Resumo

Rev Port Cien Desp 3(V) 373–380 379 Folhas caídas sobre a relva, amarelecidas. O aconchego do Sol que vai chegando pela janela. Joggers de fim de semana, na estrada ao longo do porto, correm com o rio para o mar. Sulcos de barcos na água, as sirenes dos navios, as partidas e as chegadas. O mar. O chilreio estridente das gaivotas. Sábado é dia de pausa. Tempo de renovação das rotinas de todos os dias. Intervalo para o descanso. Para a leitura demorada dos jornais, o convívio com a família, o encontro com os amigos, um bom vinho. Para celebrar a vida e trazer calor à alma. Outono. Tempo de colheitas, de canto, de festa, de repouso. O esplendor da natureza e a prodigalidade da vida em andamentos de Vivaldi. O optimismo, a esperança. Num ápice, num segundo, o torpor, o estupor, o pesadelo. Um telefonema, três palavras mal escondendo a comoção, a notícia. Violenta. Raras vezes experimentei um vazio e uma angústia tão profundos. E a impotência. Educados a pensar que o sonho comanda a vida e que não há sonhos impossíveis, que não há obstáculos nem limites ao querer, à inteligência, à coragem, ao compromisso solidário, sentimo-nos abandonados. Desarmados. Resignados a aceitar que estamos todos, afinal, à mercê dos caprichos da fortuna e dos sortilégios dos deuses. Na ânsia de parar o tempo, de fazê-lo voltar para trás, fragilizados, agarramo-nos a tudo. Ao último telefonema, às fotos do derradeiro encontro, à ilusão de que tudo não passe de um sonho mau. Procurando, em desespero, dar de novo vida aos sons, às imagens, aos sinais que nos impelem para a vida. A momentos que não voltam. Num esforço tão inglório como irreal, de vulnerabilidade humana. O desalento, a desesperança, um grito do fundo da alma. Faltam-me as palavras justas, os vocábulos precisos. Que descrevam com nobreza e com rigor o companheiro, o pai, o amigo, que se foi. Que inspirem os momentos em que sobre ele falarei. À família, aos amigos, aos companheiros, aos colegas, aos mais jovens. Sobretudo àqueles que nunca serão seus alunos. A todos os que já não terão o privilégio de o encontrar. Palavras que digam alto a serenidade, de quem teve uma vida cheia e inteira, o humor, o amor, o respeito pelos outros. Que falem da inteligência, da cultura, da força realizadora. Que enalteçam o exemplo imprescindível. Foi-se mais um dos bons. 53 anos de uma passagem, fugaz, pela vida. Tantos sonhos e esperanças por cumprir. E um vazio infinito, insubstituível, doloroso, na casa a que já não volta. Não se resiste sozinho a tanta adversidade. Precisamos do apoio de alguém e da solidariedade de todos durante as agruras da vida. Busco ajuda em Mozart, ponho o requiem, comungo a espiritualidade. Choro o companheiro ausente. Lembro a Denise e o Carlos em duas lágrimas furtivas e volto a Jorge de Sena na sua “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”: Não sei meus filhos que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. (…) Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa – essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. (...) Nenhum juízo final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor que fariam “amanhã”. (...) Nunca te esquecerei Guima. Ganhaste um lugar no meu peito. E o respeito de todos. António Marques