Integra

Introdução

A configuração do espaço escolar sempre esteve envolvida a um sem número de polêmicas e controvérsias. A idéia de uma crise da escola perpassou por muitos momentos a história da instituição e poderíamos mesmo dizer que é uma idéia inerente a ela (TEDESCO, 1998). Hodiernamente, são incontáveis os elementos que poderiam ser apontados como responsáveis pelo aprofundamento desse quadro, onde é preciso sempre destacar que não existem soluções messiânicas ou de fácil aplicabilidade.

Porém, antes de adentrarmos especificamente nas questões propriamente pedagógicas que estão em torno do ensino formal nas escolas, é preciso registrar um comentário no sentido de destacar que os novos desafios lançados à instituição escolar devem sempre ser pensados em relação ao quadro social de âmbito mais geral, isto é, a um conjunto de dimensões sociais mais abrangentes. No caso da contemporaneidade, essas dimensões vão se caracterizar, fundamentalmente, pela celeridade das mudanças (HOBSBAWM, 1998; SEVCENKO, 2001) e pela complexificação dos esforços de interpretação da realidade (e em contrapartida da própria instituição escolar).

Essa dimensão de caráter sociológica me parece ser uma questão chave para iniciarmos uma conversa a respeito dos desafios atuais da escola, pois elucidar e interpretar essas configurações sociais, talvez seja mesmo um pré-requisito para o desenvolvimento de meditações de qualquer natureza sobre a escola bem como suas práticas e metodologias. Desse modo, a compreensão dos atuais desafios lançados ao ensino institucional (ou seja, escolar) depende diretamente de uma teoria correta, não tanto sobre a situação atual da escola, mas muito mais de uma interpretação da sociedade como um todo. Sobre isso, Paulo Freire (1996) já havia comentando que "ensinar exige apreensão da realidade. Como professor preciso me mover com clareza na minha prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho" (p. 76). Portanto, é a partir da configuração social mais geral que devemos repensar o papel das ações educativas da escola.

A identificação de um determinado quadro social é um dado preliminar particularmente importante para a formulação de princípios pedagógicos. A partir dessa identificação pode-se formular, ainda que de modo provisório, um sistema de referências que oriente, tanto as pautas de comportamento didático-pedagógicos, quanto as atitudes e valores em jogo nas ações educativas. E nesse sentido gostaria de destacar dois aspectos da trajetória histórica recente da sociedade brasileira que me parecem particularmente importante. O primeiro deles diz respeito a um tipo de desenvolvimento econômico muito particular. Esse desenvolvimento ficou caracterizado por uma concentração de elevadíssima de renda, onde uma quantidade enorme do dinheiro ficava retida nas mãos de uma minoria reduzidíssima (PRADO; EARP, 2003). A esse processo, chama-se, convencionalmente "milagre econômico brasileiro".

Essa dinâmica foi operada durante a ditadura militar que teve início em 1964 e um dos seus efeitos mais visíveis foi a distribuição desigual de renda. conseqüências que, até hoje, expõe suas marcas na sociedade brasileira. Essa desigualdade atingiu níveis tão brutais que chegou-se mesmo a criar a expressão "brazilinization" para descrever processos sociais desse tipo (MELLO; NOVAIS, 1998).

Uma sociedade estratificada nesses termos terá o acesso seletivo e restritivo não só no que diz respeito aos bens de ordem material, mas também a todos os outros patrimônios. Isto é, numa sociedade em que a diferença de acesso à riqueza entre ricos e pobres é enorme, a diferença de acesso aos bens de ordem simbólica também serão enormes. Há, nesse sentido, uma correspondência entre as esferas materiais e imateriais. Mais ainda: não só o acesso a determinados bens materiais e simbólicos serão negados como a própria produção simbólica desses bens vindos das camadas economicamente desfavorecidas tende a ser desqualificada. Suas visões de mundo, seus valores e suas crenças, que refletem suas situações de vida e seus interesses particulares serão negados como tal e acusados de ilegítimo, impróprios e inadequados.

A escola, produto dessa mesma dinâmica de trocas simbólicas, também tende a reificar um único padrão de organização cultural dentro dos muitos padrões que seriam possíveis. Em verdade, a escola canoniza aquele padrão de cultura associado a uma cultura erudita.

