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Originalmente, a educação brasileira estava sob a ação pedagógico-evangelizadora exclusiva dos Jesuítas. Esta atuação docente era permitida somente para o universo masculino e perdurou do século XVI ao XVIII com uma forte organização, poder e autonomia no seu trabalho. Com a abertura das escolas elementares para as camadas populares, foi necessário aumentar a mão-de-obra para atender a demanda, surgindo os colaboradores leigos. Somente em 1824, após a criação da primeira Constituição, surgiu a primeira lei que oficializou a Educação como gratuita e extensiva a todos, inclusive às mulheres, que até este momento só tinham acesso à educação religiosa através dos conventos. "Pela Lei de 15 de outubro de 1827, a mulher adquiriu o direito à educação, através da criação de escolas de primeiras letras para meninas" (Demartini & Antunes in Hypólito, 1997, p. 59).

Portanto, a inserção da mulher no magistério foi simultânea à formalização do sistema educacional no início do século XIX (Louro, 1989) e ao desenvolvimento da industrialização e urbanização próprias da formação social e econômica capitalista (Hypólito, 1997).

Nesse período de forte influência da Igreja Católica na Educação, não era permitido que os tutores fossem de sexo diferente dos alunos, sendo este um dos motivos pelos quais se admitiu à mulher iniciar sua atuação pedagógica, ao mesmo tempo em que lhe era dada a oportunidade de expandir sua própria instrução. Na metade do século XIX, foram instituídas as primeiras escolas para preparar professores/as para prática docente - as chamadas Escolas Normais - que recebiam inicialmente homens e mulheres, sendo esta uma inovação para a época. Este curso representava a única oportunidade para as mulheres que pretendiam prosseguir seus estudos após o ensino primário1, visto que o nível secundário2 era privilégio apenas dos homens e somente eles podiam ingressar no nível superior.

Nesse contexto histórico, em 1851 a ginástica foi incluída nas atividades das escolas primárias e em 1855 foi estendida ao ensino secundário do Colégio Pedro II, introduzindo oficialmente a Educação Física nos currículos escolares. Em 1876, através do Decreto nº 6370 os "exercícios graduados de ginástica e princípios gerais de Educação Física" foram inseridos também nos cursos das duas Escolas Normais criadas no Município da Corte. Uma nova regulamentação em 1882 trouxe outras determinações para a área. A primeira delas foi a "extensão obrigatória a ambos os sexos, na formação do professorado e nas escolas primárias de todos os graus, tendo em vista, em relação à mulher, a harmonia das formas feminis e as exigências da maternidade futura". Tal decreto revela que inicialmente a Educação Física também estava restrita ao universo masculino, reproduzindo o imaginário social do homem como ser forte, agressivo e ágil. Apesar de ter sido estendida para as mulheres, a prática de atividade física reproduzia estereótipos sexuais e desigualdades de gêneros na sua função de reforçar a visão de que à mulher pertencia exclusivamente as obrigações de aprender a cuidar do lar e dos/das filhos/as. A segunda determinação insere a "ginástica nos programas escolares como matéria de estudo, em horas distintas das do recreio, e depois das aulas". Revelada a falta de identidade da Educação Física, esta determinação mostra a confusão que se estabelece entre a prática cotidiana das crianças no espaço escolar e a proposta pedagógica dessa área. Por ter se apropriado do corpo teórico de diversas outras áreas ao longo de sua história, a Educação Física tem reproduzido uma visão funcionalista, mecanicista, tecnicista e fragmentada do ser humano. Por isso a impressão que se tem é "que ela perdeu ou não chegou a possuir, uma verdadeira identidade" (Oliveira, 1994). A outra determinação é de "equiparação, em categoria e autoridade, dos professores de ginástica aos de todas as outras disciplinas", revelando que desde sua origem no espaço escolar, as pessoas atuantes nessa área tem sido alvo de preconceitos e estereótipos que dicotomizam corpo e mente, quando são reduzidos a dirigentes de uma atividade "meramente" prática e desprovida de capacidade intelectual.

Tudo isso gerou a necessidade de ser criada em uma Escola Profissional de Educação Física que preparasse e selecionasse professores para os estabelecimentos de ensino. Em 1929, um projeto de lei elaborado por uma comissão de vários militares, colocou em funcionamento, sob as severas críticas da Associação Brasileira de Educação, o Curso Provisório de Educação Física no Centro Militar de Educação Física, mais tarde transformado em Escola de Educação Física do Exército, apresentando as seguintes sugestões:

I. Convém ser criada pelo governo federal a Escola de Educação Física, tendo, entre outros objetivos, o fim precípuo de preparar instrutores civis destinados às escolas primárias, secundárias e normais do País, conforme acordo que se fará, com os governos dos Estados.

II. Esse Instituto será anexo a Universidade do Rio de Janeiro.

III. Como ele ainda tardará a fornecer os instrutores necessários, o governo federal deve ficar autorizado desde já a contratar técnicos e a pô-los, sem ônus, a disposição dos Estados de menores recursos. Esses técnicos se incumbirão de neles orientar a Educação Física, junto as respectivas diretorias de Instrução Publica.

IV. Tanto os professores do Instituto acima projetado como os técnicos a que se refere a sugestão anterior, serão escolhidos dentre indivíduos, nacionais ou estrangeiros, que tenham certificados de institutos de Educação Física de reputação mundial.

