Integra

Introdução

A formação do professor, diferente da maioria das profissões, tem início antes da entrada na graduação. Se pedíssemos para um aluno em seu primeiro dia de aula na graduação ministrar uma aula, ele certamente saberia o que fazer, ainda que sem uma reflexão profunda e objetivos claramente definidos, mas a tentativa encontraria o respaldo dos demais colegas. Isso ocorre devido a construção de arquétipos estabelecidos a partir da apropriação e da representação1 que o aluno faz nos seus anos escolares no contato com vários professores. Na condição de aluno, esse observa dia-a-dia a prática dos seus mestres e forma a sua própria representação do que seja isso.

Com base nas idéias de Dias-da-Silva (1998) podemos compreender a formação do professor como um continuum, em que a formação básica é "(...) apenas o início de um processo de trabalho docente que ocorrerá ao longo da carreira, permeado por atitudes, conhecimentos e capacidades" (p.34). A partir disso, dois pontos permeiam a discussão deste trabalho. O primeiro que o candidato a professor, antes mesmo de ter início a sua formação, já possui uma pseudoformação adquirida ao longo dos anos escolares, no contato com os diversos professores e na experiência como aluno. A segunda é referente ao professor não encerrar seu processo de formação com o término da graduação. A partir desses dois pontos podemos levantar duas questões: o que faz um sujeito que a princípio já supostamente sabe como ministrar aulas ingressar em um curso de formação? E qual a resposta que esse curso dará às expectativas desse sujeito? Uma resposta superficial à primeira pergunta seria a necessidade de um diploma e o respaldo para aquilo que o aluno já sabe previamente. O diploma torna-se um diferencial diante daqueles que não o tem, o que possibilita ao proprietário do título o ganho de certo status social. A possibilidade de confirmar aquilo que ele já sabe garante a sua condição de especialista, uma vez que ele pode comprovar a validade de sua representação.

Ao ingressar no curso de graduação, o candidato a professor imbuído de sua representação a respeito da função docente, pode ter suas idéias reforçadas e respaldadas ou confrontadas e reconstruídas, dependendo da constituição do curso. Essa seria uma possível resposta para a segunda pergunta.

Centraremos nossas reflexões em torno desses primeiros apontamentos, tendo em vista a extensão possível deste trabalho.

Discutiremos os tratos possíveis de se dar aos alunos nos cursos de graduação, os caminhos oferecidos ou negados e a repercussão disso na idéia de formação como um continnum.

Apontando caminhos possíveis a se trilhar

Ao considerar que os alunos ingressantes nos cursos de licenciatura podem ter respaldo ou confronto de suas idéias a respeito da função docente, podemos identificar a dualidade na concepção de mundo e de sujeito preponderantes no projeto de formação. Um curso que entende o sujeito como inacabado, que conseqüentemente vive em um mundo em construção, colocará o aluno em confronto com suas certezas, abrindo perspectivas para novos olhares sobre a prática docente, seu papel pedagógico e, até mesmo, seu posicionamento inicial. Dará subsídios para que o professor seja construtor de suas ações e tenha um papel ativo, de transformador do mundo. Freire (1996) afirma que o inacabamento humano é comum a professores e alunos, propiciando assim o contínuo aprendizado. Isso leva a pensar em homens e mulheres como seres humanos "capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade" (p.57). Ou seja, a intervenção no mundo será feita a partir de sua construção como sujeito, e para as reflexões aqui propostas, da constante construção do ser professor.

Em oposição à idéia de Freire (1996), tem-se o sujeito acabado, cuja função é se inserir em um mundo também acabado, da melhor maneira possível, aceitando passivamente as condições que lhe são impostas, uma vez que não existe chance de intervir na realidade, quanto melhor for o encaixe do sujeito nesse mundo, quanto menos atrito houver entre o sujeito e o mundo, menos esforço será despendido. Uma formação que leva em conta esse tipo de sujeito, ao contrário da anterior, usará seu tempo para retificar "receitas" acertadas de conduta, de práticas pedagógicas, enfim, enfatizando que, para um sujeito acabado, em um mundo acabado, nada melhor que um processo acabado e comum a quem quer que seja. Quanto melhor o sujeito se adaptar à função a ele atribuída, melhor será sua inserção neste mundo e menos conflitos terá conseqüentemente. Esse sujeito é roubado de sua condição de construtor, pois só lhe é garantida a condição de reprodutor, mantenedor de modelos.

