Integra

Introdução

O trabalho na escola diariamente nos apresenta novas questões e, geralmente, buscamos estabelecer nossas "verdades" para resolvê-las, baseando-nos em nossas experiências profissionais, nossos valores, leituras, mas, dificilmente conseguimos construir um trabalho realmente coletivo. A proposta desse trabalho busca caminhar na contramão desse processo, intentando valorizar os diferentes pensamentos e saberes pela riqueza que oferecem, bem como almeja soluções compartilhadas.

Este trabalho está sendo realizado na Escola Municipal de Ensino Fundamental "Suzet Cuendet", localizada em Vitória-ES, que possui uma boa estrutura física e material, contendo laboratórios de informática, ciências, cartografia, quadra coberta, etc. É importante destacar que estão envolvidos no projeto alunos das quartas séries da escola supra-citada.

Nossa explanação está dividida em três momentos: primeiro, expomos os pressupostos teóricos que têm nos orientado; em seguida, comentamos, sucintamente, a respeito do Enduro a Pé e suas possibilidades de trabalho; por fim, apresentamos breves considerações.
Fundamentando nossa idéia

Os saberes escolarizados têm se apresentado de forma desarticulada e compartimentados em disciplinas - as disciplinas podem ser definidas conforme Morin (2002, p.65) "[...] como uma categoria organizadora do conhecimento científico: ela institui a divisão e especialização do trabalho, e responde a diversidade dos domínios que recobrem as ciências". Ainda segundo esse autor, elas foram instituídas no século XIX, particularmente com a estruturação das universidades modernas, desenvolvendo-se no século XX, com o impulso da pesquisa científica -. Estes fatores, a nosso ver, favorecem para que os professores lancem mão apenas da possibilidade de ensino do que teoricamente está predeterminado para cada disciplina, sem a preocupação, ou melhor, com dificuldade de pensar outras formas de se organizar o processo ensino-aprendizagem.

Pensando na possibilidade de articulação, ou talvez, de transcender os espaços-tempos das disciplinas, é que vislumbramos no Enduro a Pé (comentaremos a respeito desta temática mais adiante), que tem como uma característica fundamental sua prática na natureza, uma alternativa para romper com a idéia do "paradigma arbóreo", no qual se pressupõe um caminho obrigatório, único e linear; que implica numa hierarquização e fragmentação do saber (GALLO, 2002; ALVES, 2002). De acordo com Martiello Júnior (2004), a soma de esforços de diferentes áreas de conhecimento vem mostrando que pensar a natureza exige a compreensão de fenômenos complexos e interligados. Então, por que não intentar um trabalho no contexto escolar que abarque as diferentes áreas de conhecimento? Partindo dessa questão, propomos para os demais componentes do corpo pedagógico da escola trabalhar a partir de questões relacionadas ao Enduro a Pé.

Na busca de nos fundamentar para alcançar nosso intento, qual seja, extrapolar os limites das disciplinas, lançamos mão de alguns autores como Gallo (2002), Alves (2002), Morin (2002), Nicolescu (2003).

Gallo (2002) advoga em favor da transversalidade dos saberes, numa perspectiva interdisciplinar, sendo essa uma alternativa para que os alunos tenham a oportunidade de acessar os saberes escolarizados sem compartimentalizações, de forma que reconheçam a multiplicidade das áreas de conhecimento, possibilitando um maior trânsito entre elas. Alves (2002) apresenta a idéia de construção de conhecimento em rede, que segundo ela se caracteriza pela prática social, reconhecendo esta como um espaço-tempo de produção de conhecimentos. Embora acreditando que essas perspectivas, se postas em prática, potencializam mudanças significativas no trato pedagógico dos diferentes conteúdos na escola, vislumbramos na transdisciplinaridade uma alternativa de trabalho compartilhado também profícua nos espaços-tempos escolares. De acordo com Nicolescu (2003, p. 43) a idéia de transdisciplinaridade pode ser percebida "[...] como indica o prefixo ‘trans’, ao que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Complementar a isso, Morin (2002, p. 79) argumenta "[...] que o que está além da disciplina é necessário à própria disciplina [...]".

Nicolescu (2003) chama de novo conhecimento o transdisciplinar, e argumenta que esse não é antagônico ao conhecimento disciplinar, mas sim, complementar a esse. Seguindo essa linha de pensamento, esse mesmo autor suscita o engendramento de uma nova educação - "a educação transdisciplinar". Isso reforça nossa idéia de propor novas alternativas para o tratamento dispensado aos saberes escolarizados. Ainda que reconheçamos a relevância dos saberes disciplinares, comungamos com um questionamento feito por Morin (2002, p.79): "[...] de que nos serviriam todos os saberes parcelados, se nós não os confrontássemos, a fim de formar uma configuração que responda às nossas interrogações cognitivas?"

