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Introdução e descrição do Projeto Criança Feliz ...


 Os projetos de políticas públicas que tem a educação física como seu eixo fundamental, propiciam análises no âmbito dessa área de conhecimento e permitem o surgimento de estudos sobre a prática da EF nos espaços escolares e comunitários. Tais espaços são interligados porque muitas pessoas que vivenciam esses projetos, também freqüentam a escola.


 Na escola, as pessoas atuantes no processo ensino-aprendizagem da EF escolar encontram problemas e contradições em sua prática semelhantes aos da sociedade, pois a escola faz parte dela. Um destes fatores é a influência de projetos de políticas públicas na prática da EF, que suprem ou ‘complementam’ a vivência escolar, apresentando propostas comunitárias. Estas propostas aparentemente podem visar a inclusão social por atividades de cunho recreacional e artístico-desportivas.


 No presente trabalho verificaremos em qual medida projetos comunitários que tem a educação física como eixo fundamental de sua proposta influenciam as pessoas relacionadas ao contexto escolar (especialmente alunos e professores), por proporem a mediação de elementos utilizados na própria EF escolar, através de uma prática periódica, como o desporto ou a recreação. Para tanto, optamos pela análise do Projeto denominado Criança Feliz, que ocorreu num período compreendido entre 1996 e 1998, com autoria de Raul Raposo, Presidente da Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (SUDERJ) no Governo Marcello Alencar. Tal escolha se deu pelo fato de ser um projeto significativo para a cidade do Rio de Janeiro, e pelo fato de um dos autores do presente trabalho ter sido Supervisor do Projeto (sendo admitido em 1997, como Chefe de Núcleo), o que facilitou a coleta e trato dos dados.


 O Projeto Criança Feliz (PCF), foi uma iniciativa da SUDERJ em convênio com a Integração - Obra Social do Estado do Rio de Janeiro e com o Governo do Estado, que através de práticas esportivas, recreativas e culturais, visava socializar as crianças de 6 a 14 anos que viviam em comunidades carentes, além de entretê-las enquanto estivessem fora da escola. O PCF atendeu em torno de 200 comunidades em todo o Estado do Rio de Janeiro, entre pontos fixos (aproximadamente 40) e eventos de final de semana que aconteciam em diferentes regiões.


 O PCF era realizado nos turnos da manhã e da tarde, com as equipes de professores e estagiários indo até as comunidades ministrar diversas atividades. Durante três horas por turno, às crianças receberam aulas de iniciação esportiva, artes plásticas, teatro e folclore, e obtiveram noções de higiene pessoal, preservação do meio ambiente e ecologia, além de um reforço alimentar. Esse trabalho foi desenvolvido com o apoio dos líderes comunitários do local onde estavam implantados os núcleos, que propunham onde deveria se fixar o projeto, além de se responsabilizarem pela guarda do material usado durante as atividades.


 A sede do PCF era na cidade do Rio de Janeiro, no bairro Maracanã, no quinto andar do Estádio Mario Filho. As 40 comunidades participantes foram divididas por regiões, denominadas pólos. Cada pólo foi composto por 6 a 7 comunidades, denominadas núcleos. Cada núcleo tinha como equipe, um chefe de núcleo - professor de EF - e quatro estagiários, sendo dois de EF e dois de educação artística. O professor tinha carga horária integral das 8:00h às 11:00h e das 14:00h até às 17:00h e os estagiários optavam por um turno para trabalhar, sempre às terças e quintas feiras. Cada turno tinha até 50 crianças, salvo em casos onde a procura era muito grande, ampliando este número a no máximo 200.


 À coordenação e à supervisão do Projeto elaboravam o planejamento e o implantavam na prática. Além disso, resolviam todas as questões burocráticas, como distribuição de apostilas informativas, reuniões, contratações, elaboração de eventos, uma dita ‘filosofia’ de trabalho, etc. O chefe de núcleo também tinha função primordial no PCF, pois coordenava os núcleos de seu pólo, integrava-se na comunidade, articulava-se com os líderes comunitários, tentava resolver os problemas que viessem a surgir e levava as sugestões e reclamações da comunidade à supervisão e à coordenação para que pudessem ser analisadas.


