Integra

Introdução

Este trabalho tem na sua origem o consenso do grupo de professores que atuam junto ao Projeto "Sou Feliz... Ensino Educação Física" da necessidade de renovação do programa aplicado nas aulas. Após quatro anos de trabalho percebemos que devido a inexperiência e ao anseio de atuarmos com maior qualidade acabamos criando um grupo de objetivos fruto da miscigenação de ideologias muitas vezes contrárias. A busca deste paradigma ideológico, e de objetivos comuns, devemos a um certo amadurecimento, mas, especialmente, às influências recebidas no interior e no exterior da faculdade.

A idéia do Projeto "Sou Feliz... Ensino Educação Física" surgiu de universitários que queriam fazer de suas vidas acadêmicas um processo de transformação da sociedade. Decidiram, então, realizar ações educativas com crianças socialmente desfavorecidas.

A história do projeto e a seleção da linha pedagógica

Assim nasceu o Projeto, partindo de pessoas diferentes que tinham na cabeça a idéia de uma vida melhor para todos, que, desde março de 2001 tem desenvolvido trabalhos na área da Educação Física escolar por estudantes universitários de Educação Física da Cidade do Rio de Janeiro, em especial da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ. Objetiva intervir na educação de menores socialmente desfavorecidos na Instituição (INPAR) que os acolhe, através da Educação Física, de modo que a prática da cultura corporal auxilie na formação de cidadãos conscientes, éticos, críticos e principalmente com autonomia, ou seja, ser um projeto de intervenção para mudar a consciência, e assim a realidade dessas crianças. O Instituto Presbiteriano Álvaro Reis (INPAR) é uma sociedade civil sem fins lucrativos, entidade filantrópica, tem por objetivo o amparo com a promoção gratuita da alimentação e cuidados com a saúde, a orientação e o ensino de crianças e adolescentes órfãos ou necessitados. Opera de forma aberta e aceita crianças independentemente de sexo, cor, raça e origem religiosa. Não funciona como escola, recebe as crianças no horário invertido de suas idas escolares.

No ano de 2004 o Projeto passou a ser reconhecido como um pólo da prática de ensino da Licenciatura em Educação Física pela UFRJ, vem atingindo plenamente seus objetivos, principalmente o de auxiliar na formação de professores capazes de planejar, criar e executar um programa de qualidade, mas especialmente de contribuírem para uma melhora na vida dessas crianças. A partir das reuniões pedagógicas realizadas com os professores chegamos a conclusão de que deveríamos embasar nossos estudos nas idéias apresentadas na Pedagogia Crítico-superadora. Tal escolha se deu devido à constatação de uma concepção pedagógica voltada exatamente para o nosso público alvo: as classes populares e de coadunar com nosso objetivo de transformação da sociedade através da formação de seres críticos e autônomos. Como Azevedo e Shigunov (2003) dizem que a Abordagem Crítico-superadora defende a justiça social em sua prática, fazendo uma leitura de dados da realidade, da crítica social dos conteúdos questionando o poder, o interesse e a contestação.

A pedagogia crítico-superadora

Na concepção do Coletivo de autores (1992), não se trata somente de aprender o jogo pelo jogo, o esporte pelo esporte, ou a dança pela dança, mas esses conteúdos devem receber um outro tratamento metodológico, a fim de que possam ser historicizados criticamente e aprendidos na sua totalidade enquanto conhecimentos construídos culturalmente, e ainda serem instrumentalizados para uma interpretação crítica da realidade que envolve o aluno.

A Pedagogia Crítico-superadora defende uma perspectiva dialética, ou seja, uma visão de transformação qualitativa, de mudanças, aquela que considera o constante movimento que presenciamos na realidade, uma visão de totalidade para a construção do conhecimento, auxiliando assim na formação de um indivíduo inserido na sociedade. Os conteúdos devem estar ligados diretamente com a realidade dos alunos, para que estes possam aprender realmente, assimilando os conteúdos com os dados da realidade e não apenas decorando e praticando naquele momento, mas entendendo o significado para a sua vida. Libâneo (1985) diz: "... os conteúdos são realidades exteriores ao aluno que devem ser assimilados e não simplesmente reinventados" (p.39).

O Coletivo de Autores (1992) dita alguns princípios curriculares para auxiliar na seleção dos conteúdos de ensino como: a relevância social do conteúdo, o da contemporaneidade do conteúdo, não esquecendo do que é considerado clássico, a adequação às possibilidades sócio-cognitivas do aluno, a simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade e a provisoriedade do conhecimento.

