Integra

O interesse pelo estudo surgiu durante uma conversa informal com um ex-aluno do primeiro segmento do ensino fundamental diurno, que no ano anterior a realização da pesquisa estava cursando o 3º ciclo do ensino fundamental noturno em uma escola pública da cidade de São Gonçalo/RJ. Interessei-me pelo discurso do ex-aluno, e quando este comentou que a sua escola não oferecia aulas de Educação Física no ensino noturno, mostrando-se insatisfeito com isso, pude vislumbrar a possibilidade do desenvolvimento de um estudo que analisasse as oportunidades que os alunos do ensino noturno têm de praticar aulas de Educação Física.

O aluno me falou sobre seus planos de freqüentar uma academia de ginástica após o horário escolar. Devido estar trabalhando em uma academia na função de auxiliar de pedreiro poderia participar das aulas de jiu-jitsu sem ter quer pagar por aquela atividade.

Pensava não ser uma boa idéia, pois acreditava que a sua rotina seria ainda mais desgastante. Acordar cedo, trabalhar mais de oito horas diárias, ir para a escola, e depois de toda essa jornada ainda se deslocar para uma academia para praticar lutas, isto seria demasiadamente cansativo. Neste momento, percebi o quanto esta minha própria preocupação com o desgaste do aluno refletia o conteúdo do Artigo 6 do Decreto nº 69.450/71, que justifica a facultatividade da Educação Física para alguns alunos do ensino noturno. Por outro lado, tentava imaginar o que as aulas de lutas representavam para aquele aluno, cujo tempo era tomado pela responsabilidade do trabalho para ajudar no sustento da sua família e pelas atividades junto à escola. Talvez na prática da luta estivesse presente a oportunidade de uma maior aproximação do aluno consigo mesmo, de descoberta da sua corporeidade, de realização de sonhos, de prazer, de lazer.

A disciplina Educação Física é concebida pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394/96) como um componente curricular facultativo no ensino noturno, o que faz com que muitas escolas optem por não incluí-la em sua grade curricular. Porém, sua facultatividade no ensino noturno remonta ao início da década de 1960, quando foi promulgada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 4.024/61). Embora não tenha sido objetivo deste estudo investigar desde que época a Educação Física foi sendo excluída do ensino noturno, pôde-se perceber que antes da Lei 9394/96 a inclusão desta disciplina na grade curricular das escolas públicas era mais freqüente.

Tem-se o entendimento, neste estudo, que os alunos do ensino noturno deveriam ter os mesmos direitos que os demais alunos, de acordo com o Item I do Art. 3O da Lei nº 9.394/96 que prevê igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Porém, não é isto o que acontece na prática. Particularmente em relação à Educação Física, esta lei mostra-se sem sentido na medida em que prevê a facultatividade deste componente curricular no ensino noturno, privando o aluno trabalhador de ter acesso à cultura corporal de movimento.

Este estudo investigou as representações individuais e coletivas que a Educação Física assume nas interações discursivas entre os diretores de escola da rede pública estadual de Niterói (RJ) no ensino médio noturno por aqueles que direta ou indiretamente influenciam no oferecimento ou não desta disciplina no turno da noite.

O estudo teve por objetivos: Identificar, analisar e interpretar as representações sociais reveladas através do discurso dos diretores das escolas públicas estaduais do Município de Niterói (RJ) sobre a inclusão da disciplina de Educação Física no ensino médio noturno; analisar os motivos pelos quais os diretores decidem por incluírem ou não a Educação Física na grade curricular do ensino médio noturno e revelar os significados que os diretores de escolas atribuem às atividades corporais experimentadas na escola.
Segundo Carvalho (1994), as primeiras classes noturnas datam do Império e eram freqüentadas por aqueles cuja idade e necessidade de trabalhar não permitiam que se inserissem nas classes diurnas. Conta esta autora, a partir de registros, que estas classes funcionavam em locais improvisados e os professores recebiam uma pequena quantia para se encarregarem das aulas. Carvalho acrescenta que não tardou muito para se perceber que os resultados das classes noturnas não estavam atendendo ao esperado e que a freqüência dos alunos no decorrer do ano letivo diminuía em relação ao número de matriculados no início do ano. Porém, os cursos noturnos continuaram a ser criados, e a maioria dos estudantes brasileiros só se escolarizavam devido à existência desses cursos nos diferentes graus de ensino. Observa-se hoje que o turno da noite, a exemplo dos tempos que datam a sua origem continua sendo alvo de desprestígio e desatenção por parte dos que com ele interagem, apesar se ser uma necessidade concreta daqueles que possuem somente esta opção de escolarização. Isto ocorre no setor legislativo, na formulação de leis com características excludentes; no setor administrativo, com Secretarias e Coordenadorias de Educação ditando normas e reformas para as escolas não compatíveis com suas realidades; ou no setor pedagógico, onde a direção escolar insiste em uma gestão não-democrática, privando a comunidade escolar de decisões que lhe são pertinentes.

