Resumo

Objetivo com esta comunicação tecer uma análise sobre o modelo/concepção dominante da educação física brasileira e a construção da feminilidade e masculinidade de seus/suas praticantes, buscando denunciar sua tendência sexista e contribuir para sua superação em prol de uma pedagogia não-sexista para a educação física.

Integra

Trago para este evento um tema que vem instigando minhas reflexões no âmbito da educação física, entendida aqui como estratégia pedagógica escolar que utiliza os elementos da cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1993).

Nesta medida, objetivo com esta comunicação tecer uma análise sobre o modelo/concepção dominante da educação física brasileira e a construção da feminilidade e masculinidade de seus/suas praticantes, buscando denunciar sua tendência sexista e contribuir para sua superação em prol de uma pedagogia não-sexista para a educação física.

Gênero X sexo: uma diferenciação necessária.

Acredito que um dos primeiros passos na direção de uma melhor compreensão da categoria gênero, seja distingui-la do sexo. Ann Oakley (apud FARIA JUNIOR, 1995) faz uma distinção entre estes termos, referindo-se a sexo como a condição biológica de ser fêmea ou macho, e gênero como processos sociais, culturais e psicológicos que constroem e/ou reproduzem a feminilidade e a masculinidade. Assim, como salienta Bila Sorj (In: COSTA, BRUSCHINI, 1992), o gênero, diferentemente do sexo, é um produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações.

Para Faria Junior (op. cit.), a distinção entre estes termos é fundamental para a educação física, já que muitas divisões e diferenças entre homens e mulheres, meninos e meninas são comumente consideradas como resultado do dimorfismo sexual. Assim, a conscientização de que

"muitas diferenças observadas devem-se a uma construção social de gênero e não a diferenças de natureza biológica, permitirá uma compreensão mais criticamente adequada das desigualdades no desporto e na educação física, levando o debate para a questão das estruturas de poder na sociedade"
(ibid., p.3).

O autor vem denunciando desde o início da década de 80 que o modelo da educação física brasileira é extremamente injusto sob a ótica do direito de igualdade de oportunidades, uma vez que inúmeros segmentos da população - mulheres, idosos, negros, adultos trabalhadores, pessoas com necessidades especiais - a ele não têm acesso, encontrando-se por isso marginalizados (FARIA JUNIOR, In: COSTA, 1981).

Sendo assim, a categoria gênero torna-se muito importante para a educação física brasileira, uma vez que ela "envolve a noção de que o poder é distribuído de maneira desigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organização social" (SORJ, op. cit., p.16).

Tal idéia nos leva para uma análise do nosso cotidiano enquanto professores(as) de educação física, buscando compreender em que medida ratificamos ou nos posicionamos contrariamente ao desenvolvimento do sexismo em nossas aulas.

A escola, a educação e a produção dos gêneros.

Guacira Lopes Louro (In: SILVA, AZEVEDO, 1995) afirma que a educação, através do espaço escolar, sempre atuou produzindo sujeitos masculinos e femininos. Segundo a autora, a escola, enquanto instituição de educação sistemática e intencional, foi desde sua criação um espaço planejado para imprimir distinções e desigualdades, como por exemplo o caso da separação entre meninos e meninas.

Louro (ibid.) salienta que são evidentes as distinções e desigualdades que neste espaço eram feitas: meninos e meninas estudavam em colégios separados, tinham professores(as) de acordo com seu gênero e aprendiam conteúdos diferentes. Com o advento da introdução da coeducação em muitos países, ainda no século passado, professores(as) não foram mais determinados(as) para as turmas de acordo com seu gênero e foi realizada a unificação dos programas e conteúdos escolares. No entanto, apesar destes fatos, a escola continua reproduzindo e produzindo as diferenças e as desigualdades sociais.

Tomaz Tadeu da Silva (1994), ao considerar a grande distância entre as experiências proporcionadas pela escola e pelo currículo e as características culturais de um mundo social alterado pela emergência de novos movimentos sociais como o das mulheres, pela afirmação de identidades culturais subjugadas, pelas lutas contra o patriarcado, pelos conflitos entre poderes imperialistas e resistências pós-coloniais, pelo processo de globalização e pela generalização dos novos meios e técnicas de comunicação, identifica a atuação de uma ’nova direita’ que vem reforçando através da escola e do currículo os valores, conteúdos e formas de produção e reprodução de identidades sociais que reafirmam as características mais regressivas da presente ordem social, justamente aquelas combatidas pelos novos atores e movimentos sociais.

