Resumo

Fiquei gratamente surpresa com as diferentes matérias que foram publicadas no dia 31 de março por conta dos 50 anos do Golpe Militar de 1964. Nunca tinha visto tamanho empenho para se dar visibilidade a atletas cujas trajetórias são atravessadas por essa época conturbada da história. O que me chama a atenção é o empenho de muitos em tentar separar o sujeito atleta de uma vida de cidadão tão comum a tantos outros mortais. E isso fica claro nos muitos registros de imagem que foram feitos desde sempre onde a força do atleta é medida muito mais pelo diâmetro de seu bíceps do que necessariamente pelo que ele vê e pensa do mundo. Recentemente tentei justificar essa condição apontando para o tipo de vida que leva um sujeito que dedica anos de sua vida a preparar seu corpo para um tipo de demanda específica que é treinar, competir e de preferência ganhar.

Se por um lado essa imagem heroica pode muito bem ser usada e aproveitada para um formato específico de comunicação, e o período da Guerra Fria foi pródigo em exemplos desse gênero, por outro lado não há quase registros que associem o atleta a um ser combativo em uma perspectiva social, reforçando a máxima de que esporte e política não se misturam. E essa é uma questão fundamental nessa discussão. Nunca interessou à estrutura do esporte que o atleta fosse um sujeito participante e combativo porque a estrutura que o suporta tem uma origem aristocrática e uma dinâmica oligárquica, autoritária e autocrática. E isso não é difícil de entender. Nas palavras do próprio Barão Pierre de Coubertin está a elucidação para essa questão. “Nós não somos eleitos. Não somos auto-recrutados, e nossos mandatos são limitados. Existe qualquer outra coisa que pudesse irritar mais a opinião pública? O público tem visto de maneira crescente o princípio da eleição se expandir, gradualmente, colocando todas as instituições sob seu domínio. Em nosso caso, estamos infringindo essa regra geral, uma coisa difícil de tolerar, não é mesmo? Bem, nós temos muito prazer em tomar a responsabilidade por esta irregularidade e não estamos nem ao menos preocupados com ela.” (Müller, 2000: 587-589).

Não vou cometer a crueldade de descontextualizar o pensamento de Coubertin do momento histórico em que ele foi produzido. Isso seria um contrassenso a todo o trabalho que desenvolvo sobre as narrativas biográficas. O que causa um certo espanto é que esse sistema de gestão atravessou o Século XX e inicia o Século XXI sob o mesmo pensamento do final do Século XIX. A proposta de criação do Comitê Olímpico Internacional como uma organização não ideológica, tinha por finalidade promover uma prática destinada a poucos, muito embora o discurso fosse de massificação. Independente de grupos políticos ou governos nacionais guardava preocupações com a isenção, autonomia e independência de um movimento que se propunha internacional, apolítico e apartidário. Como decorrência dessa perspectiva Coubertin idealizou o Movimento Olímpico sustentado na força dos comitês olímpicos nacionais, mas principalmente na cooptação e atuação dos membros do Comitê. Esse sistema representativo chamado de representatividade reversa era uma forma de garantir a independência de sua organização. Embora reconhecida como defeituosa e limitada seu idealizador acreditava que a dinâmica impressa na instituição garantiria sua estabilidade.

E há atitude mais política do que essa? A formação de um grupo internacional com condições materiais para manter em movimento uma ideia que em princípio valorizava apenas e tão somente o hedonismo não poderia ter sobrevivido sem um forte apelo ideológico, mesmo que travestido apenas de um idealismo utópico. E talvez aí esteja o nó que quase torna toda essa organização quase esquizofrênica.

Explico. A prática de indicação pelo próprio Comitê persiste até os dias atuais e seus membros são considerados embaixadores dos ideais olímpicos em seus respectivos países e não delegados de suas nações junto ao Comitê, numa tentativa de destituir aqueles que lidam com o esporte de qualquer relação com manobras políticas (Sagrave, 1988). Isso vem representar um paradoxo uma vez que embora não haja representação nacional dentro da estrutura burocrática do COI, a um atleta só é permitido participar de uma edição de Jogos Olímpicos desde que tenha os índices necessários, obtido em situações em que ele tenha representado seu país em eventos internacionais. Ou seja, é vetada a participação independente de qualquer pessoa, mesmo habilidosa, sem que ela defenda as cores de uma bandeira nacional. E nesse caso o atleta é a parte mais frágil do sistema.

