Integra

Ao longo da história, o tratamento dado à diversidade pela Educação Física (EF) escolar demonstra que muitos educandos foram discriminados e até mesmo impedidos de participar das aulas. De um lado, os "aptos", ágeis, fortes e/ou velozes, muito valorizados; do outro lado, os "outros" educandos, excluídos, ora desvalorizados por seus colegas de turma ora desvalorizados pelos seus próprios educadores e educadoras.

As práticas excludentes, porém, não são reproduzidas apenas pela EF, mas sim por toda a escola. Tal fato não pode ser desvinculado da criação e legitimação da formação ideológica caracterizada pelo paradigma da exclusão, a qual desencadeou severas implicações, sobretudo por criar a figura da anormalidade e estabelecer a dicotomia normal versus anormal.

Compreender o caráter perverso dessa formação ideológica é condição para desarraigar-se dela e, conseqüentemente, superar os preconceitos. Platt (2004) nos diz que é impossível margear a discussão sobre a normalidade/anormalidade sem abordar o que representativamente foi-se construindo socialmente, já que a representação que coletivamente temos sobre o mundo da vida, dos indivíduos e os conceitos destes sobre as coisas se dá a partir das possibilidades materiais disponíveis acessíveis, ou seja, são histórico-sociais. Por isso, as reflexões contidas neste trabalho têm como foco, o movimento de ruptura de paradigma, da exclusão à inclusão, pelo qual torna-se possível compreender como a sociedade, sobretudo a instituição escola e a educação física, tem lidado com a questão da diversidade humana ao longo da história.

No decorrer deste trabalho, será utilizado o termo "exclusão" para fazer referência às práticas preconceituosas, discriminatórias e/ou segregacionistas que, no âmbito escolar, caracterizam o chamado paradigma da exclusão. Por não encontrar um termo que denomine unicamente essas práticas, optei pela utilização deste termo (exclusão) mesmo reconhecendo o problema relacionado à falta de rigor conceitual, muito bem explicado por Oliveira citado por Oliveira (2002):

Chamar de excluído todo e qualquer grupo social desfavorecido pode levar a contra-sensos, como aplicar um mesmo conceito tanto a moradores de rua quanto a pessoas que, apesar de portadores de deficiência física, gozam de uma situação econômica bastante confortável ... Uma confusão desse tipo, independentemente das discussões de natureza política que enseja, é inaceitável porque os processos de exclusão que afetam os dois grupos não tem nada em comum: nem a mesma origem nem a mesma natureza, além de não se manifestarem da mesma maneira e, com toda evidência, demandarem tratamentos bastante diferentes. (p.118)

Intencionalmente formulado na Modernidade, o paradigma da exclusão estabeleceu padrões de normalidade, com seus respectivos critérios de pertencimento ou não-pertencimento. Esses critérios, como explica Marques (2001), estão relacionados principalmente aos aspectos ético, estético e econômico. Ético porque define o "normal" como "bom", "melhor" e "desejável"; e o "anormal" como "ruim", "pior" e "indesejável". Estético porque valoriza o padrão de "corpo belo" ideologicamente definido, excluindo os que dele se desviam. Econômico porque relaciona a normalidade à capacidade produtiva: o corpo deficiente recebe o rótulo da dependência econômica, da incapacidade produtiva.

Para o positivismo, pensamento predominante na época, uma sociedade sem ordem jamais atingiria o progresso. Sob a influência dessa idéia, amparada pela ciência e preocupada com a reprodução do capital, a sociedade Moderna isolou os "desviantes" do padrão de normalidade em instituições especializadas. Como esses indivíduos receberam os estereótipos da incapacidade, improdutividade e/ou doença, temia-se que sua "desordem" atingisse os demais e/ou prejudicasse a "saúde" do corpo social. A respeito disso, se referindo aos portadores de necessidades especiais, Carvalho citado por Marques (2001) diz que:

"os estereótipos são aplicados aos portadores de necessidades especiais, particularmente quando deficientes. Socialmente percebidos como incapazes e improdutivos e biologicamente considerados "anormais", ficam erroneamente na condição de clientes, como se fossem dependentes de proteção institucionalizada, porque são doentes. Sob essa falsa e perversa ética, têm sido privados do direito de acesso à escola pública, o que gera a necessidade de se criarem as escolas especiais, para oferecer-lhes o atendimento especializado." (CARVALHO apud MARQUES, 2001, p.53)

