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 A Educação Física tradicional, ao longo do tempo, tem sido o espaço das atividades físicas e dos exercícios preconizados. E a representação pedagógica do professor vem sendo identificada dentro de uma perspectiva em que este é o mestre, o mestre que sabe todas as coisas, e assim pode levar para a escola um conhecimento acabado, pronto para distribuí-lo homogenicamente ao alunado. Esta perspectiva traz em seu bojo a falta da crítica dos sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Além disso, notamos a ausência total da sócio-interação e do diálogo entre professor e aluno.


 Estes aspectos nos remetem à idéia de que a Educação Física é o espaço pedagógico para a internalização de regras e normas sociais advindas dos jogos pré-esportivos e motores, muito comuns na Educação Física do primeiro segmento do 1o grau. E a mediação entre aluno e professor se baseia na pedagogia auto-centrada no professor, onde o papel central no processo educacional é de um professor que transmite o saber corporal via mala direta.


 "É fato inegável que o jogo organizado disciplina a criança (...) A criança cria o hábito de obedecer à regra, à lei, acatar o juiz, obedecer aquele que dirige e comanda o jogo. Isto eqüivale a dizer que em todos os jogos aprende a comportar-se de acordo com os padrões morais comuns a todos os jogos". (Miranda, 1983:119).


 É principalmente, no seio da Educação Física, através de jogos psicomotores de execução e repetição, de movimentos perceptivos e da observação cinestésica que o professor controla seus alunos para a demonstração das noções básicas da psicomotricidade e na introjeção de regras e normas sociais.


 Vigotsky (1994) nos ensina que a apropriação do conhecimento não é algo pronto, acabado e distribuído aleatoriamente aos alunos, mas sim uma construção sócio-histórica que o sujeito faz nas suas interações com outros. Desse modo, toda a produção do saber corporal pode ser compreendida a partir da mediação do sujeito com o seu universo cultural, com os outros e com o mundo dos objetos que este busca conhecer. O processo de apropriação das crianças erguido na relação sujeito, mundo e objetos parte de uma perspectiva histórica que constitui o repertório e acervo cultural dos que reúnem seus jogos e brinquedos, formando seu bloco histórico. E isto pode ser seguramente encontrado nas crianças, principalmente nas séries iniciais.


 "O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social". (p. 40).
Diante do exposto, a Educação Física pode confrontar pedagogicamente as vivências históricas das crianças e do seu grupo social, o conhecimento histórico que possuem sobre jogos e brinquedos, e relatar suas experiências. E assim, socializar e ampliar seu modo de conceber e sentir a escola e o contexto social que as forma permanentemente.


 Nesse sentido é essencial criar novas vivências temporais no ensino da Educação Física, se o nosso objetivo é formar um sujeito histórico com um patamar educacional seguro para a autonomia de suas práticas corporais, através de uma escola que contempla a voz da criança, os seus sentimentos, visões, exposições e experimentações. Uma escola que procura dar mais instrumentos concretos para que os alunos assimilem e incorporem no seu processo de apreensão da cultura escolarizada.


 O que vemos na Educação Física escolar, no entanto, é o contrário da Educação Física que defendemos. A complexidade cultural infantil representada nas brincadeiras infantis perde em sua riqueza pedagógica quando depara com os limites desenvolvimentistas do professor de Educação Física e da situação determinista que vive nosso sistema educacional.


 Evidentemente, que os novos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC lembram a marca dos tempos onde a cultura corporal historicamente se produziu. De qualquer modo, a fundamentação a uma atitude pedagógica em tempos neoliberais levou-os a um afastamento do trabalho, via história, das brincadeiras tradicionais infantis em favor da concepção piagetiana de apreensão dos temas da cultura corporal.


 Diante da nova materialidade sócio-educacional, desenvolvemos o nosso trabalho sobre a história das brincadeiras tradicionais junto às turmas da 3a série do ensino fundamental do Colégio Jean Piaget, uma instituição privada de ensino situada no bairro Jardim Catarina, um bairro típico de classe trabalhadora na cidade de São Gonçalo/RJ.


 No interior dessa escola, fomos desenvolvendo o pensamento de que os sujeitos não se educam simplesmente por signos sociais e culturais tais como são transmitidos pelo senso comum de entendimento ou pelo currículo escolar explícito. Existe um espaço sócio-familiar no qual as brincadeiras são construídas, transmitidas, memorizadas e reelaboradas de acordo com o nível de identidade social do grupo e com a sua própria história cultural na qual crianças e pais estão profundamente inseridos e também se educam nesse processo.


 "No grupo de brincadeira a criança entra em contato com experiências passadas através das brincadeiras tradicionais que fazem parte da história da humanidade, trazendo elementos do passado para seu presente e, a partir da vivência deste passado relacionado aos conteúdos do seu presente, encontra-se em condições de projetar seu futuro". (SILVA, GARCIA e FERRARI, 1989, p. 14).
Neste bimestre escolar, diariamente, nosso grupo de professores procedeu junto às turmas de 3a série a elaboração de um inventário sobre brincadeiras tradicionais ainda encontradas no seio de sua família e do seu grupo social. Este fato marcou o início do nosso processo pedagógico de historiar as brincadeiras tradicionais através da Educação Física.


