Integra

Introdução

A Educação Física, ao longo da história, mostrou-se uma intervenção eminentemente reprodutora da ordem social vigente, uma prática subserviente aos ditames institucionais heterônomos. Originariamente instrumentalizada pelas instituições médicas e militares, e atualmente sob a égide do esporte, os objetivos que a nortearam foram de cunho higienista, eugenista, moral e do desempenho físico-desportivo, configurando-se como uma prática a serviço do poder instituído, da ordem vigente, de uma ideologia que cria num corpo meramente biológico, um meio de disciplina moral, cívica e política importante e, sobretudo, de veiculação dos valores burgueses (BRACHT, 1992 e 1999; SOARES, 1994; VILAÇA, 2004). Como neste estudo a concebemos como uma prática eminentemente pedagógica, de intervenção imediata, podemos considerá-la fortemente influenciada por uma concepção educacional reprodutora (GADOTTI, 2002; LIBÂNEO, 1994; LUCKESI 1994). Neste sentido, a Educação Física cumpre, via-de-regra, o papel de aparelho ideológico do Estado e, portanto, das classes dominantes (ALTHUSSER, 1985). "Manter a ordem" parece ser o lema tácito seguido pelos professores de Educação Física. Reproduzem ipisi literis a cartilha das instituições que a dominam, constituindo-se como uma prática pedagógica fortemente disciplinadora, uma defensora dos "bons costumes e da moral", que, literalmente, incorpora nos atores sociais valores sócio-culturais vigentes. Desta forma, e pensando nos desafios que se apresentam cotidianamente - e de modo mais intenso numa sociedade em profunda crise -, precisamos (re)pensar a formação dos educadores, políticos por natureza (GADOTTI, FREIRE e GUIMARÃES, 2001), outrossim, a sua intervenção. A priori, assentindo com o conselho de Boff (2002) de que nesses momentos ou mudamos ou morremos, urge que a Educação Física saiba e possa dialogar critica e dialeticamente com esse contexto social complexo-diverso, que apesar de nunca ter sido efetivamente subsumido, esteve ideologicamente velado.

Domesticação dos costumes e a idéia de ordem e progresso: Do sonho à desilusão

No que diz respeito ao comportamento humano, e buscando compreender o processo de ordenamento social, é indispensável apontar que o denominado processo civilizador travestiu aquilo que Elias (1994) e Maffesoli (2005) esclareceram, a saber, que o processo, na verdade, era de domesticação dos costumes. Para Maffesoli (op. cit.), "é efeito da domesticação de costumes fazer esquecer que a efervescência é necessária à estruturação social (...)" (p. 19). Busca-se a homogeneização dos costumes, em detrimento da variedade e espontaneidade, visando à conformidade com a postura de classe social específica. O "homem civilizado" era caracterizado pela reestruturação de seus "modos de comportamento", que deveriam expressar todo o decoro coerente do interno no externo. É o agir segundo a justa medida, a ação virtuosa cheia de temperança, prudência e sabedoria, herança da ética aristotélica. Cria-se o padrão de bom comportamento como cortesia, isto é, de acordo com os hábitos dos representantes da Corte. É o que Schmitt (1995) denomina de moral dos gestos, uma moral que, segundo Maffesoli (op. cit), geralmente é inspiradora ou acompanhante da ordem estabelecida. Fixa o modelo e marginaliza, tendo como desviante, todo modo de agir que não seja "adequada". É o princípio opolíneo de sociedade, que tem no monismo absolutista sua meta, ou quiçá, um dualismo maniqueísta. É a tomada da multiplicidade por parte do poder significante, que fica enclausurado em pressupostos binários, tais como, homem/mulher, bem/mal, real/imaginário, etc. (SWAIN, 2002). Aos poucos a dimensão orgiástica da cultura-de-todo-mundo presente no início da Idade Média, penetrando inclusive os círculos religiosos, vai sendo disciplinada (RODRIGUES, 1999). Este processo que tem sua gênese na medievalidade parece ser aprofundado na modernidade. Invés da Igreja-Estado, são os valores de uma proeminente classe burguesia-industrial que determinam as bases de uma "moral dos gestos"; moral esta que traduz o perfil cultura, político, sócio-econômico da sua época, de acordo com Bourdieu, um novo habitus é criado (LAHIRE, 2002; RODRIGUES, 1999). Neste sentido, as expressões corporais tinham lugar de destaque neste processo. Através dos gestos se pode discernir a qual classe se pertenceria e, conseqüentemente, a aquiescência de seus valores. Decerto, esse contexto supracitado surge sob o auspicioso, porém enganoso ideal de que a humanidade estava adentrando num período de franco e linear progresso que só seria possível à medida que ela se civilizasse, isto é, que extirpasse aberrações orgiásticas. Associado ao avanço das ciências e da tecnologia; à crescente industrialização; aos valores da classe burguesa capitalista, esse processo aponta para um crescimento sócio-econômico sem precedentes e sem ‘prazo de validade’, criando um sentimento de euforia. Não obstante a todos os avanços, contudo, o que se viu e vê é uma crescente crise em proporções mundializadas. O prometeísmo do racionalismo técnico-instrumental, dos princípios políticos liberais, que eram algumas das estacas que formavam a base da crença num desenvolvimento rápido, consistente e democrático, não mais despertam em nós aquele sentimento. Individualismo exacerbado, desemprego crescente, epidemias devastadoras, acúmulo de riquezas cada vez mais desumano, o grito da terra e dos pobres, são marcas do nosso tempo e que nos fazem duvidar da onipotência da razão (BOFF, 2003; MAFFESOLI, 2005). Maffesoli conjectura que assim como o processo individuação se encontra extenuado, o social também se mostra bastante cansado, o que nos faz questionar o papel desta ordem como promotora de uma sociedade civilizada.

