitados, tornando-se necessário um exame mais detalhado da atividade subseqüente. A identificação de um tipo de exercício mais apropriado para a sua realização sem medo, faz com que o aluno retome seu curso sem atropelos no processo de aprendizagem.


 2 . A criança e o medo


 É muito comum os participantes recusarem-se em realizar tarefas que lhes são sugeridas nos transcorrer das aulas. Um fato ocorrido em nossas aulas reafirma esta situação e demonstra a necessidade do profissional de manter-se sempre atento às movimentações mais simples do aluno.


 As aulas eram ministradas para um grupo de oito crianças na faixa etária de três a quatro anos de idade, num espaço coberto de 450m² de área livre com aproximadamente 15m de altura em toda a sua extensão. Neste espaço amplo, distribuíamos vários colchonetes e uma grande quantidade de material de fácil manipulação. Em uma das aulas constituída de múltiplas tarefas de caráter psicomotor, freqüentemente, uma das crianças se recusava a fazer certas tarefas de simples execução, além de insistir em não realizar outras atividades que exigiam dela o deitar-se de costas nos colchonetes (posição em decúbito dorsal). Um longo período foi empreendido no teste de diferentes formas de movimentação com esta criança. Ela realizava muito bem todas as tarefas, exceto aquelas que requeriam deitar-se em decúbito dorsal.


 No entanto, certos movimentos recreativos levavam-na a deitar-se rapidamente sobre o solo. Quando envolvida nas ações realizadas pelo grupo ela assim o fazia, mas, ao contrário das outras crianças, escorava-se com as mãos sobre o solo, numa tentativa de apoiar-se para não cair, pondo-se imediatamente de pé.


 Em uma ocasião, durante as aulas, ela agiu como de costume frente à exigência da atividade. Desta vez, resolvemos questioná-la o porquê dela não deitar-se e ela nos respondeu simplesmente que não gostava. Perguntamos, então, porque ela não gostava, e ela nos respondeu que tinha medo de cair.


 Esta forma de agir evidenciava um comportamento diferenciado das outras crianças, o que nos levou a constatar realmente o comportamento instável anteriormente detectado. Ficamos bastante intrigados com esta resposta, até porque, se o medo da criança era de cair, neste particular, ela estava mais segura deitada no chão do que em qualquer outro lugar. Após esta afirmação, passamos a confirmar a nossa hipótese de que havia uma relação entre a altura do teto e o medo por ela apresentado. Na verdade, o local era mais amplo do que qualquer outro ambiente fechado que ela estava acostumada a freqüentar. Tanto em casa, como nas pequenas salas de aula do pré-escolar ela não sentia a sensação de espaço aberto. Ao olhar para o teto deste ambiente muito amplo, ela verificava uma sensação desagradável de imenso vazio. Quando olhava para cima perdia o referencial do solo e um terrível desconforto de estar solta no ar se apoderava dela. Por isso, sem apoio, dizia ter medo de cair.


 Nos parecia uma evidência bastante forte de que a chave do problema encontrava-se na altura do local. Neste grandioso espaço tornava-se muito difícil para a pequena criança encontrar os pontos de referência espaciais que ela costumava facilmente perceber em ambientes menores.


 A partir de então, elaboramos algumas atividades recreativas de adaptação ao ato de deitar. Primeiramente, começamos a trabalhar a criança na posição sentada em que ela procurava encontrar algo muito pequeno no chão (uma formiga, por exemplo), de maneira que pudesse sentir o solo firme bem embaixo dela. Em seguida, ela deveria buscar referencias nas paredes do local possibilitando a visualização do chão e o teto ao mesmo tempo. Com o passar de mais algumas aulas, ela sentiu-se capaz de deitar-se no solo sem medo de cair em um vazio que ela anteriormente imaginava encontrar-se abaixo dela.


 Somente depois de ultrapassada esta fase é que conseguimos fazer com que a criança retomasse a atividade anteriormente proposta, e, a partir daí, desenvolvermos novas formas de movimentações básicas com outras iniciativas por parte desta criança.


