Integra

Música alta e agitada embala a aula de ginástica: a cena, comum em espaços fechados e pagos, no Recife, ganha um novo perfil em praças e parques públicos desde a criação da Academia da Cidade, programa de promoção da saúde da Secretaria Municipal de Saúde, com ênfase em atividade física, lazer, alimentação saudável e também convivência e acolhimento. Em um deles, o Sítio da Trindade, uma turma com cerca de 20 mulheres com mais de 40 anos resiste a exercícios pesados em sequência. Alongamento, agachamento, flexão. Entre as alunas, estão Cristina Maria de Lima e Vera Lúcia Ribeiro, colegas com objetivos bem diferentes - e que se completam.

Cristina caminha por uma hora na pista do parque e depois sua em duas aulas de ginástica seguidas, diariamente, desde que recebeu a recomendação médica de perder peso - sete meses atrás, ela ultrapassava os 100 quilos e tinha níveis altos de colesterol, triglicerídeos e açúcar no sangue. O tratamento, que também contou com mudanças na alimentação, fez com que emagrecesse 40 quilos. "Venho todos os dias, porque aqui encontro a motivação de que preciso".

Vera Lúcia também segue as orientações da professora, mas preocupa-se menos com o peso. "Fiquei viúva há nove anos e entrei em depressão, até que uma vizinha me convidou a fazer as aulas", relembra. "Os professores e as colegas são uma maravilha, fui até rainha do milho na festa junina", diz, referindo-se a um personagem da quadrilha tradicional.

Com atividades em pontos diversos da cidade, o programa extrapola os cuidados com o corpo, propondo atividades para manter a mente saudável - eventos, passeios, bloco de carnaval. A filha de Vera Lúcia, Talita, acompanha a mãe ocasionalmente e comprova os efeitos positivos: "Ela chegou a frequentar uma academia privada, mas não vi o mesmo resultado nos aspectos físico e mental".
LAÇOS

Histórias como essas se sucedem nos 21 polos da Academia da Cidade - outros 20 estão em construção e a meta da prefeitura é somar 50 até o fim de 2012. "As pessoas criam laços, o que aumenta a adesão às atividades", diz o gerente do programa, Ebrivaldo Cavalcanti.

Estudo liderado pelo pesquisador Eduardo Simões, do Centers for Disease Control and Prevention, órgão ligado ao governo americano, e publicado pelo American Journal of Public Health, concluiu que a Academia da Cidade é "uma iniciativa modelo, com impacto efetivo no incentivo às atividades físicas e de lazer em área urbana". Constatou-se que um usuário da academia é onze vezes mais propenso a realizar atividades físicas no nível recomendado (moderado a alto) no horário de lazer do que uma pessoa que nunca participou do programa.

Outro estudo, esse liderado por Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (RS), e publicado nos Cadernos de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), avaliou que a Academia da Cidade propicia a realização de atividade física no lazer a quem habitualmente não tem essa oportunidade e tem interesse - como as mulheres, que segundo a pesquisa, são 89,2% dos usuários.

A baixa participação dos homens nas aulas é notável: em turmas de 20 pessoas, dificilmente eles somam mais de dois representantes. "Temos o mesmo problema nas unidades de saúde: os homens frequentam pouco", observa o diretor de Atenção Básica do Ministério da Saúde, Heider Pinto. "É preciso que os municípios que aderem ao programa tentem criar pontes e trazer esse público, oferecendo atividades que os atraiam".

Recife tem experiências pontuais nesse sentido. Quando começou a trabalhar no polo da Ilha do Joaneiro, a profissional de Educação Física Elisa Guerra notou que apenas mulheres frequentavam as aulas, enquanto os homens se limitavam a correr na pista que circunda a praça. "Disseram que sentiam vergonha de se juntar ao grupo", relata. Elisa, então, decidiu criar uma turma especialmente para eles, com exercícios mais fortes, em circuito, inspirada no treinamento militar. Nos primeiros dois dias, só apareceram dois alunos; hoje, cada turno tem em média 12 homens.

"Não participava da aula porque só tinha mulher", confirma Edson Santos, um dos que só corriam em volta da praça. O colega de turma Otávio Henrique da Silva também foi chamado a participar. "Emagreci cinco quilos em um ano, tenho mais resistência, mais força, alongo melhor", enumera. "Agora, quando os homens passam e veem a aula já se interessam", festeja Elisa.