Para intentar responder esse questionamento em nossa escola, construímos o entendimento de que os tempos e espaços escolares caracterizam-se, fundamentalmente, pela criação de teorias, concomitantemente à criação de soluções, mesmo que provisórias, para as situações-problemas que se apresentem. Nesta perspectiva, temos adotado, como princípios norteadores para nossa prática, pressupostos teóricos com base na cultura corporal de movimento (BRACHT, 1999; COLETIVO DE AUTORES, 1993). Partindo da premissa de que os saberes construídos e estudados pela Educação Física são fruto de um processo histórico-cultural, consideramos que nossos momentos de aula (e fora dele) são momentos de produções relevantes para o processo de socialização e escolarização.

Ao buscar desenvolver um trabalho que envolve questões relacionadas à natureza, faz-se necessário que submetamos os conhecimentos e vivências relacionados a ela "[...] a análises criteriosas e, nos limites do ensino formal, partir em busca de sentido que vislumbre a formação de praticantes mais conscientes de sua história, na direção de sua emancipação, superando as perspectivas tradicionais que lhes atribuem funções de meros executores de atividades escolhidas e planejadas previamente" (MARTIELLO JÚNIOR, 2004, p. 108).

O enduro a pé da escola

No tópico anterior, procuramos dar inteligibilidade à forma como temos pensado e nos fundamentado para desenvolver o Enduro a Pé na escola. Descreveremos, aqui, algumas etapas da construção e da realização do projeto.

A escolha da modalidade Enduro a Pé para esta proposta de trabalho ocorreu devido à posição geográfica da escola em relação a alguns parques do município Vitória-ES e à estrutura física e material que a escola possui (laboratórios de informática, ciências, cartografia).

Além disso, pela possibilidade que nos ofereceu de articulação/complementação de diferentes áreas de conhecimento na escola:

educação física, artes, geografia, matemática, português, ciências. Dessa forma, vislumbramos uma contribuição para que nossos(as) estudantes tenham contato com um corpo de conhecimentos mais articulados e contextualizados.

Vale ressaltar algumas características do Enduro a Pé para que possamos construir, de maneira geral, um entendimento acerca das possibilidades de trabalho dessa temática: a) é constituído por percursos longos de caminhadas; b) no decorrer da caminhada, existem postos de controles pelos quais se deve passar (é importante lembrar que se constitui em uma modalidade em que a regularidade é peça central para realização da prova. Portanto, a estratégia da equipe é crucial); c) são propostas provas especiais no decorrer de sua realização; d) apresenta alguns equipamentos específicos para o desenvolvimento da prova: calculadora, bússola, planilha; e) as equipes geralmente são compostas por seis integrantes.

Para apresentar a idéia para os demais componentes da escola, acreditávamos que fosse profícuo, na ocasião, levantar alguns questionamentos com o intuito de gerar inquietações: como desenvolver ações conjuntas no contexto escolar para que todos saiamos vencedores (alunos, professores, ...)? Que tipo de relação queremos que nossos(as) estudantes estabeleçam com as diversas práticas as quais são submetidos(as) cotidianamente? Apoiados em Vieira (s/d), que aponta que podem ser causados danos à natureza e apresenta o surgimento dos chamados "ecoesportistas", que teriam preocupações nesse sentido, afirmando que os danos quando ocorrem, são mínimos e reversíveis, perguntamos: se são provocados danos, como evitá-los ou revertê-los? Ainda segundo esse autor, estes esportistas e a natureza conseguem estabelecer uma comunhão entre esporte e natureza, e a prática esportiva desenvolve uma conscientização ecológica nos seus participantes. A esse respeito, temos várias dúvidas, devido ao fato dele não descrever como isso pode ocorrer, e esperamos que essas sejam esclarecidas com o desenrolar do processo, pois, como despertar essa tal consciência apenas com a prática de uma atividade? É possível construir uma conscientização ecológica somente por meio do discurso? Vieira (s/d) destaca, ainda, que a prática do Enduro a Pé pode trazer uma melhoria para a "boa saúde e qualidade de vida" de seus praticantes. Será que podemos perspectivar uma melhoria em nossa qualidade de vida apenas com a prática de um esporte? Esse daria conta de uma questão dessa amplitude? São questões para pensarmos.

