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Esse texto traz algumas discussões que estão sendo realizadas no projeto de pesquisa "Educação física como componente curricular e o discurso legitimador" , do Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF), projeto este que se caracteriza como um aprofundamento de um estudo publicado por Bracht (2001) que analisa o discurso legitimador da Educação Física. Nosso estudo busca investigar o discurso da Educação Física acerca das relações entre recreação, lazer, a ética do trabalho e a própria Educação Física, no âmbito dos periódicos da área no período de 1932 até 2000.

O texto se desenvolve a partir da exposição da constituição do lazer no mundo ocidental - evidenciando suas repercussões no Brasil - compreendendo os diversos sentidos incorporados pelo termo. Apresentaremos também alguns estudos concernentes às relações entre recreação, lazer, a ética do trabalho e a própria Educação Física.


Constituição do lazer no mundo ocidental e suas repercussões no Brasil

Werneck (2000), resgatando a trajetória histórica dos significados do lazer; demonstra que os distintos contextos sócio-políticos imprimem diversificados sentidos ao termo.

Na civilização greco-romana o lazer estava relacionado ao ócio, significando repouso, prazer, liberdade e reflexão, noção ligada aos sentidos de cultura e educação da aristocracia grega, que com seu ideal de educação do homem integral estabelecia com o trabalho uma distante relação, caracterizando a vida produtiva como um fator/elemento impeditivo à possibilidade de criação, satisfação, emancipação do espírito e contemplação oferecidos pelo lazer. Considerado como um privilégio de classe exigia certas condições educacionais, socioeconômicas e políticas para seu usufruto.

Com ascensão da sociedade romana e o nascimento do cristianismo outros valores são incorporados pelo lazer. A moral cristã reconhecia no trabalho um meio de salvação e purificação da alma, até mesmo o lazer, ainda não caracterizado como um "tempo livre", deveria ser destinado às tarefas religiosas. Nesse sentido, as práticas culturais e as manifestações festivas eram controladas pela igreja e deveriam findar em um objetivo religioso, sendo a alegria e a diversão perniciosas à moral do homem.

O protestantismo corroborou com este entendimento de lazer, um vício que possibilitava a degradação moral, e fortaleceu o sentido de trabalho como um dever, um modo de servir a Deus. A virtude do trabalho e sua dimensão humanizante e regeneradora era capaz de avaliar a condição existencial do homem. (LENHARO, 1986)

Esta concepção de trabalho foi paulatinamente sendo revestida de princípios capitalistas e, na modernidade, influenciou a construção de outros sentidos para o lazer. (WERNECK, 2000)

Nesse bojo, segundo Bracht (2001, p.72),

"...a partir da ética do trabalho com uma ética fundamental para o desenvolvimento do capitalismo,a população tinha que assumir a idéia de o que realiza o homem é o trabalho sendo o lazer mera recompensa. O lazer aparece como referência apenas numa visão moralista, de ocupação saudável do tempo ocioso, ou seja, o lazer é digno porque é coadjuvante do trabalho."

Além disso, outro aspecto que releva a importância alcançada pelo lazer na era moderna vincula-se, mormente, "...a descoberta do lazer como essência de um fecundo e promissor mercado, capaz de gerar lucros significativos para aqueles que detêm as regras desse jogo de poder social e político praticado em nosso contexto" (WERNECK, 2000, p. 69). Nesse sentido, o lazer assume o papel de produto a ser consumido e com estreitas relações com a indústria cultural do entretenimento; esta, de forma paradoxal, "...determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que [a] pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128).

No contexto brasileiro, de acordo com Pinto et al (1999), o lazer, a recreação e a Educação Física interagem entre si, atuando em consonância com medidas sociopolíticas-culturais de cada época. Num primeiro momento, as práticas recreativas, tais como jogos, danças ou manifestações culturais diversas, revestiam-se de uma rigorosa disciplina de cunho religioso. Com o advento da industrialização e conseqüente urbanização brasileira, as práticas recreativas são orientadas para crianças e adultos com a finalidade de aprimorar forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais, bem como funcionar como instrumento de controle das massas .

Decca (1987, p. 89), referindo-se a tal questão, entende que " ...à uma retórica que se mantém em grande parte inalterada quanto à necessidade de um ‘lazer mais saudável e produtivo’ para o operariado no sentido de torná-lo mais ‘disciplinado e ordeiro’, esboçam-se iniciativas, até certo ponto freqüentes, de ‘disciplinar seu lazer’."

Dessa forma, e ainda na esteira de Decca (1987, p. 91), essa disciplina do lazer, "...em função de uma maior adequação ao trabalho e à vida em um centro urbano que se industrializava [...], foi buscada pelos poderes públicos de forma ‘idealizada’ nos cuidados formativos com a criança, principalmente com a dos meios proletários...".

