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 A memória como propriedade neuronal, é portanto um aspecto centralizado da existência humana, situando-o no presente, considerando o passado, e projetando-o para o futuro. Fornecedora das bases do conhecimento, habilidades, sonhos, planos e anseios, é constituída por fatores que ordenam a aquisição, o armazenamento e a recuperação de informações em ocasiões apropriadas. Não há memória sem aprendizagem, ou vice-versa, esta aquisição de novos conhecimentos do meio são as impressões que através das sensações atingem o nível superior da consciência atual. Esses processos aprendidos conferem ao ser humano as bases para adaptar e sobreviver ao meio em que vive.


 As bases das modernas pesquisas em Neurociências na investigação dos processos mnemônicos, centralizam-se em dois objetivos. Primeiro visando à identificação de áreas cerebrais no controle de armazenagem dos diferentes tipos de memória. O segundo, elucida as alterações celulares e bioquímicas que ocorrem entre os neurônios durante o processo da aprendizagem com a aquisição das informações e alterações ambientais. A sistematização dessas correntes na ciência moderna, preocupa os filosófos e psicológos no entendimento comportamental holístico do ser humano. Os estudos para localização e interpretação das áreas cerebrais, como se pode observar através da literatura, começaram no século XIX, onde a neurologia foi dominada por duas escolas de pensamentos opostos. Desenvolve-se esses pensamentos a partir do final do século XVlll, quando o neuroanatomista Franz Joseph Gall (1757 - 1828), fundou a Frenologia, surgindo primeiro na Europa, onde gozou de sucesso entre alguns intelectuais e seguidores. "A frenologia, para os que tinham prática nessa arte, o exame das saliências na cabeça de uma pessoa o revelava talentos e características psicológicas; os traços de caráter, afirmava Gall, eram controlados por regiões específicas no cérebro." (Rosenfield, 1994). "Misturando psicologia primitiva, neurociência e filosofia prática, sua influência foi notável na ciência e nas humanidades durante a maior parte do século XIX, embora essa influência não tenha sido amplamente reconhecida e os influenciados tenham tido o cuidado de se distanciar do movimento." (Damásio, 1995). Entre esses influenciados, podemos encontrar Bouillaud, discípulo de Gall, que comparou-o à Copérnico, Galileu e Newton, tendo-o considerado como um dos "grandes messias da ciência". Outro discípulo e genro Aurburtin, que continuou os seus estudos sobre a "sede da faculdade da linguagem", proferindo em 1861, uma conferência na Sociedade Parisiense de Antropologia, onde assistiu Broca afirmar: "quando um dos doentes afásicos morrer e eu não encontrar qualquer lesão nos lóbulos frontais, eu renunciarei às minhas ideias" (Fonseca, 1995). Na América foi introduzida por um discípulo e amigo de Gall, Johann Caspar Spurzheim.


 Quando disparava em difusão, a frenologia e suas ideias, Gall visitou a cidade de Voga na França, sendo ridicularizado pelo mais eminente neurologista da época, Flourens, no auge de sua forma, que no meado do século XVIII, executou experiências com cérebros de aves acreditando haver demonstrado e concluído que atividades como a marcha e o vôo não eram dependentes de nenhuma área específica do cérebro. Os registros literários constam que temos ai o primeiro ensaio sobre a visão holística de como interage o cérebro na aprendizagem, mesmo empiricamente.


 Em 1861, os neorulogistas Paul Broca, na França e Karl Wernicke, na Alemanha, chamam a atenção com seus estudos sobre lesões cerebrais em doentes. Demonstram de forma independente que a lesão de uma área específica do córtex cerebral causa graves problemas de linguagem e incapacidade de falar fluentemente. Os distúrbios da linguagem, tornam-se conhecidos como afasia. Wernicke observou em pacientes "post montem", que porção do lobo temporal encontrava-se parcialmente destruída, e notou que o aspecto das faculdades linguísticas afetadas eram diferentes das identificadas por Broca. As descobertas de Broca e Wernicke influenciaram e foram agarradas por Ferrier e Harlow, até então influenciados pelos seguidores da frenologia. Esses neurologistas, acompanharam o caso Phineas Gage, bastante conhecido na literatura neurológica, até o seu falecimento em 1861.
A visão holística começa a ser seriamente contestada, ao ponto de reunir em Londres, 1881, o VII Congresso Internacional de Medicina, que teve como tema principal, a localização das funções cerebrais.