Irrupção de uma nova (des)ordem: A diversidade de gênero como pluralidade profícua

Apesar da sexualidade, não ser a única dimensão do orgiasmo, parece ser uma das mais expressivas. Segundo Giddens (1993), ela é uma das chaves para compreendermos a modernidade. Esta afirmação é, em certo sentido, fundamentada pelo fato da sexualidade - à semelhança, também os gêneros - ser uma construção social, forjada por uma gama de influências, tais como, religião, classe, raça, idade, etc., sendo um dos temas que mais gerou tensões na história das sociedades.

Louro (apud ALTMANN, 1999) afirma que de que no interior de uma mesma sociedade existem diferentes concepções do que é ser homem ou mulher. Além disso, mas nesta mesma lógica, muitos destas concepções fogem à ortodoxia do binômio homem-mulher regido pelo paradigma da heterossexualidade. Neste sentido, a recente aquiescência da legitimidade - legalidade, pelos menos - da diversidade de gênero parece ser um avanço conquistado pelo processo de busca de reconhecimento por parte de grupos minoritários, que teve seu estopim na década de 70 (LOURO, 2001). Esta, caracterizada como "a década devoradora de padrões" (GOLDANI, apud GOLDENBERG, 2004, p. 79), através de movimentos de contra-cultura, isto é, de contestação da ordem, moral e padrões da modernidade vigentes, geraram aquilo que ora denominamos irrupção de uma desordem profícua. Hodiernamente, ainda que haja muita resistência torna-se improvável, ou ‘politicamente incorreto’, legitimar algum discurso ou prática - incluindo a pedagógica - contrários a este processo.

Decerto que retroativamente haverá resistência por parte de certas camadas da sociedade que julgam esse modo-de-ser-no-mundo diverso como, por exemplo, inversão de valores, ‘mundo perdido’, transgressões dos bons costumes. Para Maffesoli (2005), desconhecem o fato de a base da sociedade ser a potência, a dynamis, a movimentação, que contendo todas as formas e estruturas, não se confunde (não se fixa) com nenhuma. Ela é vida, nietzschianamente falando, vontade de potência, a força nobre que criativamente estabelece um sem-número de cenas e descrições que permanecem indefinida e indefinível (STERN, 1978). É o princípio dionisíaco-orgiástico de sociedade.

