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O cotidiano da educação física escolar

O cotidiano da Educação Física escolar se mostra diversificado em sua prática. Esportes, jogos e brincadeiras fazem parte do dia-dia dessa disciplina, que se apresenta, dependendo da teoria educacional em que se apóia, com objetivos que procuram ajudar na formação de indivíduos críticos para a nossa sociedade.

Diversos autores da Educação Física têm procurado relacionar a prática das atividades corporais com os objetivos educacionais, ressaltando a importância do brinquedo, da brincadeira e do jogo desde os primeiros anos escolares para os alunos (1).

O jogo e seu referencial teórico

O jogo, elemento criativo e lúdico de nossa civilização, tem, na escola, e principalmente nessa disciplina, uma das formas para a sua assimilação e divulgação. Ele demarca elementos de convívio entre grupos, que interagem no cotidiano da escola. Cria laços de amizade, estabelece "rixas" entre turmas, motiva olimpíadas escolares e contribui na formação da personalidade daqueles que mergulham na atividade.

Nesta relação entre os jogos e seus praticantes podemos inferir que nossa sociedade desenvolveu condições para que os jogos caminhassem rumo à desportivização. Elias & Dunning (1992) consideram que o esporte moderno caminhou para um nível crescente de seriedade, tendendo à regulamentação e à competitividade. O jogo foi, ao longo dos séculos, se transformando em esporte: um esporte institucionalizado, regrado, mundialmente conhecido e voltado para o espetáculo.

Porém, podemos considerar que existem jogos que não seguiram os passos da desportivização e perpetuam-se na memória lúdica dos grupos sociais. Esses tipos de jogos são denominados de jogos populares ou tradicionais(2). Parlebas (1987), compreende que os jogos tradicionais são uma das marcas da tradição e conhecimento de um povo, reforçando os códigos e ritos de uma comunidade.

Renson et al. (1997), observando os jogos populares como modelos de adaptação da cultura, que ora aparecem, ora desaparecem, renascendo em lugares diferentes, interpretam que podemos considerar três caminhos para o seu desenvolvimento na atualidade: a desportivização, a pedagogização e a folclorização.

Neste âmbito os estudantes passam a representar suas escolhas, que os conduzem a se interessar por determinados jogos dentro da escola. Jogos como o Queimado(3) se constituem como um dos poucos jogos onde a contagem de pontos e a construção de vitórias e derrotas das equipes se faz pelo impacto da bola no corpo físico dos praticantes.

Literalmente, marcam-se e queimam-se os corpos dos adversários, fazendo do queimado um jogo de perseguição e caça ao corpo do oponente.

Essa caçada, na busca de conseguir atingir o outro, que joga do outro lado do campo, é tida como capaz de promover alegria e prazer para os jogadores. O lúdico inserido nesse jogo possibilita na competição uma demonstração de força, habilidade e perícia, para que seja possível acertar o corpo que se movimenta, se esconde e também ataca.

Ao atingir os oponentes, o participante também oferece seu corpo para ser atingido, lidando com a possibilidade de se machucar em um momento da partida. O combate se transforma em jogo controlado: uma bola lançada com força carrega impacto, dor e, em alguns casos, provoca choro.

Ao se colocarem em jogo, os participantes esperam sair vitoriosos, tentando se sentir os melhores e empurrando para os perdedores o fracasso e a impossibilidade do controle sobre o jogo. Os jogadores de equipes opostas se transformam, momentaneamente, em inimigos e adversários, mas basta que o jogo esteja desinteressante e monótono para que a formação das equipes seja modificada, e pronto: tem-se outro jogo, outras configurações e novo ânimo para se continuar em combate.

Buscamos, a partir do discurso dos praticantes desse tipo de jogo popular, detectar a objetividade e a subjetividade, a violência contida na lógica do jogo, os papéis dos jogadores, a relação com a busca pela vitória, a perseguição e o "matar" no jogo e acabamos por encontrar também outros jogos que seguem a mesma lógica do queimado que, infelizmente, pouco tem atraído a atenção dos profissionais de educação física. Abaixo descrevemos estes tipos de jogos.