 Após a elaboração de um inventário repleto de brincadeiras tradicionais como: adoleta, amarelinha, bandeirinha, elástico, alerta cor, cabra-cega, boneca, entre outros, iniciamos um trabalho com os pais, possibilitando-os assim a freqüentarem um maior número de vezes a escola dos seus filhos.


 Essa atividade começou a ser processada nas primeiras semanas de aula e nos evidenciou um outro modo de construção das relações Educação Física e cotidiano escolar: Educação Física e realidade, conhecimento dos alunos e a cultura corporal, Educação Física e reuniões periódicas com os pais das crianças.


 Nosso projeto pedagógico aproveitou os inventários produzidos pelas crianças e os utilizamos no tempo próprio da Educação Física para a construção de conhecimentos da cultura corporal, como patrimônio da história universal, como um dos objetivos pedagógicos da disciplina. Utilizamos os mesmos nas reuniões junto aos pais dos alunos que muitas vezes além de expressarem verbalmente algumas brincadeiras, ainda as representavam em jogos, teatro, dança, cantigas de roda e tantas outras que serão descritas com mais profundidade neste texto.


 "Se o narrador e/ou ouvinte estão envolvidos com a questão ‘o que existe, por que existe, como existe?’ e se a história proporciona um relato corrente dos tempos passados significativos para o presente, então o sujeito se volta para o passado, e esta relação efetuada a partir do que é vivenciado no atual - contemporâneo - lhe revela uma importante mensagem que tem significado no presente". (SILVA, GARCIA e FERRARI, 1989, p. 15).


 Nos inventários, alguns depoimentos:


 "Eu brincava com meus filhos de bandeirinha, chicotinho queimado, queimado e etc., são algumas das brincadeiras que eu passei para os meus filhos". (Fátima).


 "Às vezes juntam os meus filhos com filhos da Fátima e brincam daquela brincadeira: ‘Nós quatro, eu com você, você comigo, nós em cima, nós embaixo...’ A gente bota as crianças lá da rua sentadas em roda e brincamos de chicotinho queimado, atirei o pau no gato, meus pintinhos venham cá. Ah, eu já ensinei muito e brinquei muito com eles também". (Aparecida).


 "Eu gostava muito de brincar era daquelas brincadeiras ‘É de tango-tango, é de carrapicho, jogo alguém na lata do lixo...; batatinha frita um, dois, três...’ É tinham muitas brincadeiras!". (Maria da Conceição).


 "Tem uma que eu adoro cantar que é assim: Oh, João vai ver teu boneco... a vaca não passou, o boneco desarmou; vou fazer uma casinha no alto pra ficar bem pertinho do céu. E aí eles falam: A senhora está ficando doida?". (Lenia).


 Os depoimentos dos pais sobre as brincadeiras de passar o tempo; cantigas e cantorias que estão na memória infantil; brinquedos comuns e outros construídos na interação pai e filho nos sinalizam a diversidade das brincadeiras na criação de um produto cultural da história da humanidade. Assim, o trabalho foi apontando para a necessidade de socialização de concepções de mundo freqüentemente separadas no interior da escola: o universo adulto e o infantil.


 Os inventários que nos serviram de eixo organizador deste trabalho foram captando espaços confinados que podem ser reconstruídos na interação entre esses dois pólos, quando esses se conflitaram nas relações socializantes. Fomos vendo que a história das brincadeiras tradicionais é corporal e/ou a partir da oralidade. O levantamento deste patrimônio cultural representou a primeira etapa de uma Educação Física historizadora fazendo com que seus atores (re)adquiram a autoestima nas suas construções e sentido na sua existência social.


 Compreendida desse modo, a história das brincadeiras infantis passam a ter uma importância fundamental no tratamento pedagógico da Educação Física Escolar, no tocante a formação da criança e do seu grupo social como sujeitos históricos e sociais.
Nesse sentido, chegamos a conclusão de que se as brincadeiras infantis são uma necessidade sócio-ontológica da organização infantil também são ao mesmo tempo, de socialização do seu grupo. Quando um grupo social vive, verbaliza, experimenta as relações históricas das brincadeiras, então este se transforma num fato histórico e pedagógico. No entanto, este trabalho deve surgir sob a intervenção do professor de Educação Física, através de um projeto pedagógico singular e proveniente da história de um grupo social.


 Notas:


Grupo: Historiando as brincadeiras tradicionais na escola.
Colégio Jean Piaget


 Bibliografia:


Coletivo de autores. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
Fernandez, Florestan. O folclore em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
Miranda, N. 200 Jogos Infantis. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1983.
Silva, Garcia e Ferrari. Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. São Paulo: Cortez, 1989.
Vigotsky, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.