E é sob essa perspectiva que se apresenta o segundo aspecto histórico-sociológico que me parece importante: aquele que diz respeito a uma ampla expansão dos sistemas educacionais. Essa expansão apresentaria à instituição escolar uma problemática relativamente nova, pois, junto com a consolidação da posição social das classes médias urbanas, universalizava-se, pouco a pouco, uma série de serviços públicos dentre os quais o acesso à escola (que até então, era quase uma exclusividade dos filhos de classe média).

Muitos dos trabalhadores comuns puderam ainda colocar seus filhos em escolas públicas e a família passou a ter acesso ao sistema de saúde. Em 1980, estavam matriculados no ensino fundamental proporcionado por estados e municípios nada menos do que 17,7 milhões de alunos (contra 6,5 milhões de 1960) (MELLO, NOVAIS, 1998, p. 621).

A análise de Maria Hermínia Almeida eWEIS Luiz Weis (1998) apontam na mesma direção:

Na segunda metade dos anos 60, o Brasil dispunha de um sistema universitário nacional, mas apenas 2%, se tanto, da população entre vinte e 24 anos estava matriculada em alguma faculdade (trinta anos depois, seriam 12%). Entre 1965 e 1970, por mínima que continuasse a ser a parcela de estudantes de nível superior na faixa etária correspondente, os números absolutos deram um salto sem precedentes: nesses seis anos, o total de universitários aumentou 2,7 vezes, passando de 155 mil para 425 mil (ou algo como 5% do seu grupo de idade) (p. 363).

A expansão dos sistemas educacionais traz consigo um nível de tensão que parece surgir da própria estrutura de organização da escola, profundamente associada aos fundamentos, princípios e valores tipicamente ligados a "cultura burguesa". A progressiva entrada de alunos egressos das camadas mais populares desestabilizava, em alguma medida, boa parte desses mesmos fundamentos. Em geral, os alunos egressos das camadas mais pobres não compartilham as mesmas crenças, os mesmos valores e as mesmas convicções dos filhos de classe média. Ao contrário, eles trazem consigo uma bagagem cultural e uma cosmologia muito distinta daquela difundida e mesmo requisitada pela cultura escolar. Mais do que isso, esses alunos não dominam os mesmos códigos culturais difundidos e requisitados pela cultura escolar, pois seu lugar de enunciação e seus códigos de conduta tende a assumir um caráter bastante diferente daquele associada à escola. E nesse sentido, poderíamos mesmo falar num choque cultural entre a cultura escolar e a cultura dos alunos pobres.

Ao invés da escola tentar reorganizar estruturalmente para atender as demandas e necessidades desses novos grupos de alunos que se apresenta, o que se tenta fazer é impor, à força bruta, uma cultura relativamente estranha a esses mesmos alunos. Em outras palavras, a estrutura organizacional da escola parece não estar disposta a nenhum nível de negociação dos seus pressupostos culturais e das suas tradições. A escola parece não estar disposta a abrir mão de alguns conteúdos ou incorporar novos conteúdos culturais. Parece mesmo estar fechada para todos aqueles habitus estranhos a sua estrutura cultural tipicamente de classe média. As dinâmicas culturais da escola parecem fundadas muitas mais num monólogo que num diálogo.

Dito de outra forma, essa franca expansão dos sistemas educacionais traz à tona um problema que antes talvez pudesse passar despercebido: o problema do capital cultural.

Capital cultural

O conceito de capital cultural foi formulado por Pierre Bourdieu e se tornou uma noção indispensável para pensar sobre a questão da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais. Com base em análises estatísticas, Bourdieu observou uma correlação entre algumas variáveis pertinentes ao perfil da família e o sucesso escolar de seus filhos. Entre essas variáveis poderíamos citar: a) a formação cultural dos antepassados da primeira e da segunda geração, b) o local de residência da família (centro ou periferia), c) o ramo do estudo secundário (profissionalizante ou propedêutico), d) o tipo de estabelecimento de ensino (público ou privado) do estudante, d) o modelo demográfico da família ou ainda e) o sentido da trajetória social (ascendente ou descendente) do chefe do grupo familiar (apud. SETTON 2005).