Conclui-se, portanto, através dos dados levantados nesta pesquisa com diretores de escolas públicas estaduais do Município de Niterói (RJ), que a inclusão da disciplina de Educação Física no ensino médio noturno apresentou as seguintes representações:

a) Os diretores interpretam a legislação que versa sobre a facultatividade da Educação Física (e conseqüentemente, a Resolução SEE/RJ nº 2439/2001) de forma equivocada. Ao receberem a proposta da matriz curricular do ensino médio noturno e verificarem que as aulas de Educação Física foram excluídas do quadro que especifica os componentes curriculares que farão parte da grade, os diretores escolares entendem que esta disciplina não deve ser oferecida mais para o ensino médio noturno.

b) Os diretores de escola não fazem força para garantir aos alunos do ensino médio noturno o direito de participarem das aulas de Educação Física por se sentirem amparados pela na legislação que torna facultativa a inclusão da disciplina neste turno de ensino.

c) As escolas não apresentam condições favoráveis para a inclusão da Educação Física no ensino médio noturno.

d) Embora os diretores de escola descrevam a disciplinas de Educação Física como sendo de grande relevância para a formação de seus alunos, as disciplina que compõem a parte diversificada da matriz curricular são as que têm o objetivo de preparar o aluno para o mercado de trabalho, segundo concepção dos diretores, e a Educação Física não contribui para esta preparação.

e) Os diretores de escola justificam também a não inclusão da disciplina de Educação Física no ensino médio noturno ao sustentarem o argumento de que esta disciplina iria contribuir para desgastar ainda mais o aluno, que vem cansado do trabalho.

É necessário que os órgãos encarregados de estabelecer as grades curriculares escolares estejam atentos e questionem-se sobre o que vem sendo priorizado nos currículos dos alunos no caso deste estudo, dos alunos do ensino médio noturno. E também que atentem para o fato de que os alunos trabalhadores são discriminados quando não lhes é dada oportunidade de ter acesso ao trabalho da cultura corporal, impedindo-os, assim, de se aproximarem e experimentarem os movimentos codificados culturalmente pela sociedade humana, de reconhecer-se participantes deste processo de produção cultural, de terem acesso a um conhecimento que deve ser socializado assim como ocorre com a matemática, o português, a história e outros. Enfim, de terem garantido o direito de experimentarem sua corporeidade num espaço próprio para a socialização dos saberes que é a escola. É preciso estar sempre exercitando o diálogo entre os atores envolvidos nas aulas de Educação Física, e que os questionamentos quanto às finalidades dessa disciplina na escola possam ser o eixo norteador das discussões e eventuais propostas que venham a surgir. Segundo Spink e Medrado (1999, p.45), é através da "ruptura com o habitual que se torna possível dar visibilidade aos sentidos."Torna-se necessário romper com o possível descaso das autoridades para que haja a discussão e a tentativa de se buscar soluções para esta problemática.

Observa-se que esta disciplina, a cada ano que passa, está sendo progressivamente "banida" da grade curricular da escola noturna, não havendo perspectiva de seu retorno em muitas escolas. Percebe-se que muitos administradores escolares não percebem a relevância desta disciplina no noturno, acreditando que ela pouco contribui para a formação do homem.Os docentes da Educação Física Escolar necessitam atentar mais para a problemática que envolve a formação do aluno do ensino noturno. É preciso que se dialogue sobre estas e outras temáticas que parecem estar em situações de abandono e "sem saída". Dialogando, iremos confrontar idéias, teorias e métodos, questionar a legislação, e com este procedimento estaremos nos preparando um pouco mais para lidar com esta situação específica de exclusão do aluno trabalhador das práticas da cultura corporal de movimento. Embora se tenha a clareza de que estas transformações acontecem gradativamente, também acredita-se que a participação efetiva dos profissionais pode contribuir para a permanência da Educação Física no ensino noturno.

Referências bibliográficas

  • Alves, N. e Villardi, R. Lei nº 9.394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Múltiplas leituras da nova lei. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997.
  • Antunes, R. O sentido do trabalho. 4ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.
  • Bracht, V. Educação física e ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: Ed. Unijuí, 1999.
  • Carvalho, C. P. de. Ensino noturno: realidade e ilusão. 7ª ed. São Paulo:Cortez. 120p.
  • Chizzoti, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
  • Coletivo de  autores. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • Gadotti, M. e colaboradores. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Artes MédicasSul,2000.
  • Marques, M. O. S. Escola noturna e jovens. Revista Brasileira de Educação. São Paulo:
  • Anped, nº 6, p. 63-75, 1997.
  • Morin, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
  • Moscovici, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
  • Souza, E. S.; Vago, T. M. O ensino da educação física em face da nova LDB. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. São Paulo, 1997. p. 121-141.
  • Spink, M. J; Medrado, B. Capítulo II. In: Spink, M. J. Práticas discursivas e produções de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez, 1999. p.41-61.