Resumo

1. A globalização está aí, à escala mundial ou, por enquanto, mais regional. Está aí para o bem e para o mal, com ofertas que vão ao encontro de ambos os paladares. Porém os países e as nações não acabaram, tal como as comunidades culturais e linguísticas, por maior ou menor que seja o seu âmbito geográfico. Pelo contrário, às tendências e mecanismos de uniformização e padronização, de debilitação, branqueamento e anulação de identidades, algumas bem fortes por serem construídas por um transcurso indelével na história da humanidade, a essas tentações há que responder com a afirmação e valorização daquilo que é local e específico. De resto o universal só pode ser o local sem paredes, o local aberto e não fechado sobre si próprio. E do mesmo modo o mundo não deixa de ser uno pelo facto de configurar um caleidoscópio da diversidade. É até disto que lhe advêm o encanto e a beleza, para além da civilização ser uma resultante do diálogo celebrado pelas diferenças. O mesmo é dizer que a globalização requer que entendamos o mundo como um espaço de multiculturalidades. De qualificação e aperfeiçoamento das diferenças e identidades locais, nacionais e regionais. É assim que ela quer ostentar a pretensão de ser um instrumento de promoção da qualidade de vida e de criação de um rosto mais humano em todas as latitudes e longitudes da Terra.

2. Andaríamos mal avisados se não entendêssemos a defesa da nossa língua como o pilar central da nossa identidade, por ser nela que se expressa a nossa idiossincrasia. Não se trata de nos isolarmos ou de ignorarmos que o idioma marcante de uma globalização de forte pendor economicista é o inglês. Trata-se sim de sustentar que a globalização pode e deve ser mais do que isso e que, nas diversas línguas e culturas, se corporizam sensibilidades distintas que nos formam e informam por dentro e por fora. Uma língua é uma forma de conceber e representar a relação com o mundo, com os outros e com a nossa interioridade e intimidade. Com as nossas preocupações, dúvidas e angústias; com as nossas forças e fraquezas; com os nossos sonhos, ideais e esperanças. Um jogo de símbolos e significados, de fintas e simulações. Um meio de encenar e iludir a tragédia da vida, de a revestir de sentido e significado, de a cantar e sublimar.

3. Poder-se-á retorquir que isto não passa de exercício de retórica de um português talvez saudoso de glórias perdidas no baú poeirento das velharias da história. E que acaba agora de ver desaparecer um símbolo da herança da identidade nacional. Realmente o nosso Escudo foi-se embora – o escudo da esfera armilar portuguesa derramada por todos os cantos do globo! A sensação de perda é inegável, mas maior é o sentimento de contributo para a renovação europeia e para o teor de solidariedade e progresso que a anima. O Escudo cedeu o lugar ao Euro; o nacional encolheu-se em favor da afirmação europeia. E com isso a sensação de perda é mitigada pela esperança de assim contribuir para a edificação de um espaço mais lato, balizado por valores de forte pendor humanista e social. Por isso esta hora é de saudade e optimismo. No fundo é uma genuína hora portuguesa, porque todas as nossas horas são um misto de choro e canto, de alegria e tristeza, de riso e lágrimas, de desespero e esperança, de chegada e partida, de descrença e fé. Retomo a suspeição de que a defesa da nossa língua não passaria de um discurso à volta do optimismo desesperado ou do desencanto amargurado e nostálgico da alma e da dor portuguesa, sobre o mito messiânico e sebastianista do nosso fado e destino.

4. Porém não é disso que se trata, para além de que as invectivas contra a defesa do português bem poderiam ser atiradas – e com muito maior propriedade – contra a voracidade de hegemonia do inglês. Cultivar a língua e as suas formas de expressão configura um acto de aprimoramento da liberdade individual e colectiva. Um acto de civismo e patriotismo, de assunção plena da cidadania. Realmente a liberdade da pessoa, a sua autonomia, maioridade e emancipação e a sua defesa da alienação e manipulação passam pelo domínio da língua e pelo exercício elevado da competência de expressão que ela encerra. Uma língua, as suas palavras e o seu uso são uma das próteses superiores do homem para compensar as suas limitações e dependências no relacionamento com o envolvimento. E à mesma luz deve ser entendida a função de uma língua para um povo, uma nação, uma comunidade; ela é polarizadora da sua liberdade, por ser à volta dela que se constrói o imaginário de tudo quanto perfaz a identidade colectiva.

5. Nesta conformidade a atracção por um idioma estrangeiro e o complexo de inferioridade perante outros contextos poderão autorizar muita coisa. Mas jamais conseguirão negar que a língua portuguesa é um majestoso, luminoso, dúctil, proteico e comovente edifício verbal, uma maviosa construção da sensibilidade, dos sentimentos e afectos, onde se condensa uma sublime reinvenção reflexiva e demiúrgica do mundo, em qualquer dos géneros do seu uso, ao nível das melhores realizações do génio criativo da humanidade. Em que outra língua se dizem, cantam e tecem melhor as grandezas e pequenezas do enredo da vida? Ou será que alguém recusa a sublimidade de Camões ou Pessoa, de Jorge Amado ou José Saramago, das canções de tantos e tantos artistas brasileiros, portugueses e africanos, nas quais o ritmo, os sons e as palavras se fundem numa música verbal perpassada de emoções e mensagens que tocam o coração da vida e de cada um de nós? Ou será ainda que as outras línguas oferecem aos respectivos povos um modo tão subtil e refinado de praticar o humor e a ironia, a crítica, a malícia, a mordacidade e a maledicência, a molecagem e a malandragem, de dizer sem dizer, de afirmar negando, de juntar Deus e o Diabo, de misturar o calão e a erudição, de propor recusando, de irmanar a afirmação e o seu contrário?! O problema da língua portuguesa não é o de uma pretensa menoridade intrínseca; pelo contrário, é o de tomar consciência da sua incomensurável grandiosidade e de encontrar os meios para enfrentar as ameaças extrínsecas, fundadas não na superioridade linguística de outro idioma, mas antes na razão da força dos critérios económicos.

6. Uma língua é o local onde nos encontramos e definimos. A nós e ao mundo. É com ela que estabelecemos a relação com ele. E que preenchemos de sentido esse hiato entre os dois. Nesta revista queremos afirmar o sentido da relação da comunidade lusófona com um dos pequenos mundos em que o grande mundo se acha cindido, convencidos também de que na nossa língua podemos reinventar e recriar dimensões do desporto porventura abandonadas ou esquecidas pela dificuldade de serem percepcionadas e formuladas noutros idiomas. Não se constitui, pois, como finalidade nossa uma qualquer prática de afrontamento ou divisão, mas antes o cumprimento da obrigação de integração e cooperação com a comunidade que pensa e teoriza o desporto no cenário internacional. Da janela do nosso olhar e sentir queremos construir a identidade dessa relação e dar dela a melhor imagem que nos seja possível. Porque é que a relação da língua portuguesa com o desporto não há-de atingir os níveis que alcança na literatura, na música, nas artes? Só se for por demérito nosso, por incapacidade de respondermos aos desafios da hora que passa.