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        Há alguns anos mantenho a prática de, eventualmente, realizar uma aula aberta no Facebook em relação a algum tema vinculado à área da Educação Física. Sou professor de Educação Física, e professor é o título que me honra, mais que mestre, doutor ou livre docente. Das vinte às vinte e uma e trinta do dia 27 de setembro fizemos uma aula aberta sobre a MP 746/2016, proposta pelo Ministério da Educação, a qual, na prática, tira do currículo do Ensino Médio a disciplina Educação Física, entre outras.

          A aula começou com um breve histórico sobre a Medida Provisória e a realização de algumas críticas ao desempenho dos professores de Educação Física no Ensino Médio, tais como dispensas de aulas e repetição de conteúdos esportivos sem orientação metodológica adequada.

          Embora o Ministério da Educação julgue ser a Educação Física uma disciplina descartável, sem contribuições na formação do adolescente, e embora parte da sociedade ignore o valor dessa disciplina, a maioria dos professores que atua nesse nível de ensino tem consciência da importância da Educação Física como disciplina de formação para a vida em sociedade e realiza um trabalho muito relevante, que precisa vir a público para que equívocos como o praticado atualmente pelo MEC não se repitam. Vamos à síntese da aula aberta.

          Nossa aula aberta no Facebook teve 460 curtições, 126 compartilhamentos e 360 comentários.

          Alarmados pelo anúncio da MP 746, diversos professores tomaram a iniciativa de colocar a questão para seus alunos. Entre eles, vários mostraram decepção com algumas aulas que já fizeram ou que presenciaram, mas, de maneira geral, ficaram indignados com a ideia de extinguir as aulas de Educação Física. Um dos alunos chegou mesmo a dizer que não gostaria de passar o tempo todo de escola na escuridão de uma sala de aula. Essa medida de levar as questões para os adolescentes é bastante apropriada no Ensino Médio. Alunos desse nível são plenamente capazes de opinar e mostrar ângulos da questão que professores, gestores e técnicos de secretarias e ministérios não enxergam.

          Embora os bons professores façam, como seus alunos, severas críticas aos maus profissionais, aqueles que apenas rolam a bola nas aulas ou dispensam seus alunos que fazem academias e treinamentos esportivos em clubes, as críticas também se estendem ao Estado, que mantém número excessivo de alunos por turma, que destina instalações precárias para a prática da Educação Física, que não providencia os materiais necessários, que paga péssimos salários, etc.

          Vários professores falaram da diversidade de conteúdos possíveis para a disciplina Educação Física. Embora muitos profissionais insistam em trabalhar, ano após ano, com apenas quatro esportes (geralmente basquetebol, voleibol, futebol e handebol), a gama de práticas à disposição vai do atletismo às atividades circenses, passando pela yoga, trilhas, projetos comunitários, esportes sobre rodas, escaladas, projetos ecológicos, danças, lutas, etc.

          Houve quem dissesse que o sentido da educação no Ensino Médio nunca foi bem descrito, o que dificulta projetar currículos. A atual Medida 746 aponta para a formação profissional, a base comum curricular pensava na inclusão, na diversidade, na cidadania, boa parte de tudo que se tem feito no Ensino Médio tem sido voltado para os vestibulares, ou seja, indefinições que confundem os professores e, certamente, muito mais ainda os alunos.

          Entre os comentários da aula, a noção de que a diversidade de condutas dos professores de Educação Física, com muitos indo na contramão dos que pretendem fortalecer a disciplina, ou sendo negligentes ou fazendo práticas sem definições educacionais objetivas, fortalece os que, como agora na questão da MP 746, querem o fim da Educação Física.

          Entre os participantes da aula é praticamente consenso que precisamos compreender melhor o adolescente. O aluno de Ensino Médio precisaria ser protagonista no processo educacional. Temos que conhecer melhor o que é puberdade e diferenciá-la da adolescência, é preciso compreender que o aluno de EM tem um pensamento poderoso, virtual, capaz de criticar o presente e projetar o futuro. Não faz mais sentido realizar aulas sem ter os alunos como parceiros de projetos, porque isso está de acordo com o modo de pensar deles. Além disso, nenhum currículo poderia ignorar a história que cada aluno traz, seus conhecimentos anteriores, suas vivências.