Uma das estratégias utilizadas pela classe dominante para legitimar o isolamento nas escolas especiais foi disseminar a idéia de que ele era benéfico aos "desviantes". Para tal, veiculou-se por meio de especialistas, o discurso de que as escolas especiais, assim como as outras instituições, serviam para proteger, dar assistência e/ou reabilitar esses indivíduos. Contudo, Marques (2001) demonstra que o discurso sobre a institucionalização da deficiência carrega consigo um duplo sentido: o sentido manifesto, da benevolência; e o sentido latente, da segregação. Transmitindo a idéia de que prestam auxílio aos portadores de necessidades especiais, essas instituições especializadas ocultam sua verdadeira intenção: manter isolados todos aqueles que não se enquadram no padrão de normalidade, além de atuar como estratégia de criação e veiculação de uma imagem negativa sobre esses indivíduos.

Buscando superar as práticas segregacionistas impostas pelo paradigma da exclusão, ganha força, no final da década de 1960 e início da de 1970, o paradigma da integração, que segundo Marques (2001), é caracterizado ideologicamente pelo confronto entre dois discursos: o da exclusão e o construído pelos próprios deficientes e/ou pessoas envolvidas na luta pelo reconhecimento da diferença como condição existencial possível. Tal movimento não rompeu com o referencial da normalidade. Sua estratégia para ocupar os espaços físico e discursivo era tornar visível a "diferença". Como resultado, obteve, em várias oportunidades, o que Marques (2001) denominou de "guetalização" da diferença: concentração dos grupos "desviantes", militantes e/ou simpatizantes de determinados movimentos, em espaços próprios a eles reservados, "como é o caso dos bailes-gay e dos centros de convivência de deficientes, dentre outros". (MARQUES, 2001, p.64)

O paradigma da integração trouxe a defesa pela inserção do "diferente" nos diferentes setores da sociedade, inclusive na educação regular. Porém, cabia a cada portador de necessidades especiais superar sozinho suas próprias "limitações". Com a responsabilidade de inserir-se no ambiente regular de ensino recaindo completamente sobre si, a grande maioria desses indivíduos, não conseguindo atingir os níveis exigidos pelo padrão educacional, foram "novamente" condenados à segregação em escolas e/ou classes especiais, que "visavam preparar" esses educandos para serem integrados nas classes regulares.

É importante mencionar que no momento em que ganha força a defesa pela implantação desse paradigma nas escolas nacionais, a Educação Física (EF) lança mão da chamada educação física adaptada, área "responsável" por "acolher" os educandos que, por possuírem "limitações" e/ou "incapacidades", "não podem" participar das aulas com/como os ditos normais. Por um lado, os "impossibilitados" têm acesso às atividades, por outro lado, é mantido o mesmo enfoque da escola especial - a segregação -, já que esse acesso ocorre de forma restrita: os "incapazes" são isolados dos demais educandos.

Apesar da tentativa de romper com as atitudes segregacionistas, preconceituosas e discriminatórias que marcavam o processo educacional, a integração, conforme afirma Marques (2001), não superou os limites impostos pelo paradigma da exclusão, formação ideológica no interior da qual foi formulada.

O paradigma que emerge na Atualidade é o da inclusão, o qual busca modificar o quadro atual da educação/EF, ainda marcado por atitudes excludentes. Pautada no princípio da diversidade humana, essa formação ideológica rompe com a padronização dos indivíduos e com os estereótipos, difundidos na Modernidade. As dicotomias normal versus anormal e iguais versus diferentes, presentes nos paradigmas da exclusão e da integração, respectivamente, é substituída pela idéia da diversidade, que compreende que todos os indivíduos são diferentes e possuem o mesmo valor. Nesse sentido, ser homem, ser mulher, ser ruivo(a), ser negro(a), ser loiro(a) e/ou ser deficiente etc., passa a ser compreendido apenas como uma das inúmeras possibilidades da vida, o que não quer dizer que uma seja melhor do que a outra.

