Integra

 Os jogos e as brincadeiras se constituem em uma das referências concretas sobre a cultura lúdica popular e permeiam o dia a dia do Homem. Nas comunidades onde as experiências infantis - as brincadeiras de crianças - acontecem, ainda, nas ruas, percebe-se grande variedade de atividades por elas vivenciadas. De onde vêem estas brincadeiras? Desde quando tais jogos existem? Será que os pais ou avós destas crianças brincavam assim?


 Na tentativa de resgatar o lúdico no contexto escolar, foi tratado, pela disciplina Educação Física, o conteúdo jogos enquanto componente da cultura popular historicamente construída e manifestada corporalmente. Para realizar tal busca, houve participação de toda a comunidade escolar, através de um trabalho interdisciplinar, em que a bagagem cultural trazida pela criança foi valorizada, partindo-se deste conhecimento para se seguir adiante criando e reinventando atividades.


 O projeto "Oficina de jogos e brinquedos: um resgate do lúdico na escola" foi proposto pelo Departamento de Esportes/Divisão de Educação Física Escolar e aplicado na Escola Municipal Marília de Dirceu, por iniciativa da professora, e pela possibilidade de riqueza nas informações a serem coletadas na comunidade de Filgueiras, bairro onde se localiza a referida escola. Os alunos envolvidos diretamente no projeto cursavam a 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª séries do ensino fundamental.


 Seguindo a caminhada...


 O primeiro contato com os alunos para apresentação e discussão do projeto provocou euforia para muitos, mas também uma reação pouco promissora para outros que manifestaram dificuldades em superar todas a etapas do projeto que culminaram na confecção de brinquedos, utilizando materiais alternativos(sucatas), e também na produção de um ‘livro` de jogos e brincadeiras.


 Para resgatar a cultura popular lúdica da comunidade de Filgueiras foi realizada uma pesquisa, pelos alunos da referida escola, sobre as atividades vivenciadas por seus pais, tios, avós durante sua infância. Pediu-se que trouxessem depoimentos de seus parentes como também a descrição dos jogos e/ou brincadeiras. Pudemos perceber em algumas declarações a importância do brincar e seus significados para a vida do Homem:


 "A infância do meu pai quando era criança da minha idade era bola e bicicleta... Só gostava de brincar com seus irmãos e primos na casa da minha avó porque tinha um quintal muito grande. Eles se reuniram, fizeram um campo de futebol que tem até hoje. Tia, você acredita que o meu pai me levou lá e a gente brincou? Ele sorriu muito por que meu pai começou a lembrar quando ele brincava com seus irmãos..." (Camila Cerqueira - 2ª série).


 Outras mostram experiências vazias e tristes de quem, não viveu sua infância com base em suas imaginações, em um mundo diferente.
"Meu pai brincava de carrinho, bolinha de crica, bola e aos quinze anos meu pai começou a trabalhar de servente de pedreiro e acabou a infância de meu pai. Hoje meu pai é um grande homem, responsável, (...) cuida de mim, do meu irmão e da minha mãe... Minha mãe não teve infância..." (Michele - 3ª série)


 Todos os depoimentos e descrições de atividades foram analisados junto com a turma, identificando semelhanças e diferenças com as realizadas, atualmente, por eles e experenciadas por todos posteriormente. Destacou-se a cobrança dos alunos para que suas brincadeiras fossem vivenciadas e também a curiosidade por aquelas descritas pelos colegas o que tornou a participação bastante positiva. Vale a pena destacar que ao se trabalhar as atividades propostas, era feita uma análise sobre as mesmas, estimulando a capacidade de modificação, o que, consequentemente, possibilitou vivências diferenciadas de um mesmo conteúdo. O trabalho pedagógico voltado para a possibilidade de modificação - para a transformação - buscou a superação de valores como a cooperação, a solidariedade, em detrimento da individualidade, da competição e da exclusão. Parte desta etapa foi realizada articuladamente com as professoras da disciplina português, resultando no livro denominado de "Jogos e brincadeiras da comunidade de Filgueiras".


