Resumo

Essa dissertação se propôs a discutir o conceito de tradição, bem como a sua importância, no campo das artes marciais chinesas (Kung Fu) no Brasil. Para tanto, recorri às histórias orais de vida de cinco mestres brasileiros, discípulos de chineses, como fontes primárias para contribuir com essa discussão. Essas narrativas foram cotejadas com os referenciais teóricos a respeito da relação mestre-discípulo, da relação entre tradição e autoridade e de certos momentos da história do Kung Fu, com destaque para o intenso processo de transformação sofrido por essas práticas ao longo do século XX, o que abarcou, inclusive, a migração de alguns mestres para o Brasil. Em concordância com o esboço metodológico proposto por Pierre Bourdieu, a análise desse elemento específico do Kung Fu, a tradição, foi precedida por um delineamento de seu - campo esportivo, o qual revelou que as artes marciais chinesas apresentam, de fato, uma grande dispersão em suas denominações, não somente em relação às suas diversas manifestações, mas também pelas experiências de vida dos mestres de cada denominação e sua relação com questões de classe social, de capital social, de gênero, de raça/etnia e de territorialidade. A respeito da tradição, é unânime a consideração dos entrevistados de que se trata de um elemento fundamental no Kung Fu, sendo que um estilo, escola ou família podem ser denominados tradicionais em razão de sua antiguidade e de sua genealogia. Entretanto, é a justificação da importância do conceito de tradição que demarca dois discursos distintos: o primeiro, remetendo-se à ancestralidade, à fundação e a elementos simbólicos, se volta para a tradição enquanto manutenção do legado dos mestres; o segundo, referendando-se no caráter intrínseco da relação entre mestres e discípulos e em contextualizações histórico-políticas das artes marciais, alude para um processo interpretativo em relação aos elementos considerados tradicionais. Chama a atenção o fato de que ambos os discursos são reticentes em relação ao modelo esportivo, mas sob perspectivas diferentes: se um enfatiza os conteúdos simbólicos e filosóficos em resistência ao tecnicismo, à competitividade e ao apelo estético das manifestações esportivas, o outro pontua as questões que permearam as artes marciais chinesas em relação à dominação política e cultural que sofreram em determinados momentos da história. Desse modo, a presente pesquisa evidenciou que essa circulação de narrativas é relevante para a compreensão do campo esportivo do Kung Fu no Brasil. Além disso, as artes marciais chinesas demonstraram ser um campo privilegiado que permite aos envolvidos entrarem em contato com questões sofisticadas a respeito das relações estreitas que a história, a política, a cultura e a sociedade podem estabelecer com as práticas corporais. Ainda que não sejam nomeados, mitologia e história, sincronia e diacronia, estrutura e transformação, tradição e autoridade são conceitos circulantes caros ao campo esportivo do Kung Fu e que não podem ser negligenciados quando se aborda essa prática de maneira rigorosa e crítica.

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