Pensando a educação física: A sexualidade politizada

Para uma análise mais criteriosa cabe ressaltar que esse processo de aparente ‘frouxidão moral’, liberdade individual, traz consigo um alto grau de controle subliminar (ELIAS, apud GOLDENBERG, 2002). Em contrapartida à subversão dos valores de um determinado período surgem outros que exercem, grosso modo, semelhante função: a de ditar normas de condutas. Segundo a antropóloga Mirian Goldenberg (2004), um dos grupos sociais que mais influencia a mudança comportamental no Brasil, tacitamente incutindo nas ‘mentes-corpos’ brasileiros sua moral, é a classe média carioca, "por ter uma visão de mundo e um estilo de vida que produzem efeito multiplicador que extravasa seus limites (...)" (p. 40). Isso corrobora com o que já fora dito, a saber, que todos os padrões são em grande parte signatários de uma classe específica, e via-de-regra, a burguesa. Neste caso, a mídia, principalmente a televisiva, exerce papel preponderante na veiculação destes novos padrões. Na esteira do pensamento maussiano, novelas tem posto em tela temas como o da homossexualidade, utilizando atores que gozam de prestígio perante a sociedade (MAUSS, 1974) para "desestigmatizar" certos modos-de-ser. No entanto, não aprofunda a questão debatendo o jogo de poder e de interesses envolvidos na intencionalidade de sua construção e as possíveis e variáveis conseqüências da apropriação de certas práticas para as diferentes classes sociais, raças, religiões, etc.

Segundo Pires (2002) esse se configura num dos grandes desafios que se apresentam ao professor de Educação Física, a saber, a capacidade crítica dos professores dialogarem com a grande mídia. Se outrora o modelo de humano era o de homem, branco, cristão, heterossexual, de preferência magro, vemos agora a mídia focalizando "modelos" alternativos, sob risco de torná-los modelares. O poder normativo e "naturalizador" que ela exerce deve sempre ser visto com ressalvas. Mas, afinal, como a Educação Física deve se comportar frente a essa configuração societária baseada no orgiasmo? Primeiramente, deve renegar a tendência de (re)produzir aquilo que Fraga (2000) denominou bom-mocismo, isto é, um discurso e, principalmente, uma prática (corporal) que tenciona construir "cidadãos" capazes de viver em sociedade. No que diz respeito à sexualidade deve ser capaz de dialogar criticamente com todas as manifestações que emergem da sociedade, sem privilegiar uma determinada postura. À Educação Física se coloca, especialmente, a questão da sexualidade como elemento de político, de poder e violência simbólica. De acordo com Louro (apud SOUSA e ALTMANN, 1999), "nas aulas de educação física esse processo é, geralmente, mais explícito e evidente" (p. 57). A prática áulica, por se tratar de uma intervenção sobre, através e no corpo, ver-se-á sempre eivada desta questão. Louro (apud FRAGA, 2000) indica essa particularidade ao afirmar sobre as aulas de Educação Física que através de "gestos, movimentos, sentidos (valores) são produzidos no espaço escolar e incorporados por menino e meninas, tornando parte de seus corpos" (p. 48). Somos ensinados a olhar, ouvir, falar - e, principalmente, calar -, a preferir, inclusive sexualmente. Não cabe ao professor de Educação Física coibir ou estimular quaisquer posturas sexuais.

Entendemos, sim, que nossa função enquanto educador é dar ao educando clareza quanto à configuração societal, suas influências classistas, mas evitando estigmas de qualquer natureza. Por outro lado, o educando deve se perceber indivíduo enquanto possibilidade de configuração, como diverso e não modelo. As práticas áulicas devem propiciar a interatividade entre gêneros, de tal forma que tenham uma experiência micro-societária de acolhimento. Frases como "isso é coisa de mulherzinha", ou "futebol é coisa pra macho", ou ainda definir uma dor como "dor de viado", são alguns exemplos de atos de fala que expressam preconceitos e que estigmatizam os educandos.

Generalizações de gênero, tais como, os homens são "viris", "fortes", "grossos" e devem praticar atividades que, em tese, lhe são "próprias"; e às mulheres que são "sensíveis", "frágeis", "medrosas" ficam reservadas atividades mais "leves", artísticas, às quais é imprescindível a "sensibilidade". Enfim, a educação para sexualidade deve ser um processo contínuo, político, corajoso, honesto que seja capaz de promover o respeito à diversidade, num sentido amplo, e em especial, no que diz respeito à sexualidade, como valor constitutivo de uma sociedade mais solidária, plural e vivaz (FURLANI, 2003).

Obs. Os autores, Murilo Mariano Vilaça (mmvilaca@hotmail.com) e Ms. Paulo Roberto Monteiro Peres (paulormp@bol.com.br) são da UFRJ

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