Resumo

. (...) Rezo a tudo o que floresce e frutifica. Nada que cante ou que dance me é indiferente. Nada que fira ou destrua me é semelhante. Faíza Hayat 1. Dezembro é um mês que convida a atitudes de revisão e balanço. Para os cristãos acresce o apelo a uma renovação festiva da esperança e do sentido da humanidade. O balanço impõe-se porque é nesta altura que o ano chega ao fim, que um ciclo temporal se fecha. A esperança renova-se porque o Natal desperta o melhor que há em nós, acorda sonhos e a vontade de os realizar. A estrela da noite de Natal é uma bússola mensageira para todos nós. Anuncia-nos o fim do tempo velho e a chegada de um tempo novo, a vinda da redenção do Homem e a indicação dos caminhos para lá chegar. O velho fica e puxa para trás, amarra-nos de pés e mãos ao chão raso, às nossas fragilidades, defeitos e vilanias, à nossa desídia, indolência, preguiça, indiferença e demissionismo; o novo leva-nos dianteira, ergue-se à nossa frente e acena-nos do alto, exige superação e excelência, pede fôlego e asas para lá chegar. Podemos ter sido heróicos e corajosos nos caminhos que já galgámos, mas isso não conta mais; para ganhar o futuro é preciso colocar novos desafios aos dias do presente. É este um legado das matrizes grega e judaico-cristã da nossa cultura. O mito de Prometeu, o nascimento de Jesus e o sacrifício de Cristo são fonte de inspiração permanente da vida das pessoas e das instituições. Entram todos os dias em cena; nunca se gastam e constantemente se renovam. Impõem a todos um destino que não pode ser iludido. Também é assim com esta revista. Desde o início tomou boa nota do ensinamento de Fernando Pessoa. De que o nosso tamanho não é o que temos; mas o que vemos e sonhamos. E, como se sabe, os sonhos - para assim poderem ser designados - devem ser grandes. Não dão descanso perante as etapas já percorridas; antes apontam a distância que sempre falta andar. E que é mister cumprir, com o alvoroço e a satisfação próprias do balanço acerca do quanto já foi percorrido, mas também com o sentido de obrigação inerente a uma consciência apurada das novas metas que há para alcançar. Fazendo jus à constatação de Alberto Einstein: “A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”. 2. A União Europeia sentiu necessidade de fazer de 2004 o ano da educação pelo desporto, tirando partido do Campeonato Europeu de Futebol em Portugal e dos Jogos Olímpicos em Atenas. Em boa hora adoptou a UE tal iniciativa, uma vez que ambos os eventos foram berço de ressurgimento do espírito desportivo. Em Portugal o fervor, o júbilo e a euforia enrouparam a competição; o agonismo foi levado até ao rubro, mas revelou simultaneamente que o desporto é um campo de florescimento fulgurante da nossa transcendente humanidade, por constituir um superior património, inventado pelos homens para legar e transmitir princípios, valores e ideais. Em Atenas a essência do desporto e do olimpismo esteve em alta. A conjuntura foi de genuína autenticidade. O combate à fraude, à batota, à desumanização e perversão do sentido do desporto foi retomado e registou vitórias retumbantes. Do baú das coisas gastas e carcomidas pelo caruncho e pela poeira dos tempos foram recuperadas relíquias e preciosidades recebidas com cânticos e louvores pelos corações cansados de frustração e desalento. As almas brancas voltaram a rejubilar. A rainha da festa foi a verdade, a beleza no seu máximo esplendor. Foi assim que Platão a coroou. O doping continua cheio de arrogância, de manhas e de esperteza, mas encontra pela frente a determinação das convicções e da vontade. A máscara vai, aos poucos, caindo a muita gente; a hipocrisia de incriminar apenas os atletas está finalmente a ser posta em causa. Treinadores e médicos têm hoje quem lhes diga, olhos nos olhos, sem medo e sem hesitações e gaguez, que eles são os principais agentes da propagação do flagelo. Sim, como nas outras coisas da sociedade e da vida, há dois modelos de desporto que lutam pela primazia. De um lado situa-se o pesado e escuro exército dos que olham para o desporto só pela janela económica do negócio e dos interesses. Do outro surge em posição cada vez mais avançada e cimeira o pequeno mas estrénuo e firme exército dos que defendem, nas plagas desportivas, um mundo iluminado pela limpidez e brancura da condição humana. Eles sabem que nunca vencerão em toda a linha, nem tampouco os possui esse desejo, porquanto são portadores de uma visão de compromisso e coexistência; porém têm todas as razões para estar contentes consigo mesmo, por verem que os seus esforços vão dando os frutos da consideração, do reconhecimento e da aceitação. Não laboram em vão. Estribados na razão afectiva e quente da ética sabem que a utopia é uma maneira de encarar a realidade e de a configurar com novas facetas e dimensões. É este o seu jeito de serem realistas. 3. A ONU quer fazer de 2005 o Ano Internacional do Desporto. Que o desporto é internacional, global e universal – disso não restam dúvidas. Que os valores da paz, da vida, da alegria e da felicidade, que lhe são imanentes, não pintam a cor da situação que hoje reina no Mundo – disso só temos provas tristes e duras certezas. “A vida – assim o disse o grande Vinícius de Moraes, que tão dorida saudade nos deixou e tanta falta nos faz – é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Remediar os desencontros provocados pelo sadismo e fanatismo, pela insanidade e demência, pela avidez e ganância, pela conquista e rapina, parece ser a ingente tarefa que a Organização das Nações Unidas está a chamar a si. Com esse intuito agarra-se ao desporto, num sinal de contabilidade lúcida e simples, decorrente da avaliação das extraordinárias potencialidades que ele encerra. O narrador norte-americano Howard Cosell afirmou que “o desporto é a secção de brinquedos da vida”. É nele que o homem se reencontra e encontra a oportunidade e os meios de recriação da ingenuidade original, da criatividade, da abertura, do riso e optimismo, da alma sonhadora, do coração de emoções e paixões, da consciência das debilidades e fraquezas tão importante para enraizar a humildade, a mais alta categoria humana, aquela que conduz à tolerância e à paz, à aceitação e apreço dos outros. O ideal da paz não é contraditado pelo figurino da competição, da medição e valorização de resultados e de vencedores e vencidos. O desporto e os seus eventos inscrevem-se nos esforços de concretização dos princípios do respeito, da compreensão, da estima, da admiração, da paz activa e da cooperação entre povos de diferentes tonalidades, credos, culturas e estádios de civilização. Nele cresce a esperança de um novo horizonte de emancipação individual e de solidariedade social e planetária. Disto anda o Mundo carecido, pelo que é pertinente e bem avisada a iniciativa da moribunda ONU. Mas também é legítimo e sensato esperar um vento de sinal contrário ou não fossem os EUA um país de contrastes e tivessem como Presidente um indivíduo que combate obstinadamente tudo quanto a medida da ONU subentende. A hora é, pois, de angústia e cepticismo que, por isso mesmo, não podem contar com o nosso conformismo. A ética proíbe a inacção e obriga a enfrentar aquilo que nega a ideia que temos de nós próprios e do destino superior do Homem. No pequeno canto em que vivemos, na modesta função que desempenhamos, nas palavras que escrevemos e pronunciamos, nos actos que praticamos, nas desconhecidas tarefas que assumimos estão em jogo o nosso carácter e a nossa dignidade. Como um lume que não estamos dispensados de acender contra a escuridão do tempo. Para engrossarmos o clarão que a Lua e o Sol irradiarão para toda a parte, rompendo os limites de separação da noite e do dia.