 Para a operacionalização do projeto existia ainda o grupo de apoio, formado por auxiliares de trabalho, secretária, motoristas, estoquistas e um gerente geral, que coordenava toda a ação logística do projeto. Tal ação incluía compra de material, locação do pessoal de apoio, entrega de lanche, organização e reposição dos materiais utilizados nos eventos de final de semana. Constavam na folha de pagamento em torno de 250 pessoas que trabalhavam diretamente no Projeto.


 Toda essa estrutura era preparada para implantação do núcleo, que seguia algumas fases até a inauguração: A primeira fase era a escolha dentre todas as comunidades que pediam o PCF, feita a partir dos critérios de necessidade e oferecimento de condições estruturais mínimas para receber a equipe. A segunda fase consistia na avaliação dos custos e, posteriormente, formação de uma equipe para atuar no novo núcleo. Após os dois momentos descritos, e já com a equipe formada, um carro de som fazia a divulgação e o professor ficava a espera das crianças no local onde aconteceriam às atividades, munido de uma ficha cadastral e uma autorização dos responsáveis pela criança, permitindo que ela participasse do projeto. Após concretizarem a inscrição, os professores davam uma camisa para as crianças freqüentarem as atividades.


 A educação física no Projeto Criança Feliz ...


 Pela orientação norteadora do PCF, discussões acerca de políticas desportivas voltadas para comunidades de baixa renda eram amplamente realizadas. Em sua maioria, essas discussões procuravam resgatar o direito ao esporte, para integrar o indivíduo ao seu meio, bem como enriquecê-lo e recuperá-lo em suas capacidades e auto-estima, perdidas ao longo do tempo pelo empobrecimento da população. O PCF dizia reconhecer que projetos sociais na área esportiva e de lazer apresentavam muitas dificuldades e limitações, tanto por parte das propostas técnicas como por parte dos profissionais e da clientela envolvida.


 Isto posto, partindo de uma visão dita dinamizadora das práticas esportivas, o PCF pretendeu implantar uma proposta esportiva que visava estimular o desenvolvimento psicomotor de crianças e adolescentes, buscando uma transformação social que permitisse a diminuição dos índices de agressividade e frustração dentro desses grupos, fatos que, segundo o PCF, eram tão reconhecidos e discutidos por diversas facções que estudavam os problemas da juventude, e em especial da juventude de baixa renda, nas grandes metrópoles e suas periferias.


 Para o PCF, a prática do esporte era considerada como um componente de suma importância para a formação integral do indivíduo na elaboração das atividades esportivas e de lazer.


 Segundo as diretrizes do PCF, a educação Física não teria um caráter performático e sim oportunizador, tentando fugir do sistema escolar, que é formal. Sendo oportunizador, existiria um trabalho socializante, privilegiando o coletivo em detrimento do individual. Desta forma, as atividades visavam o participante e não o vencedor, pois assim existiria um perdedor denotando, segundo o projeto, o que uma criança carente menos necessitaria.


 As crianças eram divididas por faixas etárias: uma de 6 a 8 anos, outra de 9 a 11 anos e a última de 12 a 14 anos. As atividades propostas aconteceram em sistema de rodízio simultâneo, ficando um grupo realizando atividades esportivas enquanto outro participava da recreação e um terceiro desenvolvia atividades artísticas.


 Condiderações sobre o projeto ...


 O PCF aparentemente possui uma proposta tentadora, com crianças carentes participando de atividades lúdico-esportivas e artísticas, socializando-se, alimentando-se, buscando transformações pessoais e para a comunidade, etc. Cabe analisarmos mais profundamente tal proposta, para além das aparências, e participando de sua prática cotidiana.


