Integra

Creio que foi em 1976, num seminário de imersão com Joffre Dumazedier (considerado já há algum tempo o “pai da sociologia do lazer”), realizado no SESC/SP para seu corpo técnico (era um deles) que, pela primeira vez ouvi esse termo “Semi-Lazer”. Aprendi naquela ocasião que muitas experiências dentro dos interesses culturais manuais do lazer teriam uma dupla função, de gratuidade na sua essência (um dos fatores fundamentais do lazer) e de utilidade no seu processo (uma das características mais próximas ao mundo da obrigação/trabalho).

Neste final de semana, ao retirar o capacete da cabeça (sim, acreditem, sou um motociclista amador J), a viseira saiu na minha mão.

A primeira reação neste mundo permeado pelo consumo que influi diretamente na experiência de lazer, pensei: “chegou a hora de trocar de capacete!”. Passado esse primeiro impulso, veio a idéia de consultar a internet para achar o chamado “kit lateral”, sem a viseira,  desse capacete específico (dois parafusos plásticos com as respectivas arruelas). Não titubeei: para um capacete de aproximadamente 500 reais, pagar R$45,00 no kit + R$6,44 no frete (R$ 51,44) não seria um mau negócio!

Mas a verdadeira experiência de “Semi-Lazer” estava ainda para acontecer. Abri minha caixa de parafusos (centenas deles!) e lá encontrei parafusos extras de uma prateleira de aço que já tinha me desfeito dela há anos e verifiquei que tanto a bitola como o cumprimento se adaptaria à minha necessidade.

Fiz o teste e “bingo!”, deu certo!

A sensação de bem estar causada por uma experiência tão simplória não poderia deixar de ser a melhor representação do verdadeiro conceito de lazer: frente a um desafio aceito (livre escolha), munido de conhecimentos e habilidades específicas (competência ótima), com os recursos necessários (equipamentos essenciais), passei pelo ciclo completo de começo (desafio) meio (processo) e fim (solução) de uma experiência de “lazer” ou, nesse caso, de “Semi-Lazer”, dado o contexto utilitário de sua finalidade.

Ou seja, resolvi o meu problema com parafuso de aço a espera do parafuso de plástico J.

Em termos de gestão dessas experiências, como posso estimulá-las em qualquer meio, seja no poder público, em clubes, resorts, ou qualquer outro ambiente de lazer?

Final dos anos 1970, a frente do “Programa Lazer” da Prefeitura de Sorocaba, resolvemos transformar a praça central da cidade (Cel. Fernando Prestes) em uma “oficina no fundo de casa” que tantas pessoas possuem e, em Sorocaba, em particular, devido a sua história tropeira e ferroviária, muito disseminada. Dentro do espírito do “Faça você mesmo” (“Do it yourself”), programamos o “Momento de Bricolage”.

Montamos, em praça pública, oficinas de hidráulica, elétrica, mecânica, marcenaria, alvenaria, jardinagem, cuidado com animais domésticos, etc. Todas essas oficinas foram orientadas por parceiros voluntários e as peças de reposição necessárias, através de patrocínios.

Lembro-me muito bem uma calha com dez torneiras com vazamento e as pessoas com chaves de grifo aprendiam a trocar os “courinhos” de vedação; fila de pessoas com chuveiros com resistências queimadas aprendendo como desmontar e montar cada tipo deles; outras pessoas aprendendo a regulagem de motos no estande de mecânica. Mais a frente um estande de marcenaria onde todos podiam aprender como montar uma banqueta e ainda como fazer uma casinha de cachorro, aprendendo a assentar tijolos e revestir com pisos!

Confesso que foi uma das ações mais criativas de lazer que pude gerenciar, mas infelizmente, realizamos apenas três edições, pois foi consenso no grupo técnico que num evento como esse que “dava tanto trabalho”, mobilizar “somente” 200/300 pessoas, deveria ser descontinuado. Uma “Manhã de Lazer” poderia envolver muito mais gente com menos trabalho…

Ali aprendi que qualidade nem sempre dialoga com quantidade…

Abraços

Bramante

Por Bramante
em 3-11-2014, às 12:00

4 comentários. Deixe o seu.