 Paralelamente a este trabalho foi feita uma campanha para coleta dos materiais alternativos que seriam transformados em brinquedos. Estimulou-se a criatividade dos alunos que foi reforçada pela valorização de suas idéias e deu-se ênfase na importância de utilizar todo e qualquer material, pois a imaginação e o trabalho concreto nos fazem dar grandes passos para um mundo ‘desconhecido’. A construção/reconstrução de brinquedos, ou seja, a transformação de objetos partiu das atividades descritas e colhidas pela pesquisa realizada não se limitando ao que foi sugerido nesta produção, sendo seguidos todos os impulsos imaginativos. Durante a realização das atividades os alunos se organizaram em pequenos e grandes grupos que transcorreram de forma eficiente, trabalhando cooperativamente.

 No decorrer das aulas sempre discutíamos sobre a necessidade do respeito ao colega, sobre as capacidades e os limites individuais e que determinadas coisas ou fatos são mais importantes para uns e menos para outros. Isto nos mostra que indivíduos que moram em uma mesma comunidade podem possuir visões diferentes sobre os acontecimentos da vida uma vez que as experiências vividas por cada um são diferentes .


 Houve momentos em que alguns alunos queriam provar que eram mais inteligentes e criativos que os demais, ou seja, ‘melhores’. As reflexões realizadas constantemente criaram condições para a mudança de postura dos alunos diante a produção dos colegas e muitos se surpreenderam com a evolução dos trabalhos. Os componentes dos grupos atuaram em várias funções valorizando as idéias advindas dos colegas da turma mesmo que estes participassem de outro grupo naquele momento, mostrando um trabalho cooperativo e de respeito. Os brinquedos foram construídos segundo a realidade vivida por eles, passando do concreto - a situação real de contato com o material - ao significado que este representa para cada um - sua imaginação. Segundo VYGOSTKY(1991) o cerne da aprendizagem é a produção do conhecimento que deve acontecer contextualizada, próxima à realidade em que o aluno se insere, buscando o desenvolvimento real, tendo por base o seu potencial, em patamares cada vez mais elevados. Afirma que "o ‘bom aprendizado’ é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento" (p. 101).


 Além da produção do livro "Jogos e brincadeiras da comunidade de Filgueiras", foram criados diversos brinquedos como o jogos de dama, boliche, avião, vai e vem, pés de lata, bolas de meia e papel, raquete, televisão, vídeo cassete, bilboquê, resta um, dentre outros. Alguns dos materiais alternativos utilizados foram as caixas de ovos, garrafas descartáveis, latas, mangueiras, torneira, caixa de papelão, isopor, barbante e tintas pois os brinquedos receberam cores segundo o desejo dos alunos.


 Ao mesmo tempo da sua construção, os jogos/brinquedos eram experenciados de forma excitante pelo prazer do jogar e pelo fato destes constituirem sua própria produção (dos participantes). Pudemos constatar que nem sempre os brinquedos comprados proporcionam mais prazer do que o simples fruto da imaginação e da criação.


 No transcorrer do projeto ficou evidenciado o envolvimento da comunidade escolar em seu desenvolvimento. Professores e pais discutiram sobre o projeto e sobre as tarefas que os filhos tinham que cumprir - a produção do texto e coleta de materiais - e nestas oportunidades falávamos sobre cultura lúdica popular e a necessidade do seu resgate.