Sob essa concepção de mundo e de homem, um curso de formação de professores dificilmente possibilitará questionamentos quanto a representação que o aluno-mestre possui de sua futura profissão, uma vez que não abre espaço para outra perspectiva de atuação que não seja a já estabelecida, entendida como única e imutável.

Entre a dúvida e a certeza

Um sujeito que está para se constituir é um sujeito que não sabe o que será, é um sujeito incerto. É um sujeito possível, repleto de possibilidades. Um sujeito acabado é um sujeito finalizado, imutável, cristalizado, com seus limites estabelecidos. O mundo do sujeito inacabado, assim como ele, é um mundo que ainda não se sabe como será. Um mundo incerto, um mundo possível, repleto de possibilidades e, portanto, de dúvidas. O mundo do sujeito finalizado é um mundo imutável, cristalizado, preso em seus contornos. Um mundo imutável é um mundo onde reina a certeza, sabe-se o que é esse mundo e que ele não mudará. A dúvida provoca o desequilíbrio, a certeza provoca o equilíbrio e a estagnação. Uma formação pautada na certeza limita o sujeito a ver o mundo em um retrato instantâneo, por outro lado, uma formação pautada na dúvida permite ver o mundo em movimento, movimentá-lo e movimentar-se com ele. Ao mesmo tempo não podemos deixar de apontar para o fato do quanto é confortável para os sujeitos viverem repletos de certezas, por mais irreais que sejam e o quanto é preferível permanecer imóvel, ancorado nesse mundo certo a se aventurar num mundo desconhecido, incerto, atordoado por incômodas dúvidas.

Entre a dúvida e a certeza, o desequilíbrio e o equilíbrio, o desconforto e o conforto, muitos escolherão a segunda opção, o caminho mais fácil, o caminho da reprodução. O mais importante não é a escolha feita pelo sujeito e sim a possibilidade deste sujeito escolher. Um candidato a professor que tem oportunidade de se questionar sobre o mundo, de reconhecer a sua complexidade de vida e compreender sua prática pedagógica como o elo entre o sujeito e o conhecimento acerca do mundo será instigado a uma reflexão crítica sobre a prática pedagógica. Para Freire (1996), a reflexão crítica está relacionada à dialética entre o fazer e o pensar sobre o fazer, permeada de rigorosidade metódica, o que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Ao pensar criticamente sua prática de hoje, o professor poderá melhorar a próxima prática e construir um discurso tão concreto a ponto de confundir-se teoria e prática, ou seja, a encontrar cada vez mais a coerência entre sua visão de mundo e seu ato pedagógico. Nesse sentido, o pensar crítico é construído continuamente, já que tanto professores quanto alunos são sujeitos inacabados e estarão sempre aprendendo e, portanto, obtendo uma compreensão cada vez mais elaborada e crítica sobre as coisas e os fatos.

Um candidato a professor que não tem a oportunidade de se questionar sobre o mundo, de reconhecer a sua complexidade de vida e assim por diante, não será instigado a uma reflexão crítica sobre a prática pedagógica, não terá sua representação contestada, não lhe será dado a possibilidade de escolher, escolherão por ele.

Tendo a crise por base

O grau de percepção da complexidade do mundo está relacionado ao tipo de consciência do sujeito. Segundo Freire (1979), há três estados de consciência denominados pelo autor de consciência intransitiva, consciência ingênua e consciência crítica. A intransitiva é a mais simples em termos de percepção "é uma escuridão a ver ou ouvir os desafios que estão mais além da órbita vegetativa do homem" (p.39), ou seja, o sujeito se encontra mergulhado na complexidade dos fatos, mas não consegue identificá-los e nem reconhecer a complexidade dos mesmos. A consciência ingênua, embora também simples, parece ser a fase inicial da mudança, mas se não houver um processo educativo de conscientização, o abalo sofrido será uma consciência fanática e, segundo o autor, esse fanatismo é próprio do homem massificado. A consciência crítica é o mergulho necessário, a passagem para a compreensão crítica dos fatos, o rompimento com o preconceito, a capacidade de fazer questionamentos e não aceitar passivamente a realidade de vida. Podemos pensar que nesse tipo de consciência o sujeito reconhece a sua própria construção contínua como sujeito e professor.