Segundo Bercito (1991), partem das fábricas e de órgãos oficiais iniciativas de ações que visavam o controle do trabalhador, desde sua utilidade/produtividade até seu viver fora do seu ambiente de trabalho. Ainda em Goellner (1992, p. 36) encontramos argumentos que corroboram com essa idéia:

"...Instalou-se, assim, toda uma dimensão de disciplinação da sociedade em função do ‘mundo do trabalho’, que passava a exigir do individuo uma redefinição de sua própria vida com hábitos, valores, crenças, e outros, uma vez que, o capitalismo e a conseqüente exaltação ao trabalhador não encontrou o trabalhador feito, teve de formá-lo. "

Principalmente a partir da década de 60, o contexto político influenciou fortemente a relação estabelecida entre recreação, lazer e Educação Física. O desenvolvimento esportivo e seus aspectos, o desporto escolar, de competição e o de participação (lazer) foram priorizados e grandes campanhas governamentais serviram para a difusão sobretudo do esporte (PINTO et al., 1999). A partir dos anos 80, "...a recreação e o lazer conquistaram espaços em toda a sociedade e ganham força econômica com o avanço da indústria cultural e as exigências do estilo de vida capitalista" (op. cit., p. 107), sendo este em voga o quadro hegemônico quando nos referimos a tal temática.

No contexto hodierno, de acordo com Bracht (2001), podemos perceber, sem profundas análises, que a base de sustentação do modelo que legitimava a Educação Física na escola passa por profundas transformações. Interessa-nos, de perto, dentre aqueles elementos legitimadores, a relação estabelecida entre o trabalho, o lazer e a Educação Física.

A idéia do trabalho como um dever e o lazer como mera recompensa vem sofrendo uma profunda reordenação. De acordo com Lipovetsky (1994, p. 198),

"o advento da sociedade de consumo de massas e das suas normas de felicidade individualista desempenharam um papel essencial: o evangelho do trabalho foi destronado pela valorização social do bem-estar, do lazer e do tempo livre, as aspirações coletivas orientaram-se maciçamente para os bens materiais, as férias, a redução do tempo de trabalho. O dito espirituoso de Tristan Bernard, ‘o homem não foi feito para trabalhar, a prova é que o trabalho fadiga’, tornou-se, num certo sentido, um credo das massas da era pós-moralista."

Em outras palavras,

"... [o] tempo livre [tornou-se] tão importante para a realização do homem quanto o trabalho. Tendo sido o trabalho como dever, direta ou indiretamente, a referência do modelo que sustentava a Educação Física, a perda desse caráter a afeta. O problema é que, quando a referência passa a ser o lazer na perspectiva conservadora ou liberal-burguesa, ele se refere a uma esfera de consumo, a um espaço para o exercício da (pseudo)liberdade individual para fazer opções, portanto cai no espaço do privado" (BRACHT, 2001, p. 75).

Nesse sentido, que novos significados/funções o lazer assume diante de uma possível perda de centralidade do trabalho? Que possibilidades de intervenção cabe à Educação Física?

"...Como a Educação Física escolar e o lazer interagem? O que eles têm em comum e o que os diferencia? O que um pode esperar do outro? O fenômeno do lazer, ou simplesmente, o lazer é ou deve ser uma referência fundamental para a teoria e prática da Educação Física enquanto componente curricular?" (BRACHT, 2003, p. 147).

Considerações finais

A pesquisa encontra-se em andamento. Com um periódico analisado, pudemos constatar que o conteúdo da revista corrobora com as argumentações nesse texto colocadas. Entretanto, análises e reflexões de cunho mais rigoroso se fazem necessárias, e um estudo mais conciso será apresentado por ocasião do Encontro Fluminense de Educação Física Escolar.
A autora, Cláudia Emília Aguiar Moraes é graduanda em Educação Física e integrante do LESEF/UFES

Referências bibliográficas

  • Adorno, T.W.; Horkheime, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
  • Bercito, S. D. R. Ser forte para fazer a nação forte: a educação física no Brasil (1932-1945). 244f. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1991.
  • Bracht, V. Saber e fazer pedagógicos: acerca da legitimidade da Educação Física com componente curricular. In: Caparroz, F.E. (Org.). Educação Física escolar: política, investigação e intervenção. Vitória, ES: Proteoria, 2001.
  • ________. Educação Física escolar e lazer. In: Werneck, C.L.G e Isayama, H.F.(Orgs.) Lazer, Recreação e Educação Física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
  • Decca, M.A.G de. A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo (1920-1934). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • Goellner, S.V. O método francês e a educação física no Brasil: da caserna à escola. 203f. Dissertação (Mestrado em Educação Física). Curso de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto alegre, 1992.
  • Lenharo, A. Sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986.
  • Lipovetsky, G. O crepúsculo do dever: a ética indolor de novos tempos democráticos. Lisboa, Dom Quixote.1994
  • Pinto et al. Recreação, Lazer e Educação Física/Ciências do Esporte: conhecimento e intervenção.In: GOELLNER, S.V. (Org). Educação Física/Ciências do Esporte: intervenção e conhecimento. Florianópolis: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 1999. p. 101-127.
  • Werneck, C. Lazer, Trabalho e Educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG; CELAR-DEF/UFMG, 2000.