Comentários

Olá Bramante,
Gosto muito de bater-papo com você. Chama-se a isto compartilhar experiências, informações e conhecimento. E, a partir dessa troca, surge no interlocutor ideias que por sua simplicidade, tornam-se aos olhos do criador “ideias maravilhosas”. Nessas pequeninas coisas, revela-se toda a vida. A sensação de “descobrir” algo pelos próprios sentimentos e a oportunidade de “montar” o produto a ser visto e utilizado por outrem, não tem comparação, especialmente para o “criador”: CONSEGUI!
Segundo confirmam os cientistas, o aprendizado inicial em qualquer tarefa humana é caracterizado por um somatório de erros e novas tentativas, até que numa explosão de “dever cumprido”, o indivíduo consegue concretizar aquilo que buscou com obstinação. A seguir, basta repetir algumas outras vezes, mas a “rota mielínica” está traçada e incorporada ao próprio. Não há como esquecer, tal como se diz “quem aprendeu a andar de bicicleta nunca esquece”.
Com o seu artigo uma vez mais você me proporcionou uma “ideia maravilhosa”, a qual poderemos compartilhar mais adiante. Lembra-se de que falei sobre meu novo projeto? Pois, então, tenho certeza que o seu evento estaria abarrotado de pessoas com pequeninas “aparições” que gostaria de discutir pessoalmente.
Além disso, tenho reservadas algumas surpresas para o ano que vem…! Tomara que esteja iluminado quando fizer minha explanação ainda neste mês a um gestor esportivo internacional. Vou citar a conveniência de juntarmos forças, pois comungamos em nossos objetivos: o pleno desenvolvimento dos indivíduos.
Abraço. E mais uma vez, obrigado pela “ideia” que me proporcionou.

Por Roberto Pimentel
em 4-11-2014, às 7:29.

Querido Mestre Bramante,
Um brinde ao seu artigo…reforça as constatações sobre a contribuição de uma vivência QUALITATIVA do lazer nos espaços urbanos para a CRIATIVIDADE….impulso às CIDADES CRIATIVAS. Vejo no cotidiano da nossa cidade (São Paulo) movimentos e atores sociais dialogando e atuando em prol de momentos e espaços para ESTE lazer. Vejo mais, até mesmo nas práticas “pagas” ditas “consumistas” do entretenimento (sou contundente em ampliar este diálogo) um maior rigor nos desejos e necessidades das pessoas que delas usufruem em busca de um SENTIDO cultural.
Em busca desta qualidade, da intencionalidade e educação pelo lazer lhe cumprimento!!!!!!!!!!!
Abraços lúdicos!!!!!!

Por Rosangela Martins
em 4-11-2014, às 8:45.

Caro Professor Roberto
Você melhor que eu sabe que um “presente” inestimável para o ser humano é ser reconhecido na sua capacidade de ajudar o outro. Eu sempre tive muito claro que “solucionar os MEUS desafios” seria muito pouco para mim (embora isso seja uma constante!). O coletivo é sempre mais importante que o individual. Obrigado pela oportunidade de ter aberto alguma “sinapse”, já que você tratou da “rota mielínica” :-)!
Fico no aguardo para saber das suas novidades!
Forte abraço.

Por Bramante
em 4-11-2014, às 12:11.

Minha cara Professora Rosangela
Infelizmente essa dicotomia (entre tantas outras que permeiam a nossa área de estudos e pesquisas) “mercado” e “lazer”, no meu ver, podem (e devem) se aproximar. Embora a concepção de entretenimento (ou “Lazer Casual” como Stebbins nos propõe) entre nós acadêmicos esteja carregada pelo “ranço do mau”, até para a sua sobrevivência, o campo do entretenimento terá de aproximar-se, cada vez mais, dos chamados “necejos” (necessidade + desejo). Vamos aprofundar essa conversa semana que vem no ENAREL da semana que vem em Ilhéus! Abraços.

Por Bramante
em 4-11-2014, às 12:24. 

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