A prática pedagógica que parte da perspectiva de mundo e sujeito em construção, pode ser o ponto de partida para a transformação, a mudança gerada com o inconformismo diante dos preconceitos, injustiças, desigualdades, exclusões e complexidade que constitui a realidade de vida.

Medina2 (1989), se baseia nas idéias de Paulo Freire para pensar o papel do professor de educação física, sinalizando para a necessidade da própria área entrar em "crise". Para ele, a palavra "crise" tem muitos significados, dentre os quais três ganham destaque: 1- o sentido popular - entendida como "perturbação que altera o curso ordinário das coisas: crise econômica, crise política, crise existencial", 2- a crise no sentido sociológico - "situação social decorrente da mudança de padrões culturais, e que se supera na elaboração de novos hábitos por parte do grupo", mas que, segundo Medina (1989), não há ainda a substituição de nova visão; 3- no sentido médico-psicológico, que tem a ver com a percepção do sujeito no mundo. É o que seria a mudança de conceitos e da maneira de se viver (p.35-6). Como podemos notar, a crise está relacionada aos níveis de consciência e não tem o aspecto negativo que talvez transpareça. A crise é um bom recurso para possibilitar a ampliação da consciência.

Ao permitir que a crise se instale no aluno recém chegado, o curso está propiciando a ele a possibilidade de ampliar a sua visão e compreensão do mundo. Essas idéias se aproximam das que entende o processo de formação docente como processo de desconstrução de modelos e arquétipos. Talvez o maior desafio dos professores que atuam nesses cursos seja originar a crise e a partir dela pôr abaixo a representação do aluno-mestre acerca da profissão que pretende desenvolver, e, com a desconstrução, abrir espaço para a construção de uma nova representação da prática docente, agora respaldada com um arcabouço teórico.

Do mesmo modo, com a percepção do inacabamento do homem e do mundo, passa a ser possível novas reconstruções ligadas às mudanças próprias dos sujeitos e do mundo, novamente indo ao encontro das idéias de Dias-da-Silva (1998), agora no que diz respeito a formação docente não findar com o término da graduação. A idéia de homem e mundo inacabados permite pensar em professores em constante processo de acabamento.

Os autores, Ms. Adriano Mastrorosa e Ms. Cinthia Lopes da Silva são professores da Faculdade Diadema e a última doutoranda da Faculdade de Educação Física-UNICAMP

Notas

1. Para Chartier (1990) o conceito de representação "permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer conhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpétua a existência do grupo, classe ou comunidade" (p.123).

2. A partir das idéias de Freire (1997), João Paulo S. Medina, professor de educação física atuante no debate acadêmico da década de 1980, sinaliza para a necessidade da Educação Física entrar em crise, justamente para que houvesse uma revisão de conceitos, valores e visão de ser humano por parte dos profissionais de tal área. Falar que a Educação Física precisava entrar em crise no início da década de 1980 era algo imensamente incômodo e ao mesmo tempo inovador para os profissionais de tal área. Antes dessa época havia certo consenso entre os profissionais de que seu papel se restringia a possibilitar melhorias na aptidão física de seus alunos, no rendimento esportivo e na aprendizagem de técnicas e táticas esportivas. Foi um importante momento para a construção de novos olhares sobre a área, com base em referenciais teórico-metodológicos provindos das ciências humanas, uma vez que tradicionalmente a área foi constituída a partir dos conhecimentos provindos das ciências biológicas.

Referências Bibliográficas

  •  Chartier, R. 1990. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel
  • Freire, P. 1979. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • ¬¬¬__________ 1996. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
  • Medina, J.P.S. 1989. A educação física cuida do corpo e... "mente": bases para a renovação e transformação da educação física. Campinas: Papirus.
  • Dias-da-Silva, M.H.G.F. 1998. O professor e seu desenvolvimento profissional: superando a concepção do algoz incompetente. Cadernos Cedes, ano XIX, n.44, pp. 33 a 45.