 As investigações da memória e sua localização continuam intrigantes até a atualidade. Tendo sua primeira proposição segundo alguns pesquisadores sobre a existência de alterações celulares subjacentes a formação de memórias feita pelo psicológo canadense Donald Hebb em 1940, sobre a estrutura e as conexões entre os neurônios. Hebb, baseado nos trabalhos de Lorente de Nó, propôs que durante a situação de aprendizagem um neurônio estimula outro, de tal forma que a sinapse entre eles é fortalecida e isso poderia produzir alteraçoes estruturais, (Damásio, 1995). Segundo esse mesmo autor, as consequências desse arranjo são as seguintes; (1) o que um neurônio faz depende do conjunto (Assembly) dos outros neurônios vizinhos no qual o primeiro se insere; (2) o que os sistemas fazem depende de como os conjuntos se influenciam mutuamente numa arquitetura de conjunto interligados: (3) a contribuição de cada um dos conjuntos para o funcionamento do sistema a que pertence depende da localização nesse sistema. De acordo com as idéias acima, o armazenamento dessa informação ao nível estrutural poderia explicar o fenômeno da memória. Sendo a Teoria de Hebb de um valor heurístico para a aprendizagem mnemônica.


 Dando prosseguimento as investigações da base neural dos traços de memória ou engramas, como os denominou o famoso psicológo dos anos 50, Karl Lashley, que dediciou sua vida a pesquisa da investigação de sítios no sistema nervoso central onde estariam os engramas. O engrama pode ser definido como um traço permanente deixado no protoplasma tecidual do cérebro, partindo de uma idéia fundamental como se fosse um átomo do conteúdo mental. "Os engramas de conteúdo relacionado, se alojam próximo uns aos outros, quanto maior for a distância entre o engrama do cérebro, mais distante seria a associação mental entre as idéias que os mesmos representavam."(Somjen, 1986) . Nos dias atuais essa concepção relacionista é considerada absoleta, mencionada em várias publicações para originar o termo "engrama". Os estudos de Lashley, refletem suas conclusões que frequentemente encontramos na literatura onde "não é possível demonstrar a localização isolada de qualquer vestígio de memória em nenhuma parte do sistema nervoso. Determinadas regiões podem ser essenciais para a aprendizagem ou para a retenção de uma atividade específica, mas o engrama está representado em toda parte."(Brandão, 1995)


 Esta afirmação de áreas mais ativas no processo da aprendizagem e retenção da memória, foi pesquisada por W. B Scoville, em 1953, realizando neurocirurgias que consistiam na remoção bilateral do hipocampo em pacientes. Constatava-se que os mesmos tornavam-se amnésicos aos procedimentos seguidos à cirurgia. A interferência ficou realmente constatada no armazenamento e evocação sem afetar a aquisição da memória. A teoria de Lashley, sobre o armazenamento ficou conhecida como "sítios fixos de engramas".


 Outras teorias surgiram e entre elas encontra-se a teoria da "plasticidade das conexões sinápticas", onde refere-se que a prendizagem resulta das alterações e das características funcionais e estruturais de transmissão das sinapses como resultado de processos adaptativos ao material de informação. Sua hipótese surgiu no final do século XIX, advinda das escolas do pensamento de Pavlov ao estudar a aprendizagem em animais com condicionamento clássico.


 A teoria da "equipotencialidade e tipo de massa" (última versão da teoria holográfica cerebral). Um artigo famoso publicado por Lashley nos anos em que buscava a localização do engrama, negava a existência de vias reflexas condicionadas com localizações anatômicamente fixas. Neste artigo é proposto um conceito novo no estudo da memória de acordo com a evocação que implicaria na reativação de um prévio modelo de excitação neuronal. Esse modelo teórico implica que qualquer recordação não poderá ser evocada por um grupo específico de neurônios e sim por muitos grupos localizados em várias regiões cerebrais.
Este conceito propôs uma nova teoria em que sugere o cérebro como armazenador de informações de maneira análoga a holografia laser, no holograma. Os questionamentos as doutrinas localizacionistas, segundo essa teoria é concepção de que aquilo que olhamos, tocamos ou ouvimos, só tornará possível sua existência quando comparada a um traço mnemônico armazenado numa área cerebral associativa e especializada espalhadas por todo o córtex cerebral.


 Corroborando essa teoria, os estudos sobre memória na visão contemporânea, mostram as regiões cerebrais contendo neurônios com propriedades necessárias para a atividade mnêmica em todas as regiões, mesmo que algumas estruturas possam atuar com maior envolvimento que outras.


