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As bases organizativas duma Sociedade Científica A criação de Sociedades Científicas nasceu da necessidade sentida por especialistas duma determinada área ou de um conjunto de áreas afins de encontrar espaços de reflexão, estudo e debate visando a elevação do nível profissional e científico, quer individual quer, sobretudo, do colectivo de destina tários das acções desenvolvidas. Assim, o âmbito duma Sociedade ultrapassa largamente o objectivo de contribuir para o enriquecimento curricular dos seus membros mas deve apontar substantivamente para um incremento progressivo da qualidade científica da sua região, país ou área geográfica, conforme os casos. Os objectivos duma Sociedade Científica (SC) são definidos à luz deste enunciado, seguindo igualmente de forma escrupulosa as recomendações e orientações das Convenções Internacionais que regulamentam quer a actividade Científica (Convenção de Helsínquia, por exemplo), quer a defesa dos Direitos da Pessoa Humana e, em sentido lato, obedecendo aos princípios da Ética e da Moral.

Uma das características fundadoras duma SC é a sua independência total e em todas as circunstâncias - independência dos poderes políticos, dos grupos de pressão, dos interesses económicos – constituindo-se num espaço de liberdade com características muito peculiares, porque este decorre da natureza da própria organização e não se define em função de nenhum outro objectivo adicional ou secundário. Esta independência, ela própria não geradora de contra-poderes que desvirtuariam a sua própria natureza (porisso mais livre), garante-lhe uma posição única de autoridade nas suas pronunciações e deliberações que deve ser devidamente tomada em conta pela chamada Sociedade Civil e pelos Poderes constituídos. Outra característicafundamental é a criatividade, potenciadora da imaginação e da inteligência dos pares, num processo de produção demais-valias intelectuais com evidente retorno na prestação científica. A unidade duma organização Científica é uma das suas propriedades constitutivas, capaz de congregar à volta de objectivos comuns contribuições de grupos diversos, não obstante partilhando uma mesma concepção universalista do saber. A sub-especialização e o consequente interesse de grupos de associados em temas específicos dentro de uma determinada área científica conduziu à criação de Grupos de Estudo que, ao invés de uma pulverização de conhecimentos e fragmentação, podem trazer a contribuição enriquecedora duma visão temática necessariamente mais aprofundada que atravesse transversalmente um corpo unitário. Uma SC assenta numa estrutura de práticaorgânica dademocraticidade, comchefias e coordenações eleitas entre pares e prática da aceitação e do debate da diversidade de pontos de vista.

Uma SC promove ainda um conjunto de valores de que destaco o profissionalismo, entendido como colocar a defesa dos interesses dos doentes em primeiro lugar, a competência , para o que os esforços das múltiplas actividades de educação continuada devem convergir, a integridade e honestidade, essenciais no exercício da actividade científica, o voluntarismo e o espírito de sacrifício , fundamentais para garantir a “chama” e o entusiasmo nas realizações.

É à luz deste enunciado que se pode imaginar e montar uma estrutura que incorpore os fundamentos e permita atingir os objectivos de forma consistente, dedicada e eficaz.

A estrutura central duma SC é habitualmente representada pelo “Board”, designado entre nós por “Direcção”. É à Direcção que compete planificar e coordenar toda a actividade da Sociedade e tem para isso o mandato democrático dos sócios durante o seu exercício. Este papel dirigente insubstituível dentro duma SC é qualitativamente diverso duma mera gestão burocrática de assuntos correntes e à Direcção estão cometidas funções unificadoras e de procura de consensos, mas também mobilizadoras e protagonistas, liderando projectos e lançando desafios. A actividade duma SC compreende dois eixos fundamentais, a Educação Cont inuada e a Investigação. De algum modo, todas as acções duma SC podem ser enquadradas quer num quer noutro destes eixos, ou em ambos, pelo que será facilmente compreensível que no topo da coordenação destas áreas se encontre o colectivo da Direcção, estruturada de modo a assegurar uma dedicação especial de alguns dos seus membros a tarefas específicas ou a sectores mais individualizados. Para a concretização dos seus objectivos, podem existir numa SC Comissões, Grupos de Apoio e Grupos de Estudo, com fins bem definidos, permitindo alargar a base de actuação e mobilizando vontades e energias mais generalizadas. O caso específico dos Grupos de Estudo (GE) é exemplar do dinamismo e criatividade das pessoas interessadas numa área e specífica, que se voluntariam para debater os seus problemas próprios, constituindo apoios incontornáveis no planeamento das acções duma SC. Os projectos e iniciativas dos GE, desenvolvidos de acordo com os objectivos definidos para toda a SC, devem merecer o acolhimento da Direcção. O enquadramento geral das suas actividades nos projectos e linhas de acção estratégicas definidas pela Direcção, se por um lado deve ter preocupações unificadoras, deve por outro ter, em devida, conta o respeito pela liberda de criativa dos GE. Além disso, a Direcção deve ouvir os GE e manter diálogo regular, sobretudo sempre que planeie iniciativas que toquem nas suas áreas de actuação. É esta interacção que poderá conferir coerência e solidez às iniciativas, em alternativa à dispersão e à promoção de protagonismos singulares. A eficácia e excelência duma equipa não deriva necessariamente do simples somatório dos valores in dividuais dos seus elementos, mas decorre da contribuição empenhada de todos para objectivos comuns.