Para os homens, que sentiam vergonha de participar das aulas, atividades mais fortes e atraentes, em circuito. (Foto: Dayane Martins)

PARTICIPAÇÃO SOCIAL

O polo da Ilha do Joaneiro, tal qual a maioria, tem espaço demarcado para aulas, aparelhos para ginástica e pista de corrida. Um bloco de apoio com três salas guarda os materiais da academia (step, colchonete, alteres) e recebe os usuários para avaliação física trimestralmente. Os novos terão banheiro e área coberta, demandas dos usuários - no período de chuva, cai a frequência.

Usualmente, os polos são construídos em espaços abandonados, que passam por longo processo de requalificação. Lugares antes escuros e depredados, ocupados por usuários de drogas, passam a servir à saúde. Para que um polo seja construído, é preciso que a comunidade faça essa solicitação. "O que pereniza e legitima o programa é a participação social", avalia Ebrivaldo Cavalcanti. "A comunidade valoriza esses espaços e tem com eles forte sentimento de pertencimento". Um exemplo, registrado no Coque, bairro onde funciona um polo: "Um jovem que pichou os muros da academia foi instado pela comunidade a pintá-los", conta o coordenador de área da Academia da Cidade Marcílio Silva.

CONCURSO PÚBLICO

Os professores vestem uniforme: calça e boné vermelhos e camisa branca. Todos cumprem metade da carga horária de 30 horas semanais em polo fixo e metade em intervenções na comunidade. Hoje, a Academia da Cidade tem 93 profissionais de Educação Física, todos concursados, e 28 estagiários. "Inicialmente, o vínculo era precário e o caminho foi fazer uma seleção simplificada e depois o concurso", conta Ebrivaldo.

O salário base é de R$ 1.300, ao qual são adicionadas gratificações. "Dificilmente alguém formado em Educação Física ganha essa valor no Recife, a não ser que trabalhe como coordenador numa academia de ponta", diz Gledson Oliveira, professor do polo do Sítio da Trindade. "E ainda temos a estabilidade do concurso público".

As atividades supervisionadas se realizam das 5h30 às 8h30 e das 17h às 20h. Entre 8h30 e 17h, os profissionais da academia trabalham em Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ou com grupos articulados por unidades de saúde em comunidades. Foi a solução encontrada para atender mais pessoas, já que os polos não cobrem toda a cidade. "Para atingir a população do Recife, precisaríamos de 300 polos", calcula Ebrivaldo.


DESDOBRAMENTOS NO CAPS

Fora dos polos, a Academia da Cidade ganha outra cara. No Caps infantil Zaldo Rocha, que atende crianças com transtornos mentais de 0 a 15 anos incompletos, a atividade física auxilia no tratamento das dificuldades motoras, de linguagem e de interação. "Quando proponho uma partida de futebol, muitos só querem chutar; o meu papel é organizar, mostrar as regras, fazer com que se concentrem, passem a bola, entendam que o jogo tem começo, meio e fim", conta a professora Juliane Suellen Galvão.

Crianças com quadro mais grave, que não conseguem interagir bem com o grupo, têm aulas na piscina, juntamente com suas mães. "Quando as levamos para a água, se localizam no espaço e respondem melhor aos estímulos", diz. A situação de cada criança é relatada pela professora em reuniões clínicas regulares com toda a equipe. "Nos Caps, os objetivos não são a perda de peso e a melhora do condicionamento físico, tudo isso fica em segundo plano", ressalta a coordenadora de área Raquel Pajeú.


FERRAMENTA DE SOCIALIZAÇÃO

Trabalhando com dependentes químicos no Caps álcool e drogas Eulâmpio Cordeiro, o professor Leonardo Wanderley Delgado reforça que, nesses espaços, a Educação Física é ferramenta de socialização. "A atividade física permite que se expressem com o corpo".

Leonardo diz que o trabalho não é fácil e admite que, inicialmente, ficou assustado com a responsabilidade. Durante a graduação, lembra, apenas uma disciplina - Educação Física adaptada - tentou dar conta das especificidades de atuação com grande variedade de grupos: hipertensos, cardiopatas, pessoas com deficiência, dependentes químicos. Marcílio, que já passou pela mesma experiência, compara: "É como trocar o pneu com o carro em movimento, você se depara com uma realidade da qual ouviu falar, mas que não conhece".

O primeiro passo, conta Leonardo, foi tentar estabelecer uma relação de confiança com os usuários e com a própria equipe do Caps. "No começo, alguns questionavam que contribuição alguém formado em Educação Física poderia dar no tratamento de dependentes químicos. Hoje, já nos veem como profissionais de Saúde", diz. "É uma experiência pioneira de aplicação da Educação Física. Abre um novo campo para nós".