Os conteúdos formam a base objetiva para passar e trocar conhecimento. Libâneo (1994) entende que os conteúdos são o conjunto de conhecimentos, habilidades, hábitos, modos valorativos e atitudinais de atuação social, organizados pedagógica e didaticamente, tendo em vista a assimilação ativa e aplicação pelos alunos na sua prática de vida. Foram pré-definidos para todas as turmas do Projeto cabendo aos professores de cada turma a escolha da ordem, forma e relevância do conteúdo para sua turma. Não esquecendo que a Pedagogia Crítico-superadora é a norteadora do projeto político pedagógico.

Tais conteúdos foram selecionados para, principalmente, ampliar o nível de conhecimento dos alunos, não só nas atividades práticas, mas no confronto com dados da realidade, pois grande parte dos conteúdos nunca foi oportunizada para essas crianças, por serem conteúdos "elitizados", ou por utilizarem materiais de alto custo (esporte sobre rodas) ou por ser necessária a utilização de pesquisa aprofundada, meios de transmissão (documentários) ou também contato direto com culturas (dança, rodas,...), ficando fora do alcance dessas crianças. O Coletivo de autores (1992) exprime esta idéia quando dando o exemplo da ginástica artística afirma que é um conhecimento expropriado das crianças da classe trabalhadora, tendo a necessidade de desmitificá-la como prática para os "eleitos".

Maneiras de atuação

As aulas deverão ser organizadas de forma clara e objetiva, fazendo um roteiro de atividades pensadas previamente, mas que levam em consideração os conteúdos pré-determinados, as aulas anteriores e a construção conjunta com a turma. Esse roteiro não é rígido, é perfeitamente adaptável a situação específica do dia da aula. Terminada a sessão o professor anota observações acerca das atividades e sobre o comportamento da turma.

Serão realizadas reuniões mensais para a avaliação da relevância dos conteúdos e das atividades executadas, além de trocarem anotações e observações dos alunos. Em cada reunião será proporcionado um aprofundamento de conhecimento e da pesquisa desenvolvida.

Métodos de avaliação

Considerando a avaliação quantitativa um tanto quanto discriminatória e injusta, preza-se pela utilização de uma avaliação onde o que prevaleça é o querer participar, cooperar, observando a cada aluno, mas valorizando o fazer coletivo.

"Os autores (Coletivo de autores) também especificam os princípios avaliatórios dessa concepção, (...) a partir de uma reinterpretação e redefinição de valores e normas, de uma síntese qualitativa da nota e de uma avaliação baseada no fazer coletivo. (Abib,1998)".
É muito cruel pensar a avaliação unicamente como a maneira de referendar uma linha de pesquisa ou então como "validadora" do trabalho do professor e da escola para a sociedade. Esta deve servir como orientadora e reorientadora da atuação docente, porque se pretendemos influenciar na formação pessoal dessas crianças, temos que observar o cotidiano, no decorrer do programa, se ocorreram mudanças de comportamento, no trato com professores, colegas, consigo e com o ambiente ao seu redor. Através de questionários e entrevistas podemos saber com os pais se mudanças também foram observadas em casa, além da troca, necessária, entre os professores.

A avaliação em relação ao cumprimento da Pedagogia Crítico-superadora está delimitada pelos roteiros das aulas, pelas anotações no mesmo, pelas reações e questionamentos em aula dos alunos, pelas discussões e anotações nas reuniões pedagógicas e no interesse e/ou questionamento dos professores dos textos utilizados para aprofundamento de estudo. Além da avaliação semestral feita pelos alunos dos professores. O Coletivo de autores (1992) afirma "A Avaliação, portanto, deve servir para indicar o grau de aproximação ou afastamento do eixo curricular fundamental".(p.113)

A avaliação em relação às crianças fica em parte relacionada as suas atitudes comportamentais como respeito, agressividade, entre outros, e também relacionada as suas práticas educativas como: participação, cooperação, execução das tarefas, interesses, etc... . Sendo feita uma avaliação diária simples e uma semestral mais aprofundada, e ainda auto-avaliação.

Metodologia da pesquisa-ação

Esta pesquisa se faz necessária para auxiliar os professores, estagiários e os próprios alunos do Projeto "Sou Feliz... Ensino Educação Física" sobre a relevância da utilização da Pedagogia Crítico-superadora para alcançar seus objetivos em aulas de Educação Física no Projeto, ou seja, fora da escola.

Levando em consideração que a classe atendida freqüenta escola pública e que no geral as aulas de Educação Física não diferenciam muito do queimado e do futebol, a intenção do estudo é constatar se realmente é viável trabalhar com eles a Pedagogia Crítico-superadora dentro de um projeto social atingindo seu principal objetivo a formação de cidadãos críticos.

Para isso foi escolhida a Pesquisa-ação, estratégia metodológica da pesquisa social (Thiollent, 2003) onde os pesquisadores são pessoas ativas que pretendem aumentar os seus conhecimentos e também contribuir para uma melhor aquisição de consciência das pessoas da situação observada. Por se tratar de uma pesquisa social onde os pesquisadores desempenham um papel ativo na própria realidade da situação observada fica clara a escolha desta estratégia metodológica para analisar os resultados obtidos neste caso.

