Integra

1. A crise de superprodução como componente estrutural do sistema capitalista e globalização


 Um componente inseparável do capitalismo em sua essência, como apontavam Marx e Engels (1988), trata-se de suas crises cíclicas de superprodução. As crises são um componente estrutural do capitalismo e, apesar de sua dimensão cíclica, atingem cada vez mais graus de aprofundamento, que tendem a esgotar qualquer possibilidade de projetos civilizatórios, encontrando-se atualmente em sua fase monopolista (LENIN, 1986) e senil (BEINSTEIN, 2001).


 A respeito do fundamento da crise, sob o ponto de vista da economia política, Marx apropria-se da teoria do valor-trabalho para concluir que o objetivo da acumulação é aumentar valor ao capital inicialmente aplicado por meio da exploração do trabalho (mais-valia). A crescente acumulação se faz às custas de elevações na composição orgânica do capital, criando uma queda tendencial da taxa de lucro: ou seja, a proporção do capital constante (máquinas, bens de equipamentos, matérias-primas) tende a crescer em relação ao capital variável (força de trabalho). Esta desproporção faz com que os capitalistas procurem cada vez mais aumentar a extração da mais-valia, ou ainda, procurando ganhar nas quantidades vendidas o que perderiam por unidade, gerando uma superprodução e conseqüentemente a crise. Portanto a crise para Marx é proveniente das mercadorias criadas na esfera da produção e que não conseguem se realizar na circulação. E como a burguesia vence tais crises? Marx e Engels (op.cit.) apontam duas estratégias da burguesia para responder esta questão: a) através da destruição forçada de uma massa de forças produtivas; b) através da conquista de novos mercados e da exploração mais intensa dos antigos. Esta última estratégia diz respeito ao conceito de expansão imperialista, e fundamenta o atual estágio do capitalismo, sobretudo da globalização financeira.


 É justamente Lenin (op.cit.) que mais intensamente contribuiu com o debate acerca do imperialismo a partir de seu livro "O Imperialismo: fase superior do capitalismo". O objetivo era descrever o imperialismo contemporâneo, estruturado em torno da hegemonia do capital financeiro que havia deixado para trás, em um passado distante, as velhas formas de livre concorrência entre os industrias, comerciantes e banqueiros para dar lugar ao capital monopolista (BEINSTEIN, op.cit.). Lenin (op.cit.) cunhou três etapas na formação do novo sistema: a) de 1860 a 1880, o desenvolvimento da livre concorrência; b) depois da crise de 1873, o longo período de desenvolvimento de cartéis, porém de forma passageira; c) o apogeu do final do séc. XIX e crise de 1900 e 1903, com os cartéis se convertem em uma das bases de toda a vida econômica: O Imperialismo.


 Assim, para Carlos Cesar Almendra (1998), se tomarmos como eixo as 5 características do Imperialismo como fase superior do capitalismo prevista por Lenin, não é injusto afirmar que a globalização é o imperialismo do final de século: a) concentração da produção e do capital que cria os monopólios, cujo papel é decisivo na vida econômica; b) fusão do capital bancário e do capital industrial, formando o capital financeiro, em torno do qual surge uma oligarquia financeira; c) diferentemente de exportação de mercadorias, a exportação de capitais assumindo importância particular; d) formação de uniões internacionais de capitalistas que partilham o mundo entre si; e) partilha territorial do globo entre as maiores potências capitalistas.


 Entretanto, François Chesnais (1996) pondera que a mundialização do capital (e não globalização financeira) é algo mais do que simplesmente uma fase nova no processo de internacionalização da economia, que existe uma nova configuração do capitalismo mundial e mecanismos que comandam seu desempenho e sua regulação. Aponta que o conceito de mundialização trata-se de um termo mais rigoroso que o termo inglês globalização. Destaca que o adjetivo global surgiu no começo dos anos 80, nas grandes escolas americanas de administração de empresas (busines management schools - Harvard, Columbia, Stanford) e foi popularizado pelo japonês K. Ohmae e o americano M.E. Porter. Tal noção opera com termos apologéticos, vagos e ambíguos porém não neutros: "mundo sem fronteiras" (bordless), "empresas sem nacionalidade" (stateless) e recebe atravessamentos ideológicos: idéia de irreversibilidade e necessidade de adaptação, atravessamentos estes que abordaremos com mais especificidade neste momento.