O movimento em prol do paradigma da inclusão trouxe para o âmbito educacional a defesa por uma escola que não segregue os educandos, que realmente eduque todos os indivíduos, juntos, conforme já defendia Vygotsky. Nas palavras de Van der Veer citado por Marques (2001):

Vygotsky raciocinou que a educação social, baseada na compensação social dos problemas físicos, era a única maneira de proporcionar uma vida satisfatória para crianças "defeituosas". Em sua opinião, as escolas especiais da época faziam pouco em termos dessa educação social. Influenciadas por idéias religiosas e filantrópicas, remanescentes de uma mentalidade burguesa originada no mundo ocidental, enfatizavam a situação infeliz das crianças e a necessidade de que elas carregassem sua cruz com resignação. Em contraste, Vygotsky defendia uma escola que se abstivesse de isolar essas crianças e, em vez disso, integrasse-as tanto quanto possível na sociedade. As crianças deveriam receber a oportunidade de viver junto com pessoas normais. (p. 127)

Buscando superar as práticas excludentes no âmbito educacional, defende-se agora a escola inclusiva, a qual valoriza a diversidade ao invés da homogeneidade. Glat & Fernandes (2006) afirmam que, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Especial, o conceito de escola inclusiva implica a tomada de uma nova postura da escola regular, a qual deve propor no projeto político-pedagógico, no currículo, na metodologia, na avaliação e nas estratégias de ensino, ações que favoreçam a inclusão e práticas pedagógicas que atendam a todos os educandos.

Apesar da crescente luta pela concretização da escola inclusiva, os frutos do paradigma da exclusão ainda são obtidos no âmbito educacional; não só a partir da segregação dos educandos nas escolas especiais, mas também a partir de práticas excludentes no interior das escolas regulares.

Na EF, é marcante a presença das práticas excludentes, sobretudo porque grande parte de suas concepções metodológicas se funda no paradigma da aptidão física. Segundo o Coletivo de Autores (1992), tal paradigma corresponde à perspectiva da EF escolar que busca adequar os indivíduos à sociedade capitalista. Por meio da educação, visa à formação do "homem forte, ágil, apto, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na sociedade competitiva de livre concorrência." (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.36)
Tal perspectiva tem como objetivo o desenvolvimento da aptidão física, o que gera indubitavelmente a valorização apenas dos mais fortes, ágeis e/ou velozes em detrimento da valorização de todos os educandos. Como não há interesse em promover uma reflexão crítica sobre a realidade nesse modelo, o paradigma da exclusão encontra um solo fértil não só para sua manutenção, mas também para sua proliferação.

No paradigma da aptidão física, o aspecto competitivo se sobrepõe ao lúdico, o que enaltece a vitória como resultado final e atribui ao mérito pessoal, o sucesso ou o fracasso. Além de contribuir para o estabelecimento de um sentimento de rivalidade entre os educandos, essa perspectiva da EF não se compromete com a superação dos preconceitos, muito pelo contrário, já que muitas vezes os reforça ainda mais.

Por muito tempo, a EF enfatizou os aspectos biológicos e/ou tecnicistas em detrimento da formação de sujeitos capazes de compreender a realidade na qual estão inseridos. Oliveira (1994) afirma que só a partir da década de 1980 parece surgir a perspectiva de EF como prática social. Isto é, só a partir desse momento, a análise das implicações políticas dessa disciplina ganhou força. Se até então sua função era formar corpos dóceis; as reflexões e questionamentos surgidos a partir dessa época indicavam um movimento de ruptura paradigmática, visando superar as práticas vigentes.

Importante marco para a área, a publicação do livro Metodologia do Ensino de Educação Física, pelo Coletivo de Autores (1992), rompeu as fronteiras que até então prendiam a EF ao paradigma da aptidão física, o qual vincula-se à formação ideológica excludente. O paradigma defendido nessa obra é o da reflexão sobre a cultura corporal. Nesse modelo, os conteúdos devem ser tratados de forma crítico-superadora, a fim de "formar o cidadão crítico e consciente da realidade social em que vive, para poder nela intervir na direção dos seus interesses de classe." (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 36) Martins (2002) explica que essa abordagem metodológica, além de definir a EF em outras bases - filosófica, ético-política, pedagógica -, a articulou com a função social da escola no que havia de mais avançado: a formação do indivíduo enquanto sujeito histórico, visando uma transformação social compromissada com os interesses e necessidades da classe trabalhadora.