 Apesar das dificuldades encontradas em algumas escolas como, por exemplo, a carência de espaço e recursos materiais que influenciam a atuação pedagógica, pode-se realizar um trabalho de qualidade e significativo para a comunidade escolar. Neste projeto, houve a preocupação em contextualizar o conteúdo, aproximando-o da realidade social em que a escola se insere, investindo na capacidade de criação do educando e apostando na transformação dos materiais alternativos, tendo por subsídio uma pedagogia crítica e progressista. Os valores priorizados, buscavam promover a sua autonomia, criando possibilidades de se exercer o poder de decisão, de estimular a criatividade e de proporcionar a superação do senso comum. Intervindo no processo ensino-aprendizagem o educando desenvolver-se-á enquanto cidadão ativo e crítico o que certamente refletirá em sua ação cotidiana na sociedade, transformando-a se necessário. Os discentes vivenciaram a possibilidade de construção/reconstrução do conhecimento/valores, distanciando-se da forma tradicional de reprodução do que lhes é determinado. Segundo Freire(1997) não somos "mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero..." (p. 111).


 Do trabalho realizado, verificou-se que há possibilidades de mudança, de transformação desde que assumamos um compromisso político e pedagógico com a educação pois somos condicionados a algumas coisas, mas não determinados a segui-las imutavelmente.
Obs.A autora é mestranda em Ciência da Motricidade Humana na Universidade Castelo Branco e professora no ensino fundamental na Escola Municipal Marília de Dirceu - Juiz de Fora, MG


 Referências bibliográficas


Bracht, W. (1991). Aprendizagem social na educação física. Porto Alegre: Magistério.
____________. (1997). "Educação física: conhecimento e especificidade" in Trilhas e partilhas: educação física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte, p.: 13 - 26.
Betti, M. (1991). Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento.
____________. (1992). "Ensino de primeiro e segundo graus: educação física para quê?" in Revista Brasileira de Ciências do Esporte. 13 (2): 282 - 7.
Castellani Filho, L. (1991). Educação física no Brasil: a história que não se conta. 3 ed., Campinas: Papirus.
____________. (1992). "Pelos meandros da educação física" in Programa para aperfeiçoamento de professores da rede estadual de ensino. São Paulo.
Charlot, B. (1986). A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. 2 ed., Rio de Janeiro: Guanabara.
Daolio, J. (s/d). Educação física a partir do movimento. UNICAMP. Texto mimeo.
____________ (1995). "Por uma educação física plural" in Motriz - vol. 01, n( 02/dezembro.
Freire, J. B. (s/d). "Por que a escola tira o corpo fora" in Ponto Final, São Paulo, (mimeo).
____________ (1994). Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: ed. Scipione.
Freire, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra (coleção leitura), 1997.
____________. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Freitag, B. (1986). Escola, estado & sociedade. 6 ed. São Paulo: Ed. Moraes.
Ghiraldelli Jr., P. (1992). Educação física progressista: a pedagogia crítico social dos conteúdos e a educação física brasileira. 4 ed. São Paulo: Ed. Loyola.
Hildebrantd, R. & LAGING, R. (1986). Concepções abertas no ensino da educação física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.
Libâneo, J. C. (1994). Didática. São Paulo: Cortez.
Marcellino, N. C. (1990). Pedagogia da animação. Campinas - S.P.: Papirus.
____________. (1995). Lazer e educação. 3 ed. São Paulo: Papirus.
Oliveira, V. M. de (1994). Consenso e conflito da educação física brasileira. Campinas: Papirus.
Paro, V. H. (1995). Por dentro da escola pública. São Paulo: Xamã.
Saviani, D. (1991). Escola e democracia: teorias da educação; curvatura da vara; onzes teses sobre educação e política. 25 ed. São Paulo: Cortez.
Siebert, R. S., et al. (1996). "Experiência de uma pedagogia não-autoritária: limites e possibilidades" in Educação libertária: textos de um seminário. Rio de Janeiro: Achiamé; Florianópolis: Movimento-Centro de cultura e Autoformação.
Soares, C. L., et al (1992). Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez.
Valle, L. de A. B. do (1997). Rio de Janeiro: DP&Aeditora.
Vygostsky, L. S.(1991) A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.