Jogos populares que trazem o corpo como alvo

Racha - Esse jogo tem como objetivo fazer com o jogador que conduz a bola em seus pés seja derrubado ou empurrado até o momento em que é possível tomar-lhe a posse de bola. Dependendo do contrato lúdico constituído entre os participantes é possível utilizar-se de chutes contra o corpo de quem a conduz até que outro jogador torne-se o novo condutor da bola.

Pique-bola - Jogo que se aproxima do "racha" (jogado com a bola nos pés e em uma área livre). O objetivo do jogo é "queimar" os jogadores que não detém a posse de bola a partir de chutes. O participante que conduz a bola procura acertar um dos demais, pois sabe que após o chute, a posse de bola deverá ficar com o jogador que conseguir dominá-la em seus pés.

Cinco ou Sete cortes - Esse jogo se inicia com a formação de uma pequeno círculo entre os jogadores e tem como objetivo acertar o corpo do adversário após que um número determinado de toques na bola é realizado entre os participantes, normalmente cinco ou sete toques. Praticado com as mãos, esse jogo se utiliza freqüentemente de bolas de voleibol ou borracha. O movimento de ataque se aproxima do movimento da cortada de voleibol e jogador que não consegue prender a bola em suas mãos é excluído do jogo.

Alerta - Esse jogo é iniciado com um círculo entre os participantes e consiste em dois momentos básicos: o primeiro que se constitui em uma sucessão de arremessos entre os participantes, até que um dos jogadores não consiga segurar a bola em suas mãos e perca a posse de bola. Nessa situação acontece o segundo momento do jogo, que se constitui em captura da posse de bola, devendo o mesmo gritar "alerta" para que os demais participantes parem de fugir. O jogador deverá então, tentar "queimar" um dos participantes utilizando-se das mãos, normalmente aquele que se encontra mais próximo. Se conseguir realizar seu intento, o jogador permanece no jogo, em caso contrário deverá ser excluído do jogo.

Conclusão

Após o período de convivência com os informantes desta pesquisa, foi possível nos debruçarmos em jogos populares que se fazem presentes no cotidiano da escola, cuja riqueza cultural, muitas vezes, passa desapercebida aos olhos de muitos professores de Educação Física. O jogo, aquela atividade diferente nas regras, produzido e elaborado nas tradições de um grupo ou comunidade, que não é valorizado pela televisão ou não foi objeto de estudo em nossas disciplinas acadêmicas, sempre nos pareceu estranho, ininteligível, quando muito divertido, servindo de passatempo para os dias de chuva, atividade representada para o mundo das crianças.

Mas do que realmente brincam esses grupos de alunos, inseridos no espaço escolar, quase que diariamente em lugares pequenos, próximos aos muros, sem precisar da nossa presença ou intervenção?

Ora, são somente alunos brincando um jogo simples e fácil, somos levados por vezes a pensar. Afinal, os jogos populares caminham na direção contrária ao fenômeno esportivo, não sendo atingidos por tendências culturais que globalizam a maioria das atividades corporais deste novo milênio. Os alunos, ao nos mostrarem o que sabem fazer, nos ensinam. Ensinam que podemos reproduzir mais que os jogos com bola nos quatro bimestres, obedecendo a suas regras e fundamentos; nos provam que podemos fazer mais que atuar como árbitros dos esportes. Eles criam e recriam os jogos da cultura que vivenciam e, ao jogarem, se divertem. Se divertem de forma diferente da geração adulta. Buscam alternativas, elaboram estratégias, interagem com o meio ambiente e talvez por isso, não tenhamos prestado a devida atenção a esses jogos. São comuns, são brincadeiras, são atividades não sérias, mas cobertas por compromisso e responsabilidade de seus praticantes. Não são esportes e nem precisam ser. Os jogadores se acertam. Procuram-se no jogo. Rivalizam, mas só de "brincadeirinha", só por alguns momentos, porque os papéis vividos pelos participantes são transitórios e logo tudo será reintegrado no cotidiano escolar. Os alunos em suas interações e convívios quase que diários, fazem desses jogos populares mais uma forma de colocar em prática atividades que despontam no espaço escolar como jogos de fácil aceitação. O espírito lúdico desencadeado nestas práticas permite dizer que é na construção de regras próprias e contingentes que estes atores se fazem donos de seus espaços. Jogam fora da quadra, próximo aos pátios, em estacionamentos e onde mais for possível, bastando apenas uma bola de borracha e um punhado de meninos e meninas dispostos a mirar no corpo do outro, este que se coloca como adversário.