          A disciplina Educação Física, segundo os participantes da aula aberta, não é um espaço de especialização esportiva. Seu objetivo maior não é o alto rendimento esportivo. Seu objetivo é ter o esporte como um de seus inúmeros conteúdos, e de maneira educacional, de forma que o esporte possa ser bem ensinado, mas que ele sirva também de veículo para os alunos vivenciarem virtudes e formarem conhecimentos para a vida fora da escola.

          Porém, dizem os professores, mesmo que a atuação dos professores de Educação Física fosse desastrosa, e na maioria dos casos não é, ao contrário, a atitude do MEC de tirar a disciplina é um contrassenso. A disciplina é importante e deve ser mantida, aperfeiçoada. A boa atitude do MEC seria buscar caminhos, entre eles o diálogo com professores e adolescentes, para fortalecer a Educação Física.

          Foi aventada a hipótese de o MEC ter como base, para sua atitude, as aulas ruins de Educação Física. Nem isso justificaria sua eliminação, porém, o Ministério da Educação deveria tomar como base as aulas boas, a melhor das aulas de Educação Física. Podemos apresentar ao MEC milhares de exemplos de aulas muito boas que, certamente, seus técnicos ignoram. Se não ignorassem não teriam tido tal atitude.

          Uma questão que surgiu entre os participantes, que remete, inclusive, para uma aula aberta específica sobre o tema, é a questão do método. Embora sejam fartos os conteúdos, questões ligadas a objetivos, à didática, aos diferentes modos de orientar as práticas, enfim, ao método, constituem o grande entrave na realização de um currículo. Em Educação Física falamos muito hoje em ensinar os conteúdos a todos, em ensinar bem os conteúdos a todos, e em ensinar além dos conteúdos a todos. De forma que, por exemplo, um aluno aprendendo o handebol, possa aprendê-lo bem, mas aprender além dele, isto é, adquirir com esse esporte conhecimentos que se generalizem a outras situações de vida. Se lidarmos bem com o método, especialmente de uma maneira transdisciplinar, os conteúdos da Educação Física podem, além de ensinar a prática específica, ensinar os alunos a conhecerem melhor o próprio corpo, a lidar melhor com as emoções, a enriquecer seu vocabulário motor, a desenvolver uma moral autônoma, a se inserir melhor no grupo social, a aprender a viver no espaço público, etc. Aulas bem orientadas metodologicamente podem gerar conscientizações extremamente importantes para a vida na escola e fora dela.

          Os bons profissionais de Educação Física acreditam que não dá mais para chegar na escola e dizer aos alunos de Ensino Médio que vão passar o semestre batendo bola, não importa qual o esporte. Esses bons profissionais sabem que alunos de Ensino Médio possuem inteligência de alcance mais que suficiente para entender que isso não tem sentido. Na adolescência há coisas mais importantes para fazer, como os projetos no âmbito esportivo ou outros, há a questão dos anabolizantes e outras drogas, o sexo, o gênero, a inclusão, os preconceitos, etc., tudo matéria de escola, matéria de Educação Física. Os conteúdos mais típicos da Educação Física, como o esporte, podem constituir temas geradores para todos os demais temas atuais de nossa sociedade que afetam, sem dúvida, alunos de Ensino Médio. Muitas vezes os projetos podem começar exatamente por aquilo que os alunos mais gostam, mais querem. Podemos até aproveitar a fixação de muitos dos alunos por bater bola no futebol para fazer com eles projetos de futebol que gerem a compreensão de inúmeras questões além do futebol.

