Resumo

É nossa sina não caber no berço. Desde os primórdios que somos emigrantes. O português pré-histórico já era aventureiro, navegador, missionário, semeador de cultura. (…) Todos os caminhos transversais de Portugal vêm ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança ou na imaginação. Miguel Torga Uma noite quente e estrelada ergue-se por cima do convés do navio em que viajamos ao longo do rio Chao Phraya que banha Banguecoque. O luar de prata refulge nas águas e alumia-nos os olhos esbugalhados, quando o guia turístico anuncia a embaixada de Pro-tu-Ked, levantada na insuperável brancura do estilo manuelino. O nosso anfitrião apercebe-se da emoção e fala-nos de Portugal com respeito, admiração e afecto: «Foi o primeiro povo europeu que aqui chegou e foi o único que não veio para destruir. Veio portador de intenções e propósitos de construir.» Perguntamos-lhe o que é que os tailandeses sabem do Portugal contemporâneo. A resposta chega pronta e cabal: «É isso que aprendemos na escola. Não é preciso saber mais, porque o sentido da história não se perde.» Estas palavras adentram-nos a alma como se fossem fantasmas erguidos das pegadas sonâmbulas deixadas nestas e em tantas outras paragens pela humana condição da gesta lusitana. Igrejas que apontam o céu, cruzes que redimem para a eternidade, misericórdias e instituições de auxílio que associam os homens como semelhantes, nomes que misturam o sangue e as pessoas. Na África, no Brasil, na Índia, na Indonésia, na China e no Japão, por todo o lado se confirma o acerto do Pe. António Vieira, de que Deus nos deu «tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer o Mundo.» Em toda a parte se ouve o eco da Cantiga de Ceilão, de Jorge de Sena, a atravessar distâncias de oceanos, a murmurar o hábito de serões e vigílias, de solidões, tédios e saudades que, apesar de outros povos, de outros domínios e de outros reinos, ficaram para sempre nas memórias teimosas de gente abandonada e dissolvida, presa por um fio a um país esquecido e que se esquece ao longe, palavra a palavra. Sim, o mundo é, de um extremo ao outro, uma litania de pegadas sonâmbulas, de pisadas indeléveis de um passado cujo sentido e memória projectam lusofonias pelos séculos fora. Falam-nos de um tempo que já não existe e funcionam como espelho da realidade. Testemunham que, mais do que o poder e o dinheiro, foram a alucinação, a inquietação dispersiva, a atracção da errância e da diáspora, a demanda de espaços abertos, o absurdo e o sonho, o fado e a procura do destino os marcos cimeiros da colonização portuguesa. Uma aventura em que o épico ganha a forma e a substância do poético, não sendo por acaso que a obra maior da nossa literatura é um poema e que o género da poesia se inscreve na carne e na alma de cada português. É tudo isso que faz com que os dois mundos – o colonizado e o colonizador – continuem tão unidos no afecto e na lembrança das gentes. A Lusofonia é assim um facto incontornável, mesmo que a contragosto de algumas vontades. É a retoma do orgulho de continuarmos a ser o que sempre fomos: esforçados, autónomos, remediados, ufanos da nossa mediania; e ricos, sim, de humanidade e de sonho de aventura. Ela impõe-se como um desafio, perante a onda opressiva da globalização em americanês, a convidar-nos a reinventar a nossa identidade etnocultural de nómadas planetários, de romeiros do Santo Espírito, de peregrinos das sete partidas, de cidadãos do mundo. Um desafio do nosso achamento interior, posto pela dificuldade não de sermos, mas antes de nos conhecermos e compreendermos. Sem o enfrentarmos, alerta-nos Torga, «sem um sonho a encher-nos o vazio da noite da vida, como poderíamos amanhecer contentes de nós?» Na trajectória da Lusofonia emerge, sobranceira e em antecipação, a animação polimórfica e polissémica das diferenças. E a sua aceitação. Elas perdem o carácter de limites e fronteiras para se tornarem interiores ao conhecimento de nós, dos outros e das coisas. Ou seja, a diferença e a alteridade integram a norma e deixam de ser a excepção; o mesmo é dizer que o universal é fabricado pelo diferente e deve ser dito no plural. Eis assim o nosso passado a ganhar razão e a encontrar-se justificado e plasmado na nova lógica paradoxal e pluridimensional que hoje desponta no mapa da multiculturalidade. Em suma, é no projecto das Lusofonias e nas suas matrizes que esta publicação se inscreve. Daí que não façamos correcções em textos recebidos do Brasil ou de outros Países; não os submeteremos à norma da grafia vigente em Portugal. E é o mesmo princípio de abertura que nos levará a aceitar, de quando em vez, textos em inglês ou francês ou castelhano, desde que a sua relevância o justifique. Apenas não abriremos mão do facto desta revista ser consagrada à Ciência do Desporto. Não há nela lugar para escritos que se insiram noutra ordem de preocupações.