 Se houvesse uma pressão psicológica para que ela se sentasse de qualquer maneira provavelmente ela teria desenvolvido um grande sentimento de medo para deitar-se, passando a apresentar uma característica anti-social aos nossos olhos. A nossa maior preocupação consistia em dar condições para que as crianças obtivessem possibilidades de pleno desenvolvimento ao realizarem atividades estimulantes. Tínhamos todo o tempo e toda a paciência do mundo, e, certamente, neste caso, o resultado final foi bastante gratificante. Ocorreram aproximadamente nove meses desde a constatação do problema inicial, passando pela identificação do motivo que a amedrontava, até a reviravolta satisfatória no aprendizado de novas formas de atividades psicomotoras. Ela não foi separada em nenhum momento do grupo de colegas ao qual estava acostumada a freqüentar; participava integralmente de todas as decisões que emergia do grupo.


3 . Revisão de literatura


 Se nos detivermos em observar atentamente a atuação das crianças em uma simples atividade escolar recreativa, verificaremos como é interessante a conduta de algumas quando lidam com que se lhes apresenta de acordo com as situações que surgem durante uma determinada forma de jogo ou de uma brincadeira.
A condição de adaptação, de acordo com o processo em que o sujeito encontra-se envolvido, segundo Piaget (1989, pág. 15), vem a ocorrer em relação a demanda apresentada nas ações realizadas no ato de jogar. No caso da atividade recreativa, como se atua quando se instaura o medo?


 Arnald Gesell (1992), ao investigar o padrão total com as tentativas de desenvolvimento e a seqüência cronológica, predispôs-se a acreditar na possibilidade de recapitulação dos processos biológicos nos indivíduos, ou seja, que no processo de desenvolvimento da criança, ela recapitula todas as etapas que a antecederam.


 Para Gesell, esta disposição biológica pode vir a ser transladada para as condições psíquicas, ou seja, se a ontogênese do homem é constituída de breves recapitulações da filogênese, neste caso, todo o homem também deve passar pelas mesmas recapitulações em relação aos processos psíquicos. Por conseguinte, a sua premissa básica é a de que o indivíduo ao longo de sua maturação corporal, estabelece também, paralelamente, uma configuração psíquica.


 O aprendizado do menino, para Gesell, estaria relacionado com uma organização psicológica estabelecida antes mesmo dela nascer. As façanhas do seu cotidiano nunca são produtos de adestramento, mas de maturação. Ainda que as condições de desenvolvimento deste menino venham a ser irregulares, o seu curso de crescimento já encontra-se previamente determinado. Portanto, as atividades apresentadas pelo menino encontram-se consubstanciadas basicamente por condições determinísticas de desenvolvimento, a partir de uma concepção evolucionista.


 Por outro lado, para Jean Piaget, a inteligência não é um órgão biológico, mas um órgão psicológico, um mecanismo de adaptação.
Em um primeiro momento da criança, Piaget afirma que ela se utiliza de suas disposições hereditárias de maturação para estabelecer um vínculo com o mundo externo. Ao ser estimulada pelos objetos e situações provenientes do ambiente em que ela se encontra circunscrita, ou, através de suas próprias movimentações e atividades, ela internaliza um mecanismo a que Piaget deu o nome de esquema de ação, sendo estes, responsáveis pelo grupamento de manifestações de atividades semelhantes. Este esquema de ação e muitos outros relacionados com outras manifestações diferenciadas vão se formando e estabelecem condutas que a criança apresenta neste primeiro momento ao ter contato com o mundo exterior.


 O "jogar" para Piaget (1975, cap.5) é a forma diversificada com que a criança desempenha os seus movimentos em seu período neo-natal de maneira que produz uma internalização psíquica dos movimentos realizados. O ato de "jogar" que a criança estabelece a perceber as diferentes situações que vão surgindo com as experiências que ocorrem a cada instante, fortalece as suas relações neuronais, facilitando uma resposta mais adequada a estas situações, cujo desempenho estabelece uma plasticidade neurológica (HEBB, 1949) que o capacita a passar para um nível de desenvolvimento mais complexo.


 Observar e utilizar o medo como ponto de partida para novas estratégias (métodos) de aprendizagem é o caminho mais seguro para manter o aluno constantemente com um salutar sentimento de autoconfiança. Lev S. Vygotsky (1994) afirma que a possibilidade é o produto das vivências internalizadas do sujeito. Assim sendo, podemos dizer que o medo constitui-se como um certificado de garantia de sobrevivência do ser humano, e, por esse motivo, deve nos servir como balizamento nas implicações que se sucedem no ato de aprender.


 Obs.
O autor, Prof. Sergio Moraes Jatobá, é professor da FAETEC/RJ.


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