 Uma nova teoria que rege sobre a codificação química das recordações, surge depois do descobrimento da natureza do código genético dando ênfase a idéia de que as experiências adquiridas através da aprendizagem de um indivíduo poderiam ser armazenadas no cérebro de maneira similar as espécies que armazenam a experiência em informação genética nos núcleos celulares. Assim nasce a teoria "codificação das recordações" dentro da estrutura macromolecular.


 O armazenamento das informações que a aprendizagem supõe, tem sido objeto de hipotéses neurofisiológicas e suas pesquisas retomam a existência de três tipos de memória classificadas como: a memória sensorial, fenômeno que permite aos indivíduos repetir e lembrar quantidades pequenas de informações. O substrato anatômico considerado para essa memória e o córtex de associação auditiva. A memória de curto prazo ou memória primária, envolve um período maior e está associada a integridade do lobo temporal profundo.


 A memória de longo prazo, permite aos indivíduos recordarem outras pessoas, acontecimentos, números, palavras etc., durante muitos anos. Podendo ser subdividida em memória secundária (duração variável de minutos a anos) e memória terciaria, onde estão armazenadas as informações relativas as funções básicas do cotidiano como a fala, a escrita, as atividades motoras e outras funções essenciais. A integridade dessas memórias está consolidada de acordo com as pesquisas ao hipocampo e as estruturas adjacentes.A associação e recordação do conhecimento consolidado através da educação e experiências, necessita de um dispositivo neuronal que una as estruturas da base do córtex cerebral. Tal dispositivo é conhecido como o circuito hipocampo-mamilo-talâmico de Papez, permitindo a consolidação que cria marcas mnêmicas estáveis até sua evocação.


 A memória no sentido holístico é vista como interação de todas as áreas cerebrais na evocação de uma impressão que chega a consciência atual. Nessa visão o esquecimento é relacionado como resultado da falta de utilização das marcas mnêmicas que dependem de conexões neuronais sendo estimuladas através de impressões sensoriais.


 Através de estudos científicos, um número maior de cientistas da área neurológica, defende a tese de que só o exercício garante a rapidez de raciocínio, a articulação mental, uma boa memória e outras atividades cerebrais. Desta forma não há idade limitante para evocação das marcas mnêmicas e também para a aprendizagem. Existe sim, uma mudança estratégica que permita a mente manter-se perceptiva, atenta, motivada e pensante (PAMP) na consolidação de novos conhecimentos e evocação dos já aprendidos.
Concluindo este artigo pode-se estimar que o cérebro humano possui cerca de 100 bilhões de neurônios, o que representa cerca de dois por cento do peso corporal, dos quais perecem diariamente uma média de 1000 a 100 000 numa atividade cerebral que elimina neurônios responsáveis por atividades que declinam com a idade, denominada "morte neuronal programada" ocorrendo no envelhecimento biológico normal. Estima-se que dos 30 aos 80 anos, isto equivale uma perda de 300 milhões até 3 bilhões de células ganglionares, ou seja, um terço de seu volume total de neurônios. A perda de função desses processos de atrofia, no entanto é relativamente pequena, uma vez que os neurônios que sobram assumem tarefas de forma compensatória. Para isto, é necessário que o indivíduo colabore e pratique estratégias de forma simples no desenvolvimento das atividades cerebrais, alguns exercícios básicos como:


 - Exercício mental, promover a estimulação dos neurônios através de boa música, leitura e filmes;
- Procurar caminhos alternativos para o trabalho ou o lazer, visita a locais diferentes e manter novos relacionamentos. Evitando desta forma a rotina;


 - Desenvolver ou despertar hábitos para a pintura, escultura ou atividades artísticas em geral;
- Praticar regularmente atividade física para manutenção de um bom fluxo sanguíneo cerebral.
- A produção de neurotransmissores, pode ser estimulada através de atividades executadas com prazer e atenção.
Esses exercícios básicos quando executados, promovem novas conexões neuronais mantendo o cérebro ativo e melhorando a velocidade de condução nervosa, diminuindo a perda de memória no processo de envelhecimento biológico normal.


Notas:


O autor é Mestre em Ciência da Motricidade Humana (UCB), Pós-Graduado em Geriatria e Gerontologia Interdisciplinar (UFF), Professor da Universidade Castelo Branco, Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) e Universidade Federal Fluminense (UFF).


 Referências bibliográficas


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