Isso posto, estabelecemos alguns objetivos para iniciar o trabalho: 1) fomentar possibilidades de articulação entre os saberes apreendidos na escola, com os diferentes contextos em que os alunos estejam inseridos; 2) identificar as diferentes alternativas de esportes radicais, com enfoque no Enduro a pé; 3) incitar diferentes formas de relação corpo/ambiente, a partir de uma perspectiva crítica.

Estabelecidos os objetivos, passamos a pensar a respeito das demandas que seriam geradas para que pudéssemos realizar tal projeto. Elaboramos um conjunto de ações que, inicialmente, poderia atender a nossos propósitos. Destacaremos a seguir, de forma pontual, nossas idéias/ações:

Pesquisa na internet acerca das possibilidades de esportes radicais, com enfoque no Enduro a pé;

Sistematização da pesquisa por meio de mural;

Instituição de comissões que terão as seguintes atribuições: divulgação e cobertura jornalística do processo de construção do Enduro a Pé; providenciar e organizar um lanche que seja apropriado para o tipo de atividade proposta, além de estimular o debate acerca das questões alimentares e seus conseqüentes efeitos sobre o corpo, dentre outras questões; comissão responsável pelos socorros de urgência quando for solicitado;

Realização de palestras: o Enduro a Pé no Espírito Santo e no Brasil; instruções básicas de socorros de urgência; etc.;
Construção do conceito de atividades aeróbicas e seus conseqüentes efeitos sobre o corpo;

Construção de maquete do local onde será realizada a prova do Enduro a Pé, bem como a aprendizagem do manuseio da bússola como um instrumento de orientação, etc.;

Escolha dos nomes das equipes, preferencialmente que seja relacionado com o nome da turma (no início do ano letivo, cada turma escolheu um nome, em vez de serem denominadas pelos números ordinais tradicionalmente utilizados), confecção de camisas;

Realização de uma prova de Enduro a Pé;

Entrevista com os praticantes de caminhada, no local em que será realizada a prova de Enduro a Pé, com os seguintes intuitos: identificar os motivos que tenham levado ou influenciado na adoção do hábito/obrigação de caminhar; enfocar o entendimento que os praticantes desenvolveram acerca dessa prática; tabulação dos dados; construção de textos informativos que podem ou não ser distribuídos pelos alunos para a comunidade.

Considerações parciais: Um projeto em processo...
Esse trabalho tem-nos ensejado momentos de diálogos muito profícuos, professores-professores e alunos-professores (apesar desse último estar acontecendo, às vezes, bastante tumultuado), o que tem contribuído para o reconhecimento de nosso trabalho e para o fato de proporcionar a articulação dos saberes construídos no interior e exterior da escola, conseqüentemente oferecendo aos estudantes de nossa escola um conhecimento que seja mais contextualizado e coerente com a realidade escolar em que estão inseridos.
Portanto, ao pensar numa perspectiva que vislumbre a articulação dos saberes de tal forma que possam ser transpostos os espaços-tempos das disciplinas, estamos favorecendo o engendramento de uma educação transdiciplinar que, conforme Nicolescu (2003), constitui uma educação de libertação, permitindo o estabelecimento de vínculos entre as pessoas, fatos, imagens, campos de conhecimento e da ação. Além disso, potencializa a construção de seres humanos em constante questionamento e integração.
Obs. Os autores, professores Mauro Sérgio da Silva (maurosdasilva@yahoo.com.br) e Orlandina Peclat Lessa são professores da rede municipal de Vitória - ES e membro do grupo de estudos "Nós" da Escola e doLESEF/CEFD/UFES

Referências


Alves, N. Tecer conhecimento em rede. In ______; GARCIA, R. L. (Orgs.). O sentido da escola. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 111-120.
Bracht, V. Educação física e ciência: cenas de um casamento (in)feliz. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2003.
Coletivo de autores. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1993.
Gallo, S. Transversalidade e educação: pensando uma educação não-disciplinar. In ALVES, N.; GARCIA, R. L. (Orgs.). O sentido da escola. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 17-41.
Nicolescu, Basarad. Para uma educação transdisciplinar. In LINHARES, C.; TRINDADE, M. N. & LINHARES, C. (Orgs.). Compartilhando o mundo com Paulo Freire. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2003. p. 41-56.
Martiello Júnior, E. Exercitando conhecimentos e práticas sobre meio ambiente a partir da pedagogia crítico-emancipatória. In KUNZ, E. Didática de educação física 2. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 99-131.
Morin, E. Articular os saberes. In ALVES, N.; GARCIA, R. L (Orgs.). O sentido da escola. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 65-80.
VIEIRA, V. O impacto ambiental. Disponível em: www.trekkingbrasil.com.br/graduados/artigos. Acessado em: 08 de abril de 2005.