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O problema

A política do voluntariado nas escolas públicas tem sido intensificada nos últimos anos, e a principal opção dos voluntários vem sendo a educação física. Essa opção pode ser observada tanto na realidade das escolas quanto na propaganda dos projetos como, por exemplo, o dos "Amigos da Escola". Entendemos que essa adoção da educação física por parte dos voluntários decorre do fato da identificação que se faz da nossa disciplina enquanto atividade prática que é desenvolvida sem base numa fundamentação teórica.

Introdução

No encontro denominado como "Education for All" (EFA) realizado em Jomtiem na Tailândia, no ano de 1990 foram identificados altos índices de analfabetismo em nove paises em desenvolvimento, dentre os quais figurava o Brasil. No relatório do Encontro foram sugeridas reformas educacionais que resultaram em acordos firmados com organismos multilaterais, UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial, que foram também os promotores do evento. Nesse documento havia sugestões de que deveria se compartilhar as responsabilidades da Educação com a família, a comunidade e os meios de comunicação.

Entendo que as propostas geradas no Encontro de Jomtiem detectaram os problemas no que se referia as altas taxas de analfabetismo mundial. E propuseram tendo como referência o que vem sendo prescrito pela política Neoliberal. Em Shiroma (2002) encontramos dados do IPEA sobre a precariedade das instalações das nossas escolas: em 25% delas não tem nenhum banheiro; em 27% não existe sequer água de poço. No meio rural este número sobe para 33%, sendo que 48% não dispõem de energia elétrica e nem bancos suficientes para os alunos que são obrigados a dividir uma carteira ou sentar no chão. Parece-me evidente que não cabe a um membro comum da sociedade resolver problemas que são de extrema gravidade mesmo quando se toma como referencia padrões da América Latina.

Os governos que assumiram a direção do país, mesmo conhecendo a gravidade dos problemas que nos afligem, vem promovendo através do MEC o que fora preconizado nos relatórios do Encontro do (EFA). A mídia, em especial a Rede Globo, vem encampando e divulgando programas como "amigos da escola", cujos resultados "positivos" são freqüentemente exaltados.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação que orienta a Educação brasileira também não ficou imune a política do voluntariado e no Título I - Da Educação- artigos 1º e 2ºassim esta expresso:

"Art.1º- A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais."

"Art. 2º- A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Através desses termos e frases grifadas pode-se perceber que Lei da educação permite que outros segmentos importantes da sociedade também participem da responsabilidade do processo formativo da Educação. Promovendo a divisão de ações com a família e as organizações da sociedade civil". (SAVIANI, 2003).

No texto do artigo 2º a lei responsabiliza a família antes mesmo do Estado enquanto instituições que abrange a Educação. E apela para os sentimentos humanos quando cita "solidariedade Humana", com isso permitindo a interferência da família com perfis paternalistas na escola, ao invés de perfil de luta para reivindicar o que é de direito para o educando.

Em 2001 a ONU patrocinou o ano do voluntariado que no Brasil foi apoiado pelo Governo Federal (JORNAL "Missão Jovem"). Sharon Capeling Alakija, então coordenadora executiva do programa Voluntário das Nações Unidas assim se expressa sobre a questão:

"Porque o serviço voluntário é uma dimensão comum a todas as civilizações e a todas as sociedades. Queremos, portanto, mostrar ao mundo inteiro o quanto seríamos todos mais pobres se viesse a faltar o dom das tantas pessoas que oferecem o próprio tempo livre e a própria capacidade para ajudar os outros. São milhões as pessoas que hoje unem as próprias forças para mudar o mundo".(JORNAL "Missão Jovem").

As palavras de Alakija, nos parecem ser de alguém que vive à margem da realidade, pois sabemos que a política neoliberal adotada em quase todos os paises do mundo vem aprofundado a pobreza e o individualismo, e que por mais que haja voluntários "querendo ajudar os outros". Esta é uma ação política que colabora com a reestruturação produtiva do capital, que tem na desregulamentação das relações de trabalho um dos principais eixos norteadores da globalização.

A política de voluntariado é parte da pregação neoliberal pelo Estado mínimo, de desobrigação do Estado com suas funções, transferindo-as para a iniciativa privada ou sugerindo a população em geral que como "bons cidadãos", eles devem assumir essas novas atribuições.

"Os deslocamentos de bens de natureza pública para o setor privado apresentamse nas diferentes propostas das agências internacionais, como a saída para aliviar a crise fiscal, buscar mais racionalidade dos recursos e benefícios, repassando para as associações filantrópicas, organizações comunitárias e não governamentais a produção e distribuição de bens de serviços principalmente de primeira necessidade como saúde e Educação. As políticas de proteção social, articuladas pelo neoliberalismo, transformamse, assim numa espécie de neobeneficência, agora não mais a cargo das damas de caridade, mas do próprio Estado e da sociedade civil. A dimensão moralista e comunitária assentada nos deveres cívicos e de solidariedade homogeneíza as diferenças de classe nos planos econômicos, político e cultural (SEMERARO em NOGUEIRO e SIMIONATTO, 2002 p.23).

O artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um bom exemplo de como essa política influenciou, não só a educação brasileira, mas a nossa política, em geral. Num determinado trecho o autor diz que a ação estatal burocrática é ineficiente e deveria ser substituída pela ação pública baseada na responsabilidade e solidariedade do cidadão.As medidas propostas para a educação incluíam, entre outras: a redução das taxas de responsabilidade do Ministério da Educação, como instância executora. E segundo ele os maiores obstáculos da escola elementar eram as taxas de repetência do sistema e o brutal desperdício financeiro e de esforços a ela vinculados.(CARDOSO em ALTMANN, 2002). Esse artigo é de grande importância, pois nele o autor não se expressa apenas como um intelectual, mas como um dirigente máximo do país que pôs estas idéias em prática durante seus oito anos de governo.

Na pratica da escola

Trabalho em duas escolas públicas, uma do Município do Rio de Janeiro e outra ligada à rede FAETEC, em ambas faltam professores, recursos materiais e além estar havendo uma deteriorização flagrante das instalações existentes. A avaliação que faço é também a dos demais professores e pais. Essa não parece ser, entretanto, uma novidade, pois o descaso com as escolas públicas não é de hoje, o que de fato me chamou a atenção é que os pais vêm procurando, eles próprios, suprir as deficiências ao invés de reivindicarem melhores condições às direções das escolas e essas ao Estado. Atitude apoiada pela direção das escolas. Mães assumem a faxina da escola, outras se tornam merendeira ou inspetora. Essa última uma função de grande valia, que foi extinta nas escolas do município do Rio de Janeiro. Pais e mães professores, na ânsia de ajudar aos seus filhos se dispõem a suprir a falta de professores. Numa escola pública do município de Maricá, assisti a uma apresentação de dança que foi treinada por uma "Amiga da Escola" e numa reunião de pais e professores no CETEP-Barreto da FAETEC presenciei uma professora de biologia (de uma escola pública) que tem seu filho naquela escola se oferecendo para cobrir as aulas daquela disciplina que não estavam sendo dadas por falta de professor.

Entendo que esse tipo de comportamento de pais e professores que procuram resolver os problemas com seus próprios recursos financeiros ou prestando serviços gratuitamente para a escola não é uma atitude localizada. Esse comportamento parece ser das pessoas na nossa sociedade em geral, e tem sua origem, como já foi citado anteriormente na política de desvalorização e desobrigação do Estado que procura transferir para os cidadãos e para iniciativa privada o que é da sua alçada.

Por que a educação física ?

Essa invasão dos voluntários assumindo o que seria da atribuição dos professores de educação física parece ser motivada pelo desprestigio que a disciplina tem enquanto atividade intelectual.

A educação física tem sido ensinada de forma concreta e visualizável. Raramente um professor de educação física da aulas teóricas.

Como o fazem o de português, por exemplo. É inclusive, interessante observar que esses professores também poderiam aplicar suas teorias na prática o que tornaria suas disciplinas mais interessantes e o ensino mais eficiente. O português poderia ser ensinado através de uma peça de teatro ou da elaboração de um jornal. Atitudes como essa não são, em geral, tomadas pelo professor das demais disciplinas que seguem prestigiadas por fazerem parte do rol das disciplinas classificadas como no campo intelectual. A fundamentação teórica da educação física é aplicada, e se confunde com a pratica. Quando organizamos um jogo de handebol e dizemos que os alunos não podem quicar a bola e que portanto, para progredir em direção ao gol adversário devem passar a bola para um companheiro, podemos estar tomando essa atitude para valorizar a importância do coletivo. Quando decidimos que os alunos devem correr durante um determinado tempo durante um número x de aulas podemos faze-lo com o intuito de desenvolver-lhes a capacidade aeróbica. Podemos perceber ao tomar essas decisões os professor tinha uma intenção em mente e para atingir um determinado objetivo utilizou seus conhecimentos teóricos e escolheu a atividade que considerou adequada para atingir os objetivos propostos. Um observador externo que não tenha o mesmo conhecimento teórico que o professor poderia considerar essas duas atividades como meramente práticas sem entender-lhes o real significado. Esse observador, provavelmente se sentiria capaz de ordenar e observar os alunos cumprirem essas duas tarefas. Não só esse observador como os demais professores e alunos da escola parecem ter uma visão semelhante a essa. A maneira como a educação física é vista pelo leigo faz com que ele se pense capaz de substituir os profissionais da área em suas funções.

Entendo que esse é um problema de difícil solução pois é parte de maneira de pensar da população que tem raízes na divisão ideológica do trabalho (manual e intelectual). Entretanto, existe um outro não menos grave que cabe a nós professores resolver. Alguns estudos apontam que a educação física vem sendo realizada sem objetivos definidos e sem fundamentação teórica. Professores que lecionavam de Quinta a Oitava série desconheciam os objetivos da educação física para esse seguimento (BOCCARDO, 1990). Uma investigação indicou que professores que lecionavam de Primeira a Quarta série tinham pouco conhecimento teórico, não tinham objetivos nem intenção pedagógica (RIBEIRO, 1996). As aulas de educação física, não tem uma seqüência programada e o mesmo conteúdo é desenvolvido em todas as séries (MOREIRA, 1991). Os problemas apontados por esses autores são extremamente grave, o que requer uma solução urgente. No entanto, mesmo considerando que essa não é uma atitude generalizada dos professores enfrentamos um outro problema de difícil solução que é como a população em geral vê a educação física.

O voluntariado é um problema tanto, na educação física quanto para a educação em geral. Para termos uma educação de qualidade é necessário termos profissionais qualificados e a má qualificação de alguns professores não justificam a sua substituição por leigos. O que precisamos é melhor qualificar esses professores.

A autora, Themis de Farias Nascimento, é professora daFAETEC e do Município do Rio de Janeiro

Referências bibliograficas

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