V. Para a regulamentação do Instituto em projeto e para a indicação dos estabelecimentos onde devem ser buscados os técnicos necessários, convém ser criada uma Comissão de Educação subordinada ao Ministério do Interior, e composta de membros honorários representando os educadores, os médicos e os especialistas em Educação Física. (grifos da autora)

Cabe ressaltar que a formação dos primeiros profissionais nessa área se deu em instituições militares, o que caracterizou a "Educação Física brasileira como filha natural do militarismo" (Freire, 1989, p.209). As duas grandes áreas de influência, a biomédica e a militarista, contribuíram para que o corpo fosse visto de forma fragmentada e distanciada das questões sócio-culturais que lhe são inerentes (raça, classe, sexualidade, gênero etc.). Nesse contexto, torna-se necessário romper com a visão cartesiana que dicotomizou corpo e mente, considerando os sujeitos em sua complexidade, sendo esta uma discussão inevitável durante a formação profissional.

Outra questão a ser destacada, são as relações de gênero que se estabeleceram nesta formação, visto que oficialmente era exclusiva aos militares homens, deixando as mulheres à margem desse processo de formação profissional. Somente em 1943 foi criada na Universidade do Brasil, a Escola Nacional de Educação Física e Desportos, o que tornou possível o acesso de mulheres a essa área.

Entretanto cabe lembrar que ao universo feminino só foi permitida a educação formal em meados do século XIX. Até o início do século XX o acesso delas era ainda muito limitado, considerando que no final deste mesmo século, quase dois terços do total de mulheres ainda eram analfabetas (Almeida, 1996).

Esses fatores, aliados ao imaginário social de que a Educação Física era uma atividade para homens, pois a eles pertenciam as características necessárias ao exercício dessa profissão como força, agilidade, agressividade etc., contribuíram ainda mais para a demora da inserção feminina nessa área.

Até a década de 30, o magistério foi a única profissão feminina socialmente respeitada e institucionalizada. As reivindicações das mulheres ganharam maior visibilidade na segunda metade do século XX, quando os movimentos feministas tiveram maior destaque aqui no Brasil (Almeida, 1996). Somente na década de 70, a sociedade brasileira, ainda muito conservadora, começou a olhar essas verdadeiras revoluções feministas com outros olhos, não aceitando mais passivamente a imagem de reprodutoras sem direito ao prazer, não só sexual, mas o de viver a vida sem tantos tabus e preconceitos que as reprimiam fortemente. Dessa forma, essas lutas representaram a conquista pelos direitos de cidadãs, através da participação política e ingresso no mercado de trabalho.

Da década de 70 em diante, a atuação profissional feminina em outras áreas vem crescendo gradativamente, o que tem provocado uma mudança no perfil da mulher considerada frágil, submissa, procriadora e símbolo da maternidade, para a mulher lutadora, muitas vezes vítima das desigualdades sociais provocadas pelas relações de gênero. Esse movimento de ingresso das mulheres nas carreiras técnico-científicas se deu a partir das mudanças de valores culturais decorrentes dos movimentos políticos sociais desse período (Bruschini & Lombardi, 2000). Entretanto, apesar das conquistas dos anos 80 e 90, dados recentes constatam que o peso maior de mulheres encontra-se ainda em ocupações tradicionalmente consideradas femininas como magistério, enfermagem e nutrição.

Sem dúvida a expansão da escolaridade das mulheres, em conseqüência do seu ingresso maciço nos diferentes cursos universitários, representa um avanço na luta contra as desigualdades de gênero. Porém, há muito a ser conquistado. Permanecem em nossa sociedade muitos padrões sociais conservadores. A discriminação sócio-sexual no trabalho, evidenciada muitas vezes pela sutil restrição do mercado de trabalho na área da Educação Física ao universo masculino; a distinção salarial decorrente da lei da oferta e daprocura, na qual a mulher se submete à salários inferiores aos dos homens etc. Subsistem ainda a repressão e violência conjugal, as múltiplas jornadas de trabalho feminino, que continuam assumindo as atividades domésticas, de mãe, de profissional entre outras, sabendo de antemão que dificilmente terão algum apoio entre outros fatores que precisam ser transformados em nossa sociedade.

Notas

  1. Atualmente equivale às primeiras séries do ensino fundamental (1ª a 4ª séries)
  2. Atualmente equivale ao ensino médio
  3. Profissões de nível superior de prestígio como a Medicina, Arquitetura, Direito e Engenharia..
  4. Atualmente, as mulheres representam 56% do grupo universitário da UFF. Dado retirado do Jornal O Globo em 15/02/2001.

Obs. A professora é Mestranda em Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde -NUTES/UFRJ,
Especialista em Educação em Saúde Pública - ISC/UFF e Prof. de Educação Física da R. Pública RJ

Referências Bibliográficas

  • Almeida, Jane Soares de. Mulheres na escola: algumas reflexões sobre o magistério feminino. Cadernos de Pesquisa, nº. 96, fev., 1996, pp. 71-78.
  • Bruchini, Cristina & LOMBARDI, Maria Rosa. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, nº. 110, jul., 2000, pp. 67-104.
  • Hypolito, Álvaro Moreira. Trabalho docente, classe social e relações de gênero. Campinas: Papirus, 1997.
  • Louro, Guacira Lopes. Magistério de 1º grau: um trabalho de mulher. Educação e Realidade, vol. 14, nº 2, jul/dez, 1989, pp. 31-39.
  • Oliveira, Vitor Marinho de. O que é Educação Física? São Paulo: Brasiliense, 1994.