O planejamento das atividades é feito com participação dos usuários. "Eu cheguei muito acomodado, não tinha ânimo para nada, e por incentivo do professor voltei a jogar futebol aqui e lá fora", diz Homero, usuário do Caps, referindo-se ao estímulo para procurar ocupações fora da unidade.

"É desafiador e apaixonante trabalhar em Caps, acho que sou mais importante aqui, eles valorizam mais o meu trabalho", analisa Leonardo, que identifica progressos físicos e emocionais nos alunos. Mas o professor ressalva que precisa lidar constantemente com a frustração, já que são comuns os casos de recaída: "Nesse contexto, nunca vamos ter 100% de sucesso, e, quando o usuário perde, a equipe perde".

DEMANDA DA COMUNIDADE

A Academia da Cidade tem vínculo com unidades básicas de saúde. Um exemplo: o programa encampou o grupo Razão de Viver, formado por idosos com hipertensão e diabetes tratados na Unidade de Saúde da Família Bianor Teodósio, no bairro Dois Unidos. O grupo surgiu por iniciativa dos agentes comunitários. "Íamos de casa em casa convidando as pessoas para caminhadas no campo de futebol", relembra o agente comunitário Graciliano Gama, o Guga. No início, a turma tinha 20 pessoas; hoje, são em média 150 - estão cadastrados 217.

Fortes temporais destruíram recentemente o campo de futebol onde o grupo se reunia, às margens do rio Beberibe, na divisa do Recife com Olinda, mas os encontros continuam acontecendo, numa rua de paralelepípedos perto dali. "Estava cheia de dor quando vim, porque sofro de osteoporose, mas melhorei desde que entrei no grupo", diz Elina de Souza Batista, de 82 anos.

Diferentemente do que acontece nos polos da Academia da Cidade, nessa comunidade a aula só começa depois que a pressão da turma é aferida. "Quem está com pressão acima de 14 por 8 não faz os exercícios e eu converso para saber se está tomando o medicamento e seguindo a dieta", explica o agente Guga.

Grupo Razão de Viver, vínculo do programa com unidades básicas: melhora da saúde e criação de laços entre idosos. (Foto: Dayane Martins)


GRANDES POSSIBILIDADES

Eliude Santos, de 56 anos, chegou ao Razão de Viver indicada pelo médico da unidade de saúde: "Minha pressão era 14, 15, agora não passa de 13". Ela está satisfeita não apenas com o controle da hipertensão, mas com os passeios mensais do grupo. "Já fomos à oficina do escultor Francisco Brennand, ao Espaço da Ciência, ao Teatro Santa Isabel", enumera. "Se não estivesse no grupo, nunca teria conhecido esses lugares".

No Centro Médico Ermírio de Morais, a Academia da Cidade cuida de pacientes com hipertensão e diabetes grave. "Somos o braço de reabilitação do programa", resume a professora Viviane Leite. Os usuários chegam encaminhados por endocrinologista ou cardiologista da unidade, são avaliados pela academia e passam a integrar a turma de fisioterapia ou a de atividade física. Pressão e glicose são aferidas antes, durante e depois dos exercícios. Os resultados falam por si: redução de 55,15% no uso de medicamentos para hipertensão, de 61,4%, para diabetes, e de 100%, para dislipidemia (presença de níveis anormais de lipídios ou lipoproteínas no sangue).

Na Unidade de Cuidados Integrais à Saúde Professor Guilherme Abath, há grande procura pela hidroginástica, especialmente por quem sofre com artrite e osteoporose: "A lista de espera tem quatro folhas", diz a professora Bárbara Amaral. Georgia Amari, que tem bico de papagaio, já fez parte de uma turma (com duração de três meses) e conseguiu retornar à piscina. "Passo a tratar as pessoas melhor, a viver melhor, a ver o mundo melhor", relata.

"A Academia da Cidade não é a salvação do mundo, mas é um espaço com grandes possibilidades", avalia Ebrivaldo. Para ele, o programa acerta ao se afastar da recuperação, centrada na figura do médico, e se aproximar da promoção da saúde, por meio do incentivo à atividade física, à alimentação saudável e à criação de laços em espaços públicos. Heider Pinto aponta programas desse tipo como forma de o setor fugir de seu caráter normativo: "Mostra que podemos pensar outros jeitos de se enfrentar os problemas de saúde, construir alternativas".

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