Mas é importante salientar também que nenhuma dessas variáveis desempenharia, isoladamente, um fator determinante. Inversamente, o que existem são fatores (diversos) extra-escolares, sobretudo de ordem econômica e cultural, que influenciam poderosamente o desempenho e o aproveitamento escolar de estudantes. Em outras palavras, as diferenças de acesso aos bens da cultura entre as famílias pobres e ricas são fatores responsáveis pela variação no comportamento e no rendimento relativos aos estudos. Ou seja, "cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar" (BOURDIEU apud. SETTON 2005).

Desse modo, a posse de um certo capital cultural e de um ethos familiar predisposto a valorizar e incentivar o conhecimento escolar são importantes elementos para se alcançar um sucesso acadêmico. Neste sentido, crianças ricas e com mais facilidades para acessar aos bens culturais valorizados e exigidos pela tradição escolar tem maiores chances de obter um bom desempenho escolar. Em resumo, a noção de capital cultural chama a atenção para as diferenças nas condições de acesso e de apropriação de uma cultura. Em decorrência, aponta para as condições diferenciadas de aquisição de determinados padrões de cultura, nesse caso, da cultura escolar.

Compreendida nesses termos, a dimensão simbólica da vida - ou para formular em termos mais diretos, a cultura - constituiu um tipo particular de capital igualmente responsável pela desigualdade. Em última análise, a cultura constitui-se num recurso social, fonte de distinção e de poder. Ainda mais em sociedades onde a posse desse recurso, isto é, de determinados códigos culturais que são valorizados, configura-se num privilégio de poucos e num símbolo de distinção social.

Esse capital de cultura - elemento de diferenciação e distinção - pode ser cultuado de várias formas, sobretudo por um conjunto de estratégias e rituais de consagração para que seja legitimamente aceita e reconhecida por todos (como, por exemplo, através de exames de seleção, valorização e aquisição de diplomas, formaturas, ou no acesso a determinados filmes, na visitação a museus ou concertos musicais ou na realização de viagens). Assim, opera-se um processo de valorização sistemática de uma dada cultura, onde é a própria diferença de acesso a essa mesma cultura, sistematicamente valorizada pelos ritos, que vai conferir poder e diferenciação as pessoas que tem condições sociais de acessa-la e dominar seus códigos, habilitando-os, por exemplo, a apresentar os melhores desempenhos escolares.

O tipo específico de atribuição de valores simbólicos, ou da distribuição do "capital cultural" determina então o modelo de estratificação social, pois, "ao lado da luta de classes econômicas, também uma luta de classes simbólicas, pois a luta não é só em torno da distribuição de bens e serviços, mas também, em torno dos valores corretos, dos padrões legítimos e dos estilos de vida distintivos de classe" (BRACHT, 2003, p. 53).

É nesse mesmo sentido que destacamos as considerações de Bordieu (1983) sobre os mecanismos de reprodução cultural, onde a dominação de uma classe social não operaria somente no âmbito econômico. Seguindo o raciocínio do sociólogo, a dominação de uma classe opera também pela cultura do vivido, ou seja, pela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver e de ouvir, de tal forma que o que as pessoas vêm a pensar e a sentir é a reprodução de uma ordem social.

Certa vez o antropólogo Malinowsk (apud. KULA, 1977, p. 577), afirmou, provocativamente, que conhecia somente uma prova da superioridade da civilização ocidental sobre as chamadas "selvagens", e que esta eram os cânones. Deslocando essas reflexões para a análise dos processos de estratificação social ou para os mecanismos de atribuição de valores a uma cultura particular, poderíamos parafrasear-lhe dizendo que só existe uma prova de superioridade da alta cultura ou cultura erudita sobre a cultura iletrada, e que esta é o cânone. E é exatamente a discussão em torno da canonização de uma determinada cultura que o conceito bourdiano de "capital cultural" expressa.

No entanto, é sempre bom lembrar que nenhum poder hegemônico é capaz de abarcar todas as dimensões de uma cultura. Existe sempre uma disputa em torno da legitimação de uma determinada cultura. Neste sentido, os segmentos populares, ou seja, os segmentos que possuem uma cultura desvalorizada simbolicamente, não são destituídos de recursos que os habilitam a participar das lutas simbólicas. Ao contrário, essa distribuição desigual estimula o conflito.