          O MEC não perguntou aos alunos se eles gostam da escola e se abandonariam as aulas que consideram ruins, se pudessem. Quando alunos dizem que a aula é ruim, por mais que os professores não concordem, isso tem que ser considerado. Não quer dizer que o conteúdo ofertado não seja bom, que o professor não tenha planejado, mas a opinião do aluno é importante. Talvez a aula tenha que ser dada de um outro jeito. Deve ser um inferno para os alunos passar quatro horas todos os dias dentro de uma sala de aula, acorrentado a uma carteira. A Educação Física os tira dessa prisão, e esse ponto é decisivo na constituição de aulas mais afins com aquilo que a pessoa verdadeiramente é, isto é, uma pessoa de carne e osso, uma pessoa encarnada, que, para viver sua vida neste mundo tem que ser corpo, tem que respirar, tem que se movimentar. Somos criaturas motoras, e fora disso não há vida possível.

          Muitos professores se queixam de ter apenas uma aula de Educação Física por semana. Se considerarmos os tantos exemplos de belas aulas de Educação Física, sem dúvida deveríamos ter três ou mais aulas por semana dessa disciplina. Não se pode pensar em educação para a liberdade com alunos presos a carteiras tanto tempo, na verdade, quatro horas por dia, 200 dias por ano, 12 anos, ou, exatamente, 9600 horas sentados em sala. O MEC não pensou nisso? Não acha isso um absurdo? Não pensou que melhorar a educação pode depender de enfrentar esse absurdo? Como querer que uma criança seja criança nessa situação? Como querer que um adolescente seja adolescente nessa situação?

          Alguns professores deram exemplos de trabalhar, no Ensino Médio, com Hip-Hop, esgrima, saúde e beleza, rugby, enfim, com um universo tão grande de possibilidades, com tanta coisa que soa agradável para os alunos, que não podemos conceber que o MEC ignore tudo isso quando projeta o descarte da Educação Física. Temos sempre que lembrar que na aula de Educação Física os alunos podem ser alegres. Com alegria também se aprende.

          Vários professores assumem turmas de alunos em que os adolescentes estão acostumados com a prática de pegar bolas e jogar à vontade, sem orientação didática. Quando esses bons professores sugerem coisas diferentes, consequentes, os alunos estranham e até principiam por rejeitá-las. Porém, aos poucos vão entendendo a proposta, discutem, planejam com os professores e se entusiasmam pelas novas práticas.

          Enfim, os participantes da aula aberta entendem que a Educação Física, no Ensino Médio e em outros níveis, precisa de identidade. O que estaria no centro dessa disciplina pedagógica? De maneira geral, as pessoas entendem que no centro está o movimento, mais especificamente a motricidade, que é o conjunto de coordenações motoras que realiza as diversas maneiras de viver. Portanto, o centro das atenções quando orientamos nossas práticas é o desenvolvimento e aperfeiçoamento da motricidade. A motricidade é uma espécie de vocabulário motor, ou de pauta musical, porquanto uma coordenação é sempre uma composição de coisas no espaço e tempo, algo muito semelhante à música.

          Dissemos, na aula aberta, que o esporte tem virtudes e vícios. No esporte temos a coragem e a covardia, a ousadia e a insegurança, o desejo e a temperança, a inveja e a parceria, o individualismo e a solidariedade, o ódio e a compaixão, o amor e a indiferença. Nossos alunos, no esporte, passarão por tudo isso. Mas isso pode ser feito de um jeito em que as virtudes serão potencializadas e nossos alunos poderão ter consciência de boa parte das ações que realizam. A depender do método.

              Teríamos que dizer ao MEC que a Educação Física tem que estar no Ensino Médio. Diríamos que precisamos de, no mínimo, três aulas por semana para o Ensino Médio. Os alunos adolescentes precisam de esperança, de identidade, de afetividade, de exercitar virtudes, de viver dificuldades, de sentir alegrias, de aprender melhor a viver para um mundo melhor. Diríamos ao MEC que, provavelmente, tirar a Educação Física da escola é expulsar o próprio corpo da escola. E, como disse um dia nosso querido filósofo Manuel Sérgio, nós somos o próprio corpo. O corpo não é como algo que temos, um lápis, uma caneta; podemos jogar nossa caneta fora e continuaremos sendo nós. Mas não podemos jogar o corpo fora e continuar sendo nós.