2. Concepções e políticas educacionais a partir das teses liberais


 Para discorrermos acerca de como as teses neoliberais manifestam-se atualmente nas concepções e políticas educacionais, teremos como eixo condutor a seguinte questão: Qual é o papel estratégico dado à educação no atual momento do projeto histórico capitalista? Para elucidarmos esta questão, trabalharemos a partir de dois pontos: a) Como o capital se apropria da educação na tentativa de gerir sua crise; b) Políticas educacionais no Brasil pós-94.


 O neoliberalismo funda-se através do ataque franco aos direitos conquistados pelos trabalhadores, e do Estado intervencionista/assistencialista. Em troca, propõe um Estado mínimo em sua obrigação econômica, mas que, para Pablo Gentili (1996), trata-se concomitantemente de um Estado máximo na política, o que torna a educação um campo fecundo de manifestação das teses neoliberais. Não obstante, enfrenta também crises de superprodução, fundamentalmente centradas na precarização do trabalho, que trazem uma grave exclusão social (ANDERSON, In: SADER, GENTILI, 1995; ANTUNES, 1995)


 Isto nos remete à primeira questão, ou seja, de que maneira é feita a apropriação do campo educacional pelo neoliberalismo, na tentativa de gerir também a sua crise. Um ponto de partida para a elucidação desta questão seria a ideologia desenvolvimentista, que parte do pressuposto da possibilidade de crescimento econômico dos países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento, igualando-se aos outros do dito primeiro mundo. No campo educacional, a ideologia desenvolvimentista, comum nas décadas de 60 e 70 no Brasil, vem sustentada pela Teoria do Capital Humano, onde um fundamental teórico que a investigou foi Gaudêncio Frigotto (1989). Para o autor (In: GENTILI, 1995), a ideologia desta perspectiva estaria na máxima de que as "...nações subdesenvolvidas, que investissem pesadamente em capital humano, entrariam em desenvolvimento e, em seguida, se desenvolveriam. Os indivíduos, por sua vez, que investissem neles mesmos em educação e treinamento, sairiam de um patamar e ascenderiam para outro na escala social" (p.92,93).

 Assume, pois, o campo educacional um papel estratégico na concretização das teses liberais e, mormente, as neoliberais.


 A respeito desta última incursão, se nas décadas onde o Capital Humano foi largamente utilizado para a formação humana na perspectiva da exploração do trabalho, este último organizava-se na perspectiva fordista/taylorista, caracterizado pela produção em massa com controle do tempo e movimento do trabalhador, segmentação das funções desenvolvidas pelo operário, separação entre articuladores intelectuais e executores do trabalho e pela organização vertical nas unidades fabris, ou seja, com a existência da figura do supervisor (ANTUNES, op.cit., KUENZER, 1986).


 Por outro lado, é justamente Frigotto (op.cit.) que nos chama atenção para a existência de um Neocapital Humano, agora ajustado sob outras bases, a partir do avanço da informatização do processo produtivo, onde o trabalhador executa tarefas fundamentalmente gerenciais, demandando uma formação flexível, abstrata e polivalente. Assim, as capacidades tais como abstração, facilidade de trabalho em equipe, comunicabilidade, resolução de problemas, decisão, criatividade, responsabilidade pessoal sob a produção, conhecimentos gerais e técnico-tecnológicos (língua inglesa e informática, por exemplo), entre outros, tornam-se balizadoras do processo educativo para o mundo do trabalho no atual estágio do capitalismo (BRUNO, 1996; FRIGOTTO, op.cit.; MANFREDI, 1998).


 Portanto, a estrutura educacional sofre alterações de forma coordenada pelos países ligados organica ou subordinadamente ao capital globalizado, onde, para além das iniciativas de grupos empresariais na educação, existem dois agentes fundamentais, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FONSECA, In: TOMMASI, WARDE, HADDAD, 1998; SOARES, ibid.; TOMMASI, ibid., LEHER, 1998), que controlam e ditam regras, via ajustes estruturais e políticos (reformas, privatizações), para o asseguramento da formação humana voltada nessa perspectiva.