No caso específico da cultura escolar, esse conflito se manifesta de forma cada vez mais explícita na recusa dos alunos diante de todo o modus operandi da escola. Parece mesmo que a escola perdeu sua eficácia simbólica e sua capacidade de convencimento e de transmissão de valores e conteúdos culturais. E essa perda de eficácia parece estar atrelada a imposição de novos códigos de recepção que a entrada de alunos pobres oriundos das camadas mais populares põe em jogo.

E, contraditoriamente, a instituição escolar, quando compreendidas em sua inteireza, não se abre (ou não quer se abrir) a essas possibilidades de conflito e questionamento. A escola não se abre para a possibilidade de questionamento dos paradigmas culturais que orientam seus currículos.

Obviamente, e afastando-nos de qualquer posição maniqueísta e reducionista, ao militar por uma escola que seja capaz de dialogar mais intensamente com culturas diversas, não pretendo extinguir por completo os conteúdos estabelecidos nos currículos escolares sob o argumento que são uma espécie de imposição de valores culturais, ainda que, em alguma medida, é isso mesmo que eles sejam.

Concretamente, não é possível fechar os olhos para o fato do ensino tecnocrático e propedêutico, por exemplo, constituírem os conteúdos socialmente mais valorizados cujo domínio é capaz de garantir, inclusive, uma certa respeitabilidade pública ou o acesso a determinadas posições sociais.

Atualmente, o dilema mais profundo que se apresenta a instituição escolar é: como estabelecer um regime educacional de democracia cultural plena numa sociedade severamente estratificada que reifica uma determinada cultura? Nesse caso, tem-se, por um lado, a idéia de tentar difundir para todos os valores da cultura hegemônica, ou seja, garantir a todos o acesso integral a uma cultura que reflete os anseios, os valores e as convicções de um grupo social específico e bem determinado. Por outro lado, tem-se o desejo de formular princípios pedagógicos diferenciados e que estejam organicamente ligados aos interesses e valores das classes populares.

Um exemplo desse dilema seria o eterno conflito entre formular-se uma pedagogia que valorize os elementos críticos e reflexivos, capazes de estimular uma tomada de consciência das condições de organização social ou, ao invés disso, planejar-se um ensino mais pragmático orientado para finalidades mais imediatas como, por exemplo, a aprovação no vestibular. Por mais que nos inclinemos a escolher a primeira opção, não é possível negar totalmente a viabilidade, ou mesmo a necessidade da segunda, haja vista que a escola esta submersa e uma dinâmica social que foge ao seu controle e é obrigada a dialogar com ela permanentemente.

Todo esse quadro me parece causar um profundo anacronismo que acaba expurgando o interesse dos alunos para longe da tradição cultural escolar. E nesse sentido, mais grave do que a evasão física é a evasão simbólica. Mais grave é o descrédito e a descrença dos alunos para com os valores propugnados pela escola.

Ao mesmo tempo, devemos ter em mente que a igualdade não pode ser conseguida apenas através da difusão da cultura hegemônica. A obtenção da igualdade depende muito mais de um reordenamento axiológico de toda a cultura. Onde a questão não se resume apenas a ganhar o acesso as instituições e formas de conhecimento tipicamente associados as classes médias. A questão mais radical é tentar transformar essas mesmas instituições de modo que elas possam refletir os interesses e as experiências não só das classes médias, como também das camadas mais populares. O simples e irrestrito acesso de todos a cultura hegemônica (leia-se, erudita) poderia tornar pobres e ricos mais ou menos iguais, mas num mundo cujos valores e concepções seriam ainda definidos pelos ricos. Como fala-nos Maria Elisa Cevasco (2003) ao comentar o conceito de cultura em comum de Raymond Williams:

Não há nenhuma possibilidade de se chegar a uma cultura comum por meio da difusão e extensão dos valores de um grupo específico a todos os outros, pois uma cultura comum não é a extensão geral do que uma minoria quer dizer e acredita, mas a criação de uma condição em que as pessoas como um todo participem na articulação dos significados e valores.

Tomaz Tadeu da Silva (2002), comentando o mesmo processo, oferece um exemplo bastante ilustrativo nesse sentido. O exemplo mencionado refere-se ao mundo dos anões. Ainda que todos os anões conseguissem inserção no mundo das pessoas com maior estatura, elas ainda estariam submetidas às regras e convenções determinadas pelos "outros".