A situação encontrada é a continuidade na formação de indivíduos alienados, ou seja, despolitizados, desculturalizados, devido a estagnação das classes marginalizadas e exploradas na busca de seus direitos através de reinvidicações. Aumentando assim, cada vez mais, a distância das classes dominantes para as classes dominadas, se fazendo cumprir a vontade daquelas de serem o "cérebro" da sociedade, os seres pensantes. Em contradição com a formação de seres alienados o Projeto intervém através da Educação Física no INPAR para que as crianças atendidas, em sua maioria moradores da Cidade de Deus que tem como característica a proximidade com a violência, o tráfico de drogas, a fome, o abandono entre outras mazelas, tenham a oportunidade de uma formação voltada para a realidade, para a importância de serem autônomas e críticas, se conscientizando que são agentes importantes da sociedade e que a transformação desta depende delas, mudando assim o rumo de suas vidas, de seu país, do mundo.

Ao planejar uma prática educativa se faz necessário nortear os objetivos, principalmente se tratando de um estudo comprometido com a pesquisa. Assim fica mais plausível a continuidade da ação intervencionista e do foco da pesquisa. Como afirma Libâneo (1994):
"[...] a prática educacional, se orienta necessariamente para alcançar determinados objetivos (...). Os objetivos educacionais expressam, portanto, propósitos definidos explícitos quanto ao desenvolvimento das qualidades humanas que todos os indivíduos precisam (...) para as lutas sociais de transformação da sociedade. (p.120)".

Objetivo em curto prazo: Promover momento de reflexão. O que é Educação Física? Como é a minha EF? Por que? O que se deve aprender? Objetivo em médio prazo: Conhecimento de vários conteúdos da Educação Física, fazendo-os pensar e repensar sobre estes e ainda terem a oportunidade de criar atividades. Incluindo as questões sociais para formarem opiniões sobre os problemas que sofrem.

Objetivo em longo prazo: Promover a autonomia frente à cultura corporal do movimento, ou seja, que elas possam conhecer os conteúdos e assim opinarem e escolherem criticamente o conteúdo a ser desenvolvido de acordo com seus interesses. Incentivando a utilização dos conhecimentos recebidos/trocados no cotidiano para assim serem agentes de transformação do mundo.

A coleta de dados vai ser feita através de anotações e observações das aulas, questionários e avaliações dos alunos e até mesmo da auto-crítica dos professores que serão analisados em conjunto nas reuniões mensais. Thiollent (2003) diz: "A coleta de dados é efetuada por grupos de observação e pesquisadores sob controle do seminário central". (p.64).

Considerações finais

O Projeto se prontifica a inicialmente mostrar a realidade para essas crianças para posteriormente contribuírem para uma sociedade mais justa. Acreditando que para a transformação do mundo é necessário iniciar a mudança em cada um, se faz totalmente obrigatório iniciar as mudanças nas classes desfavorecidas socioeconomicamente, já que se estas não enxergarem a realidade, de que são classes dominadas e manipuladas, nunca vão sair do estado de submissão, logo nunca haverá reivindicação e continuarão a enriquecer as classes dominantes, e o mundo não sairá deste estado de miséria, violência e, principalmente, de desigualdades sociais.

Obs. Os autores, Luciana Bernardes Vieira de Rezende (Lulu_ufrj@hotmail.com) e Diogo Hersen Monteiro (Hersen_ef@hotmail.com) são da UFRJ

Referências

  • Abib, P. R. J. Entre duas Concepções Pedagógicas de Educação Física Escolar: Uma síntese como proposta. Revista Digital Lecturas em Educación Físyca e Deportes. Ano: 3 N° 11, Buenos Aires, Outubro, 1998. Disponível em: www.efdeportes.com
  • Azevedo, E. S. e SHIGUNOV, V. Reflexões sobre as abordagens pedagógicas em Educação Física. Santa Catarina, 2003. Disponível em : www.kinein.ufsc.br
  • Coletivo de Autores. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo; Cortez, 1992.
  • Libâneo, J.C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
  • Ludorf, S. M. A. Metodologia da Pesquisa em Educação Física: conversando sobre a pesquisa e o projeto de monografia. Rio de Janeiro: Edição da Autora, 2003.
  • Pinto, F.M., Mendonça, M.L., JACOBS, A. Da crítica a educação física escolar à educação física escolar crítica Revista Digital Lecturas em Educación Físyca e Deportes. Ano9 N° 60, Buenos Aires, Maio, 2003. Disponível em: www.efdeportes.com
  • Taffarel, C.N.Z. Criatividade nas aulas de Educação Física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.
  • Thiollent, M. Metodologia da Pesquisa - Ação. São Paulo: Cortez, 2003.