O papel duma SC passa por estimular o esforço colectivo na concretização de projectos que envolvam vários colegas, grupos e regiões. Compete à SC criar e manter as estruturas necessárias para garantir o apoio logístico a essas iniciativas. Além disso, a SC é um interlocutor privilegiado das várias entidades em presença, muitas das quais improvavelmente teriam a iniciativa de dialogar e cooperar de modo próprio.

O diálogo com a Tutela e as entidades regulamentado ras é essencial. Compete às SC gerar consensos, desenvolver Normas de Boa Prática, promovê-las e aplicá-las mas competirá ao Estado reconhecer a validade científica dessas Normas e criar as condições para a sua aplicabilidade. As SC têm a responsabilidade essencial de assegurar o controlo da qualidade das inúmeras iniciativas educacionais, apenas conferindo o seu Patrocínio Científico àquelas que se encontrem na obediência estrita dos princípios subjacentes à atribuição desse patrocínio.

Também no diálogo com os Patrocinadores, as SC podem desempenhar um papel da maior importância, não só pela sua independência como interlocutor, mas também pela sua posição única em canalizar recursos que poderão ser disponibilizados a todos.

Reconhecer aos Patrocinadores um papel de parceiro em muitas iniciativas mais que o de simples patrono ou mecenas, é uma atitude potencialmente geradora de um novo tipo de relacionamento que as SC devem protagonizar de forma isenta e aberta.

Vivemos numa sociedade de informação e a publicação de materiais científicos e a divulgação de acontecimentos deve assumir uma preocupação dominante numa SC.

Uma SC tem também que estar atenta às novas tecnologias e à universalidade da comunicação, dispondo das ferramentas adequadas para a difusão dos seus materiais e nomeadamente, a manutenção duma página na Internet actualizada e viva.

O conhecimento científico é um património universal . Dessa universalidade do saber decorre necessidade de troca permanente de informações e experiências. Daí que uma SC se internacionalize, se afilie a organizações congéneres, tenha elementos seus em comissões internacionais e estabeleça relações científicas privilegiadas com as sociedades de países que lhe estejam mais próximos.

A garantia de efectividade duma SC assenta numa estrutura organizativa competente e eficaz, aplicando modelos de gestão de tipo profissional e celebrando os adequados acordos de parceria ou de consultadoria achados con venientes. Tratando-se de organizações de utilidade pública e sem fins lucrativos, nem por isso a gestão deve ser menos rigorosa. Ao contrário, o voto de confiança dos sócios para gerir o que é detodos, deve constituir um estímulo adicional para uma gestão competente. O carácter transitório das Direcções exige uma delimitação muito clara dos níveis de responsabilidade e da hierarquização das decisões, sem o que numa SC se podem, a prazo, gerar mecanismos de controlo técnico exterio res aos próprios poderes decisórios democraticamente atribuídos pelos sócios à sua Direma gestão competente. O carácter transitório das Direcção.

É este modelo estrutural que pretendemos seja subjacente à Sociedade Portuguesa para a Qualidade na Saúde. Às características fundamentais duma SC atrás enunciadas, poderse-á adicionar mais uma, a continuidade . É esta característica que tem assegurado que este modelo imaginado por uns, vá sendo melhorado por outros, ao serviço de todos.

Texto originalmente escrito por Victor M. Gil, enqu anto
Secretário-Geral da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Adaptado, com sua autorização, para o contexto da
SPQS por Luis Pisco