De acordo com essas interpretações, três tarefas articuladas entre si me parecem mais urgentes: (1) uma desobliteração radical do acesso a cultura, (2) abertura a incorporação de novos padrões de organização cultural e (3) incorporação de estratégias metodológicas que tenham a mediação cultural como princípio orientador.

Lazer e animação cultural

Considerando-se essas problemáticas levantadas, um princípio metodológico que pode transformar-se em algo de grande utilidade é a incorporação da animação cultural como princípio norteador da elaboração de propostas pedagógicas. Trata-se de um conceito bastante complexo e que, dada sua relativa utilização, ainda é cercada por uma certa quantidade de polêmicas e controvérsias. Mas para evitar possíveis mal entendidos, estarei chamando por animação cultural, o processo pedagógico que tem na cultura seu principal foco e estratégia de intervenção e que opera, fundamentalmente, mas não exclusivamente, nos momentos de lazer (MELO, 2004).

Seguindo os argumentos de Melo (ibid.), esse conceito parece mais adequado do que outras expressões correntes utilizadas no Brasil, tais como Recreação, por exemplo. Esse último, aliás, por conta da sua trajetória histórica, evoca em seus sentidos e significados uma série de elementos ligados a iniciativas de controle e instrumentalização do lazer, especialmente do lazer operário.

Sob essa ótica, minha proposta tem sido a de uma ampliação do espaço-tempo de intervenção da Educação Física, incluindo e abarcando o do lazer, que permitiria entre outras coisas, o abandono de um espaço educacional saturado e viciado como é o tempo de ensino formal (ARROYO, 2002). E em segundo lugar, e uma vez mais uma decorrência do primeiro, a incorporação de outras linguagens culturais ao ensino da Educação Física, que é somente uma maneira diferente de dizer que se amplia e se flexibilizam os conteúdos permitindo ao professor assumir uma função de mediador cultural.

No entanto, é importante destacar que a pura e simples adoção e/ou implementação da animação cultural não é suficiente. O fundamental é tentar assumir uma perspectiva diferenciada de intervenção pedagógica o âmbito da cultura, pois a própria animação cultural pode seguir paradigmas diferenciados. Dentre os mais influentes, destacaria o paradigma tecnológico, interpretativo e dialético.

Na primeira perspectiva, o profissional atua como um "engenheiro cultural", verticalmente identificando e implementando o que julga necessário para seu público, sem solicitar uma participação ativa deste na definição dos caminhos a seguir: o animador é único responsável por descrever e prescrever ações e soluções [...] Na perspectiva interpretativa, o animador cultural atual como um "formador cultural" [...] O animador cultural que atua na partir da perspectiva dialética pretende construir uma democracia cultural.

Entendendo que a realidade é complexa e historicamente construída, percebe que é fundamental gerar movimentos comunitários. Não se trata de impor uma programação nem somente convidar, mas gerar propostas em conjunto com o público, a partir de seu envolvimento (MELO, 2004, p. 13).

Trata-se de recusar tanto um tipo de pedagogia excessivamente vertizalizada, determinada de cima para baixo, quanto uma excessivamente horizontalizada. Trata-se então de transitar em meio a complexidade dos dilemas e tensões culturais e tentar assumir uma postura que fosse "horizontal" (MELO; ALVES JUNIOR, 2003).

Evidentemente, isso não anula a importância do professor. Para longe disso, o professor passa a ser, verdadeiramente, um elemento fundamental nesse processo. Ele atua como um elo de ligação; um agente mediador.

o animador cultural deve ser fundamentalmente um estimulador de novas experiências estéticas, alguém que, em um processo de mediação e diálogo, pretende apresentar e discutir, induzir e estimular, o acesso a novas linguagens; um profissional que educa ao apresentar possibilidades de melhor sorver, acessar e produzir diferentes olhares (MELOe ALVES JUNOR, 2003, p. 42).

Na prática, trata-se da realização cotidiana de um processo de estímulo e sensibilização a necessidade do lazer, e de maneira mais profunda, da sua compreensão e aceitação como um direito de cidadania. Uma tentativa de ampliar as possibilidades de lazer dos alunos, estimulando e garantindo o seu acesso a patrimônios culturais como, por exemplo, o teatro, o cinema, os esportes, a dança, as artes visuais e a literatura.