É curioso pensar que a mola propulsora, a face pública, de todo esse movimento são os Jogos Olímpicos, espaço de realização e demonstração de habilidades onde brilham os atletas, razão de ser da competição, e por que não, do próprio Movimento Olímpico. Fica então a questão: Por que a exclusão deliberada dos atletas das instâncias de poder? Passado mais de um século do início dos Jogos é cada vez mais claro que há uma disposição deliberada em separar a gestão da instituição do campo das realizações atléticas. Separação perversa essa que sugere que a gestão é uma atividade nobre, destinada a poucos, enquanto o campo das habilidades atléticas é um espaço “democrático” porque independe do controle exercido por grupos desejosos de poder. E com esse discurso construído ao longo de mais de um século o atleta foi cada vez mais distanciado das estruturas de gestão e poder e apenas no final do século passado passou a ocupar os poucos acentos em espaços institucionalizados ou fóruns de onde pode manifestar suas reivindicações e desejos relacionados à organização do esporte olímpico.

E daí voltamos uma vez à questão central que desencadeou esse texto. São muitos, e em breve eu terei esses números de forma precisa, os atletas que deixaram de estudar, de se dedicar a outras atividades que podem leva-lo a desempenhar outros papéis sociais para chegar ao topo da cadeia alimentar esportiva. O estudo não se vincula apenas ao exercício futuro de uma profissão, mas ele também expande horizontes, amplia a visão de ser humano, aguça a atividade crítica sobre o mundo e a sociedade, atividades amplamente desejadas em qualquer área de atuação profissional em grupos sociais ou países onde se busca o desenvolvimento humano. Isso é absolutamente perceptível nas narrativas que tenho ouvido de atletas olímpicos brasileiros que se distinguem não apenas pelo momento histórico em que viveram e participaram de uma edição olímpica, mas principalmente pela perspectiva de futuro que tinham em relação a própria vida e o lugar da formação acadêmica nessa trajetória. Houve alguns casos inclusive em que a seleção brasileira e os Jogos Olímpicos foram abandonados porque atrapalhavam o plano de ingresso na faculdade. Claro que isso aconteceu nos anos 1960 quando ainda não havia a perspectiva da profissionalização do esporte como se tem na atualidade. Mas, curiosamente são esses atletas que também conseguem no presente ter poder de análise sobre os fatos do país de então e da própria vida.

Observo que muito se espera de atletas cuja imagem se associa ao ato sobre-humano da vitória sobre os grandes adversários no campo esportivo. Espera-se que sejam virtuosos, exemplos de boas maneiras e, no limite, que tenham posicionamento político e se engajem nos movimentos sociais. E então me questiono se no extremo oposto não se está fazendo o mesmo que Médici fez com Éder Jofre. Participação política e engajamento social precisam de tanto preparo quanto a participação em uma edição olímpica. Entendimento, discernimento, posicionamento são frutos de um processo que demanda tempo de aprendizado, bons mestres e liberdade de escolha. Menos que isso é apenas uso e abuso de uma imagem pública construída pelo atleta em um terreno dominado por outra linguagem, que é a habilidade física e motora.

Vi essa semana um movimento deliberado de se buscar atletas brasileiros que tiveram participação política no passado. Vejo que finalmente há uma intenção de resgate de memória que transcende as marcas obtidas por esses atletas, o objeto mais comum de identidade que se pode encontrar nos meios de comunicação. Só não consigo entender porque foram necessários 50 anos para que isso viesse à luz.

MÜLLER, N. Olympism Selected Writings. Pierre de Coubertin 1863-1937. Lausanne: International Olympic Committee, 2000.
SAGRAVE, J. O. Toward a definition of Olympism. In: (J. O. SAGRAVE & D. B. CHU, eds.) The Olympic Games in transition. Champaign: Human Kinetics, 1988.

2.4.2014