Na tentativa de colaborar para a construção de uma pedagogia e de uma escola que não produza e/ou reproduza as desigualdades baseadas no critério sexual, enfim, na construção de uma pedagogia/escola não-sexista, aceito a sugestão de Silva (ibid.) e Louro (op. cit.) quando propõe que como primeiro passo para a realização de tal objetivo devemos, enquanto educadores(as), problematizar nossas práticas diárias, nossa linguagem, nossas estratégias escolares e nossos referenciais teóricos. É o que tento iniciar com a presente reflexão.

A educação física brasileira e a categoria gênero: uma análise paradigmática.

Apesar dos avanços já descritos anteriormente em relação ao estabelecimento da ‘educação para todos ou coeducação’ que propiciou a criação das turmas mistas (meninos e meninas reunidos), conteúdos e programas escolares unificados e a não determinação dos(as) professores(as) pelo gênero das turmas, parece que a educação física brasileira não assimilou tal mudança satisfatoriamente. Ainda são comumente encontradas por todo o país escolas e educadores(as) que advogam e praticam a separação das turmas e professores(as) pelo gênero, assim como ministram seus conteúdos e programas determinados pelo mesmo critério. A própria legislação da área vigente durante muito tempo no país ratifica esta relação, já que, por exemplo, de acordo com o Decreto 69.450 de 1/2/71, Título IV, Capítulo I Artigo 5o, item III (In: REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO FÍSICA, 1972), as turmas devem ser compostas por 50 alunos do mesmo sexo, preferencialmente selecionados por nível de aptidão física.

Acredito que a origem desta ultrapassada separação esteja fundamentada na concepção de educação física ainda predominante no país, organizada em função do paradigma da aptidão física (COLETIVO DE AUTORES, op. cit.). Tal concepção, além de estar influenciada pela cultura patriarcal brasileira, apóia-se enfaticamente em fundamentos biológicos, tendo como objetivo o desenvolvimento máximo da capacidade física de seus/suas praticantes. Assim, os princípios fisiológicos do treinamento desportivo ditam todo o trabalho a ser ministrado e a separação das turmas pelo gênero constitui-se numa recomendação pedagógica fundamental, já que para o alcance pleno e eficiente dos seus objetivos é necessária a formação de um grupo o mais homogêneo possível.

Esta concepção da educação física ratifica e ajuda a desenvolver os estereótipos de homem e mulher, menino e menina. Ela corrobora a influência do sistema patriarcal na cultura brasileira que faz com que, desde cedo, sejam atribuídos diferentes papéis de comportamento para os indivíduos de acordo com seu gênero. Desta maneira, os meninos são criados para serem fortes, independentes, agressivos, competentes, competitivos e dominantes. Já as meninas, adquirem um comportamento dependente, sensível e afetuoso (ROMERO, 1992).

Combater a educação física baseada no paradigma da aptidão física é tarefa difícil, já que a grande maioria dos nossos cursos de formação de professores, a produção científica da área e as propostas pedagógicas escolares ainda são baseadas em seus princípios.

Tarefa difícil, porém necessária, uma vez que ao desenvolver valores, tais como o individualismo exacerbado, a obediência, a apropriação, e também estereótipos, preconceitos e discriminações de várias origens (gênero, classe social, raça e nível de habilidade motora), a educação física baseada no paradigma da aptidão física constitui um obstáculo para a construção de relações sociais mais justas e fraternas.

Em relação à problemática específica da categoria gênero, um estudo realizado com minhas turmas no Colégio Pedro II revelou que os(as) alunos(as) expressam conceitos/opiniões estereotipados e preconceituosos, tais como: "Menino não chora!"; "Futebol é coisa para homem!"; "O esporte de menina é o queimado!"; "Primeiro as damas, depois os cavalheiros."; "Mulher não pode brigar!". Além disso, são comuns atitudes discriminatórias, como a freqüente recusa dos meninos em realizar atividades físicas coletivas com as meninas e vice-versa: "Eu não fico em grupo com meninas."; "Não acredito que vou ficar no grupo delas!". Em relação às características comportamentais, as meninas eram vistas como grupo frágil, submisso e desprovido de qualidade nas habilidades motoras, e os meninos como fortes, hábeis, resistentes e valentes (CUNHA JUNIOR, 1995).