Para tal, evidentemente, é preciso pré-disposição para renegociar fronteiras disciplinares, quando não, coragem e ousadia para implodi-las definitivamente. Ao mesmo tempo, os mais temerosos não precisam apavorar-se. Isso não significa abdicar de alguns conteúdos de ensino já consolidados nas grades escolares, como o esporte, por exemplo. A discussão aqui gravita em torno tanto da forma quanto dos conteúdos. Redimensionam-se, simultaneamente, as formas e os conteúdos.

Exemplificando: no caso das atividades físicas em geral, é importante oferecer uma abordagem que as tratem em todas as suas particularidades, sem abrir mão do oferecimento de uma certa variedade de atividades. Em outras palavras, o ensino desse conteúdo específico da Educação Física, tradicionalmente tratado pelo viés da técnica, deve passar a ser visto como uma linguagem cultural poderosíssima, de alta penetrabilidade e mobilização social, onde não e possível separar a formação intelectual da moral; ou a ética da estética. Se nos perguntarmos porque a classe dominante foi, é ou tem sido permissiva quanto ao acesso universal a escola, perceberíamos que o que é oferecido às classes populares são migalhas. O treino técnico do operário chega mesmo a ser estimulado pelo empresário. O que lhes é negado é a formação. Do mesmo modo, na escola se oferece um adestramento, nunca um estímulo ao pensamento crítico.

Dessa maneira, os fenômenos da cultura corporal não devem ser tratados em desconexo com o todo social, pois nesse caso, estaríamos impedindo uma prática reflexiva acerca desta linguagem, que em nada contribuiria para a formação do cidadão. O aprendizado de elementos da cultura corporal, quando dimensionado como um acúmulo de gestos técnicos, esvazia as possibilidades verdadeiramente educativas, pois os conteúdos de ensino devem ser tomados apenas como meio para se alcançar um objetivo mais amplo - nesse caso, a formação humana - e não como um fim nele mesmo. O ensino da técnica justificado pela própria técnica não permite desdobramentos, exatamente porque se encerra nele mesmo.

Sob a ótica da animação cultural: mais do que simplesmente estimular as pessoas à prática de atividades físicas, é importante tentar conscientizá-las sobre os sentidos e significados dessas práticas na ordem social contemporânea. É importante que as pessoas aprendam a desvendar, de forma crítica, os discursos difundidos com constância pelos meios de comunicação sobre a prática de atividades físicas, percebendo como tais discursos carregam valores deturpados ou mitos. É preciso esclarecer essas dimensões do esporte para o público [...] é preciso lembrar que devem ser desenvolvidos modelos de prática esportiva próprias e adequadas às peculiaridades dos momentos de lazer, sendo um equívoco reproduzir e estimular modelos já configurados (MELO e ALVES JUNIOR, 2003, p. 41).

Conteúdos tradicionalmente oferecidos, tais como o esporte, podem continuar configurando como uma ferramenta educativa privilegiada.

Em verdade, não é preciso abandona-las. Esses conteúdos precisam se transformar em práticas que preconizem um padrão organizacional razoavelmente diferenciado, ao mesmo tempo em que sejam dotados de um contorno alternativo àquele assumido pelo modelo esportivo tradicional (leia-se, esportes de alto rendimento).

Pautar e valorizar as aulas a partir de elementos quase sempre menosprezados pelo atual sistema educacional como, por exemplo, o caráter informal ou a ludicidade, representa uma dose de desafio, mas que, ao mesmo tempo, é dotado de um promissor valor educativo.

Paulo Freire (1996) já fizera alguns importantes apontamentos nesse sentido quando afirmara que "é uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência de saber" (p. 49).

Paulo César Carrano, no mesmo sentido, diz que: Poderia se afirmar que o princípio básico do processo educacional formalizado é o de tentar reduzir os níveis de informalidade e imprevisibilidade do sistema. Essa orientação para a sistematização e controle unívoco dos processos educativos tende à linearidade e ao fechamento das práticas, impedindo que se enxergue potencialidades educativas naquelas situações que fogem ao controle pedagógico. O circuito de continuidade e previsibilidade acaba por limitar as possibilidades comunicativas da instituição escolar com a cultura vivida de seus alunos, que são permanentemente desafiados por um mundo de descontinuidade e movimentação (CARRANO, 2002, p. 57).