Aprendem a se movimentar nos pequenos lugares, em campos de terra batida ou cimentada, perto de árvores ou postes, ou melhor, passam a jogar com o espaço físico: usam as paredes, marquises e tetos para ganharem tempo, fintarem os adversários, na tentativa de enganá-los por completo.

Neste sentido é preciso que os professores de educação física estejam atentos para novos olhares sobre os jogos populares, fazendo desses objetos de estudo para uma compreensão mais elaborada sobre a vivência lúdica de nossos alunos.

Notas

  1. Sobre brincadeiras e jogos na Educação Física Escolar, ver as obras de Mello (1985), Oliveira (1985), Freire (1991) e Brasil, Secretaria de Ensino Fundamental (1988).
  2. De acordo com o Dicionário Aurélio (Ferreira, 1985) a palavra tradição remete o sentido de transmitir oralmente fatos e lendas, de idade em idade, de geração em geração; ou ainda é o conhecimento ou prática resultante de transmissão oral ou de hábitos inveterados. No caso dos jogos tradicionais, esta transmissão se configura na prática desses jogos escolares, de alunos mais velhos para alunos mais novos, dos professores para alunos nas aulas de Educação Física, numa incessante criação e recriação das formas de se jogar.
  3. Mello (1985) descreve o queimado como: "dois grupos de igual número de crianças se colocam divididas por uma linha central e duas de fundo, uma para cada equipe. A linha central é a divisória de campo entre os dois grupos. O objetivo é lançar a bola contra o outro grupo, tentando acertar um de seus componentes de modo que o jogador atingido pela bola não consiga segurar a mesma. A criança ‘queimada’ deverá se dirigir para a linha de fundo do grupo adversário, somente retornando ao seu campo se conseguir ‘queimar’ alguém da outra equipe. Vencerá o jogo o grupo que conseguir ‘queimar’ o maior número de jogadores do time adversário, deslocando-os para a linha de fundo do seu próprio campo".

Obs. Os autores Ms. Carlos Henrique de V. Ribeiro (da SEED-RJ) e Dr. Sebastião Josué Votre (da UGF-RJ)

Referências bibliográficas

  •  Costa, V. L. de M. (1984). Prática da educação física no 1o grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação? São Paulo: IBRASA.
  • Elias, N. & DUNNING, E. (1992). A busca da excitação. Lisboa: Difel.
  • Mello, A. M. de. (1985). Jogos populares infantis como recurso pedagógico da educação física escolar de 1o grau no Brasil. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UFRJ.
  • Parlebas, P. (1987). Jeux, sports et sociétés: lexique de praxéologie motrice. Paris: INSEP.
  • __________. (1988). Elementos de sociologia del esporte. Málaga: Colection Uniesport.
  • Passos, K. C. M. (1995). O lúdico essencial e o lúdico instrumental - o jogo nas aulas de educação física escolar. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UGF.
  • Ramos, J. S. da S. (1998). A teoria Praxiológica de Pierre Parlebas e sua aplicação na análise de um jogo tradicional brasileiro. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UGF.
  • Renson, R. et alii. (1997). The reinvention of tradition in sports and games. In: DOOL-TEEPER, G. (ed.). Ancient traditions and current trends in phisical activity and sport. Berlin: ICSSPE/CIEPSS. p. 8-13.
  • Ribeiro, C. H. de V. (2000). Fracos e Fortes com seus Ganchos e Bombadões: A Representação Social dos Praticante do Jogo Queimado nas Aulas de Educação Física Escolar. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UGF .
  • Salles, J. G. do C. (1998). O contrato lúdico na prática de futebol lazer: estudo da representação social. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UGF.