 Apesar de existir planejamento anual, mensal e semanal, o projeto não adotou nenhum referencial teórico-metodológico para tal procedimento. Apesar dos profissionais de EF envolvidos (chefes de núcleo e professores), participarem da elaboração mensal do planejamento e os estagiários da elaboração semanal, a comunidade, que é o destino das atividades planejadas, não participou deste processo em nenhum momento. Por outro lado, no planejamento do Projeto não existia a promoção da integração cotidiana entre as crianças e os seus responsáveis, pois havia uma estrutura de ócio vinculada a estas comunidades, devido ao alto índice de desemprego existente.


 Houve tentativa de resgate de Jogos Populares no PCF, pois foi percebida sua importância em diversos núcleos, apesar de participantes da própria comunidade não os conhecerem. O resgate promovido, entretanto, não adotou parâmetros das atividades da cultura corporal local, nem de abordar o contexto histórico do surgimento destas atividades.


 No Projeto existiam profissionais em número insuficiente para atendimento, o que tornava suas atividades inoperantes, como dois psicólogos com horário restrito. Também havia carência de profissionais para formação de equipes multidisciplinares, como assistentes sociais, filósofos, sociólogos, médicos, enfermeiros, etc.


 Os pais ou responsáveis das crianças preenchiam um questionário com informações sobre o andamento do projeto, inclusive com sugestões. Muitos moradores, no entanto, não sabiam escrever, o que obrigava os anotadores a escreverem por eles.


 As palestras informativas a respeito de diversos assuntos, como alimentação e direitos da criança, eram realizadas no auditório do Maracanã, sugerindo um ambiente de ‘civilidade’ para os membros da comunidade, com confortos que inexistem no seu cotidiano, como ar condicionado, cadeiras estofadas, slides, etc., dando inclusive folhas informativas sobre a palestra realizada, sabendo que muitos presentes podiam ser analfabetos.


 Conclusão...


 O presente trabalho, à guisa de conclusão, pode considerar que o PCF em nenhum momento utilizou a atividade física como instrumento para transformação social. Conforme citado, não propiciou uma elevação do patamar de consciência no seu público-alvo, mas sim um constructo retórico junto à comunidade.


 Foram características críticas marcantes no PCF: superficialidade na proposta, ausência de referencial teórico-metodológico, perspectiva de manutenção do sistema sócio-político-econômico vigente que determina objetivamente o contexto social da comunidade. Além disso, às atividades ministradas no PCF reproduziam ambientes escolares com perspectivas similares.


 De outra forma, o projeto invertia a ótica dos ambientes onde a escola é considerada como um espaço político de luta contra-hegemônica, por sua concepção-matriz e pela alienação na prática da atividade física, tornando-se, portanto, um reforçador da EF escolar reprodutora dos conceitos hegemônicos.


 Assim sendo, o presente ensaio não pretendeu esgotar críticas pertinentes a tais projetos, bem como necessita de aprofundamento no trato das questões mencionadas. Pretendeu, entretanto, abrir espaço para que futuras relações entre projetos extrínsecos à escola, mas que influenciam o público envolvido com ela, sejam analisados.


 Obs.


 1. Os autores, Prof. Ms. André Malina e Prof. Sílvio de Cassio Costa Telles, são da Universidade Gama Filho.


 2. A atividade física em projetos comunitários é uma questão que tem suscitado debates em diferentes níveis. Em nível de Pós Graduação Stricto Sensu no Rio de Janeiro, vemos surgirem novas disciplinas sobre esse assunto, como Os Intelectuais e a Educação Física, na Universidade Gama Filho, e linhas de pesquisas que associam a EF, nomeando-a diferentemente, como a Ciência da Motricidade Humana, na Universidade Castelo


 Referências biblkiográficas


 Gramsci, Antônio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
___________. Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
___________. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
Raposo, Raul. Projeto Criança Feliz. Rio de Janeiro: SUDERJ, 1996.