Assim sendo, a incorporação dos fundamentos do lazer e da animação cultural às aulas de Educação Física pode trazer em seu bojo perspectivas distintas que estejam atreladas ao desenvolvimento pessoal, ao estímulo de novas experiências, a produção de novos olhares, a novos procedimentos de mediação e diálogo e finalmente a valorização estética, das sensibilidades, do gosto e do prazer. Nas próprias diretrizes para os conteúdos da educação básica deverão compreender, de acordo com a lei 9394, Art. 27, Item IV, "a promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais" (BRASIL, 1996, o grifo é meu).

Todo esse processo deve considerar o gosto estético dos alunos, seus interesses intelectuais e sua curiosidade. E que isso não seja interpretado como subserviência aos saberes do educando, que nesse caso, seria tão ruim quanto à postura arrogante e presunçosa de quem impõe um conhecimento como verdadeiro. O desafio é ir apresentando-lhes a necessidade de superar e ampliar as noções com que interpretam o mundo. Dito de outra forma, uma abertura dos canais de participação, onde os alunos tenham espaço para se expressar e exprimir suas opiniões acerca dos procedimentos de ensino.

Não existe ensino sem aprendizagem. Além do mais, a razão de ser da escola é o próprio aluno. E nesse sentido, ouvi-lo, escuta-lo, não parece ser demais. Lembremos ainda que o trabalho do professor é o trabalho do professor com os alunos, simultaneamente, e não do professor consigo mesmo. É impressionante a recusa da escola em pôr-se a ouvir os alunos. Essa situação me serviu muitas vezes de inspiração para a galhofa e para piadas. Costumo brincar com os outros companheiros de trabalho dizendo-lhes que a escola é muito boa, o que atrapalha são os alunos. As aulas de muitos professores, a minha mesmo, seria excelente, se lá não estivessem os alunos a atrapalharem com seus barulhos, indisciplina e legítima rebeldia. Imagino sempre o dia em que ministro a melhor das aulas para uma sala vazia, falando para as paredes, sem barulho, sem inquietação, sem vida, onde posso divagar pelo mundo das idéias... Sozinho evidentemente!

Uma situação assim seria cômica se não expressasse a falência comunicativa da escola e de seus métodos de ensino. Seria, portanto, trágica. É preciso que busquemos um melhor entendimento acerca das expectativas dos alunos sobre a escola, sobre as aulas, sobre os conteúdos. A maneira como os alunos percebem o professor é fundamental no processo educativo. Por isso mesmo é um tipo de informação que deve se buscar. "A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo, mas também de como o aluno entende como atuo" (FREIRE, 1996, p. 109).

Nesse sentido, penso que seria muito frutífero que ao longo do período letivo fosse permitido aos alunos expressar o que pensam sobre o professor, sobre a escola, sobre as aulas, sobre seus colegas de turma e porque não, sobre si mesmos. A organização de conversas que permitam aos alunos dizerem o que houve de melhor e pior nas aulas presta-se muito bem isso. O que eles aprenderam ou deixaram de aprender? Que conteúdos eles gostariam de ver difundidos na escola? Como eles avaliam o professor e as relações que esse estabelece com a turma? Como eles avaliam o próprio empenho na construção das aprendizagens? Que sugestões, mudanças ou alterações eles teriam a propor ao funcionamento das aulas e mesmo da escola?

O mais importante não parece ser transformar as aulas de Educação Física num momento de lazer, mas, ao invés disso, dimensiona-lo numa perspectiva do lazer. Na prática, trata-se de orientar o ensino rumo a princípios que considerem mais seriamente as dimensões subjetivas do processo de ensino-aprendizagem.

Nessa direção me parece que reside algum nível de contraposição a aquilo que é um dos elementos norteadores da escola: o trabalho.

Desde sempre a escola assumiu um ar altamente tecnicista e objetivo, com o franco predomínio de elementos racionais, utilitários, pragmáticos, performáticos e tecnocráticos, sem espaço para o estímulo das subjetividades. Por fim, não ambiciono que a reflexão que esse breve ensaio por ventura possa desencadear seja orientada a busca de respostas. Ao contrário, gostaria que ele se potencializasse em novas e mais questionamentos em torno da Educação Física na escola.

Obs. O participante de mesa redonda, prof Cleber Augusto Gonçalves Dias é professor da UFRJ

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