Notei também, assim como Neíse Gaudêncio Abreu (1995), que a partir do momento em que as meninas começam a demonstrar boas habilidades na execução de uma determinada tarefa, a rejeição por parte dos meninos em realizar as atividades conjuntamente começa a diminuir, tornando o traço sexual quase que irrelevante. Porém, o grupo de meninas que consegue este destaque é pequeno, já que condicionantes sócio-culturais fazem com que elas não possuam a mesma história de experiências motoras que os meninos. Além disso, não basta transferir o problema do questão sexo/gênero inferior/superior para a questão de quem possui maior ou menor habilidade nas atividades motoras.

Creio que o cerne dessa problemática esteja mesmo na implementação do paradigma da aptidão física e em sua tendência sexista. Nesta medida, nossa estratégia de luta visa alcançar mudanças nesta concepção de educação física majoritária no país. Passos nesta direção já vêm sendo dados por várias pessoas e instituições.

Destaco aqui, o grupo de autores do livro ‘Metodologia do Ensino da Educação Física’(op. cit.) que, ao questionar e desconstruir o paradigma da aptidão física, propõe que a educação física brasileira constitua-se numa reflexão sobre a cultura corporal. Apesar dos autores não atentarem especificamente para as relações de gênero, este referencial torna-se extremamente importante, pois desloca o foco dos objetivos da área presos até então à esfera físico-biológica para o questionamento da conservadora organização de nossas relações sociais, já que

"desenvolve uma reflexão pedagógica sobre valores como solidariedade substituindo individualismo, cooperação confrontando a disputa, distribuição em confronto com apropriação, sobretudo enfatizando a liberdade de expressão dos movimentos - a emancipação -, negando a dominação e submissão do homem pelo homem"
(ibid, p.40).

Baseados neste referencial, não teríamos mais motivos internos à nossa disciplina para continuarmos, por exemplo, praticando a separação das turmas de acordo com o critério do gênero, já que o necessário agora não é mais um grupo homogêneo, consensual. Antes o contrário. O interessante é justamente a heterogeneidade, o conflito, para que a partir daí problematizemos questões inerentes à nossa sociedade, tais como as injustiças e desigualdades advindas dos tratamentos desiguais dados à meninos/meninas, homens/mulheres.

Uma agenda para o debate.

Diante do que foi anteriormente exposto, gostaria, além de responder as dúvidas que talvez tenham ficado acerca do trabalho, debater junto com vocês como se daria na prática das aulas de educação física a implementação de estratégias que problematizassem os estereótipos, os preconceitos e as discriminações advindas da categoria gênero.

É justamente a partir deste esforço coletivo que alcançaremos resultados significativos na construção de uma educação física sem classismo, racismo e sexismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ABREU, Neíse Gaudêncio. Análise das percepções de docentes e discentes sobre turmas mistas e separadas por sexo nas aulas de educação física escolar. In: ROMERO, Elaine. Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus, 1995.
  • BRASIL. Decreto n.69.450 - 1 nov. 1971. Regulamenta o art.22 da Lei n.4.024, de 2o dez. 1961, e a alínea "c" do art. 40 da Lei n.5.540, de 28 de nov. 1968, e dá outras providências. In: Revista Brasileira de Educação Física, ano 4, n.11, p.57-62, 1972.
  • COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortês, 1993.
  • CUNHA JUNIOR, Carlos Fernando Ferreira da. Relações de gênero na unidade Engenho Novo I do Colégio Pedro II: Uma reflexão inicial. In: I Congresso Nacional de Ensino Fundamental. Anais..., Rio de Janeiro: Colégio Pedro II, 1995.
  • FARIA JUNIOR, Alfredo Gomes de. Modelo alternativo para a educação física brasileira. In: COSTA, Lamartine Pereira da. Desporto Comunitário e de Massa. Rio de Janeiro: Palestra, 1981.
  • -------- A mulher idosa e as atividades físicas sob o enfoque multicultural. Rio de Janeiro: UERJ, 1995 (mimeo).
  • LOURO, Guacira Lopes. Educação e gênero: a escola e a produção do feminino e do masculino. In: SILVA, Luís H. da; AZEVEDO, José C. de. Reestruturação curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • ROMERO, Elaine. Diferenças entre meninos e meninas quanto aos estereótipos: contribuição para uma política de desmitificação. Revista do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, Maringá, v.14, n.1, p.24-28, 1992.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa paisagem pós-moderna. Porto Alegre: UFRGS, 1994 (mimeo).
  • SORJ, Bila. O feminismo na encruzilhada da modernidade e pós-modernidade. In: COSTA, Albertina de O.; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosas dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.