 Tomando como exemplo o Brasil, do período pós 1994, poderemos perceber, apoiados nos estudos de Lucia Neves (1999) a ênfase das políticas educacionais para os ajustes estruturais. O Brasil, a partir deste ano, integra-se organicamente ao projeto neoliberal, promovendo reformas onde o campo educacional tomou estratégica importância. A título de exemplificação, Neves (ibid.) aponta a formação anti-democrática do Conselho Nacional de Educação, a nova Lei de Diretrizes e Bases, a partir da intervenção do Senador Darcy Ribeiro; os Parâmetros Curriculares Nacionais; as Diretrizes Curriculares de Ensino Médio, as Diretrizes Curriculares de Ensino Superior; as modificações na Educação Tecnológica; mudanças na Formação de professores (licenciaturas); o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF); a Lei 9129/95, que trata do processo de escolha dos dirigentes universitários; a PEC 370/96 - Redefinição da Autonomia Universitária; e, mais contemporaneamente, o ante-projeto de emprego público.


 As políticas educacionais, portanto, acompanham o movimento das teses neoliberais, no sentido do enxugamento da folha de pagamento do Estado, da desobrigação deste último em financiar uma educação de qualidade, mas ao mesmo tempo edificar leis e diretrizes para a formação de um determinado homem capacitado à integração dentro do modelo da economia globalizada.


 3. Educação Física na reconfiguração do trabalho


 Levando-se em conta o novo modelo de qualificação para o mundo do trabalho imposto pela globalização, percebemos a clara importância de algumas disciplinas escolares estratégicas para a formação das competências necessárias para o enquadramento do trabalhador. Seriam elas disciplinas que interagiriam na capacidade de raciocínio abstrato, que apostariam na formação para a interação em grupo, e que tentariam dar o aporte funcional dos conhecimentos mais recentemente desenvolvidos no campo tecnológico.


 No entanto, para esta investida, algumas outras disciplinas, tais como educação física e a educação artística, parecem ser perfeitamente descartáveis. Como bem avalia Paulo da Trindade Nerys da Silva (1997, p.133), "ao que parece, a exclusão de alguns componentes curriculares, caso da educação física, será a garantia de outros componentes considerados mais necessários [...]".


 Se, por um lado, a educação física esteve sempre calcada na hegemonia social, sendo imposta no seio escolar via regime fascista, na tentativa de garantia da formação da eugenia brasileira e de preparo para a guerra, e mais recentemente, também aliou-se ao projeto desenvolvimentista brasileiro, sob a égide de que o esporte seria uma prova de equivalência do desenvolvimento econômico no campo cultural, por outro lado, a reconfiguração atual do mundo do trabalho parece que põe, em plano secundário, a necessidade dela no projeto pedagógico dominante.


 Este entendimento de secundarização da educação física no ensino básico1 se mostra presente, de forma mais explícita nos contornos da formação da atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB), onde o Substitutivo de Lei do então senador Darcy Ribeiro quase colocou a não-obrigatoriedade da educação física nos currículos escolares.


 Assim, se a educação física sofre vários ataques no âmbito das políticas públicas educacionais, alguns de caráter geral - que aviltam todos os trabalhadores da educação sem distinção -, por outro lado também sofre um particular ataque, que desobriga sua presença no ensino formal, ou seja, reordena seus próprios contornos enquanto campo profissional. Concomitantemente, mas não coincidentemente, os setores conservadores2 da educação física organizam-se, de modo corporativista e insensível a tais questões de avanço do neoliberalismo, enveredando-se para um outro campo de atuação profissional, o das atividades físicas do meio não formal, por meio da regulamentação da profissão de educação física (BRASIL, 1998).


 Notas:


 1. Esta secundarização trata-se fundamentalmente ao atendimento da escolarização para a classe trabalhadora. Em escolas que atendem à classe dominante, a educação física é incorporada na forma esportiva, ou de ginástica de academia. Aqui, a ênfase é de tratar a educação física enquanto um componente de luxo, oferecido enquanto aspecto diferenciador na formação entre as classes sociais.


 2. Este setor conservador mostra-se representado fundamentalmente por professores agremiados nas Associações de Professores de Educação Física (APEF’s), diretores de faculdades/escolas de educação física, mas também proprietários do ramo do fitness, que concentram grande poder econômico, explorando os trabalhadores da educação física, no intuito da garantia do lucro, e hoje retornam à cena defendendo os supostos interesses da educação física.


 Obs.


 O autor, Prof. Ms. Hajime Takeuchi Nozaki, é professor do Departamento de Desportos/FAEFID - UFJF e aluno do Programa de Doutorado em Educação da UFF


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