A EF na perspectiva crítico-superadora é compreendida como a prática pedagógica que, na escola, tematiza formas de atividades expressivas corporais que configuram uma área de conhecimento denominada de cultura corporal, onde estão inclusos, por exemplo, o jogo, esporte, dança e ginástica. A tematização proposta consiste na reflexão sobre diferentes temas da cultura corporal, que envolvem sobretudo o tratamento dos grandes problemas sócio-políticos atuais como:

"ecologia, papéis sexuais, saúde pública, relações sociais do trabalho, preconceitos sociais, raciais, da deficiência, da velhice, distribuição do solo urbano, distribuição da renda, dívida externa e outros. A reflexão sobre esses problemas é necessária se existe a pretensão de possibilitar ao aluno da escola pública entender a realidade social".(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.62-63)

Além de comprometer-se com o descortinamento das diferentes formas de preconceito, a perspectiva crítico-superadora valoriza a liberdade de expressão de movimentos e defende a reflexão sobre valores, como: "solidariedade substituindo individualismo, cooperação confrontando a disputa, distribuição em confronto com apropriação". (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.40) Outra preocupação demonstrada pelo Coletivo de Autores (1992) que favorece a superação do paradigma da exclusão, diz respeito à necessidade de romper com a predominância do sentimento de competição e rivalidade na escola. Nas suas palavras:

Na escola, é preciso resgatar os valores que privilegiam o coletivo sobre o individual, [que] defendem o compromisso da solidariedade e respeito humano, a compreensão de que jogo se faz "a dois", e de que é diferente jogar "com" o companheiro e jogar "contra" o adversário". (COLETIVO DE AUTORES, 1993, p.71)

Se a EF pautada no modelo da aptidão física associa-se à formação ideológica caracterizada pelo paradigma da exclusão; a EF na perspectiva crítico-superadora supera tal formação ideológica e abre caminho para a consolidação do paradigma da inclusão, já que fornece elementos que visam à modificação do quadro atual da EF, ainda marcado pelo paradigma excludente.

A perspectiva da reflexão crítica sobre a cultura corporal criou possibilidades para a participação ativa de todos os educandos nas aulas (dissolução das antigas condições de vida), além de possibilitar uma mudança de mentalidade, caracterizada pela superação dos preconceitos (dissolução das velhas idéias).

A mentalidade burguesa impôs a cilada - dicotomia normal versus anormal. Cabe a nós, arruiná-la e caminharmos rumo à escola que valoriza a diversidade humana. Posicionar-se a favor da construção dessa escola, requer a superação das concepções metodológicas tradicionais, incapazes de possibilitar aos educandos, a compreensão da realidade na qual estão inseridos; requer antemão a superação da formação ideológica caracterizada pelo paradigma da exclusão; requer compromisso irremediável com a adoção de uma prática pedagógica compromissada com o fim das condições que submetem os indivíduos à inferioridade, como: preconceito, discriminação, miséria, exploração do ser humano pelo homem ou pela mulher etc.

Educadores e educadoras devem engajar-se nesta luta, pois "a boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar." (FREIRE, 2002, p.67)

Obs. O autor, professor Leonardo Docena Pina (LEODOCENA@YAHOO.COM.BR) é membro do NESP/FACED/UFJF

Referências bibliográficas:

  • Coletivo de autores, Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 21 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • Glat, Rosana & Fernandes, Edicléa Mascarenhas. Da Educação Segregada à Educação Inclusiva: uma Breve Reflexão sobre os Paradigmas Educacionais no Contexto da Educação Especial Brasileira. Disponível em: http://www.eduinclusivapesq-uerj.pro.br/livros_artigos/pdf/Edu_segrega.pdf . Acesso em 07 de agosto de 2006.
  • Marques, Carlos Alberto. A Imagem da alteridade na mídia. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2001.
  • Martins, André Silva. Educação Física Escolar: Novas Tendências. Revista Mineira de Educação Física, Viçosa, v.10, n.1, p. 169-192, 2002.
  • Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2001.
  • Oliveira, Avelino da Rosa. Educação e exclusão: uma abordagem ancorada no pensamento de Karl Marx. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
  • Oliveira, Vitor Marinho de. Consenso e conflito da educação física brasileira. Campinas: Papirus, 1994.
  • Platt Adreana Dulcina. O paradigma inclusivo das políticas educacionais e o paradigma excludente das políticas econômicas nos anos 90: o constructo do sócio-conceitual da normalidade/anormalidade (ou adequação social). Tese de doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de educação, 2004.