Resumo

Entrevistas
Katia Rubio

Nos últimos 13 anos a professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP Katia Rubio se dedica a registrar a história de todos os atletas olímpicos da história do Brasil, e um dos resultados do estudo estará disponível em breve, com o lançamento de uma enciclopédia. Abaixo, a bacharel em jornalismo e psicologia, mestre em educação física e doutora em educação fala sobre o que tem aprendido com os protagonistas da cena esportiva nacional. E, às vésperas de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada no país, não está otimista.

Estamos a dois meses da Copa do Mundo e a dois anos de uma Olimpíada. Como você vê a situação do país em função dos dois eventos? A expectativa inicial em relação ao desenvolvimento dos esportes brasileiros está se cumprindo?

Eu não vejo a Copa do Mundo servir a esse propósito. A Copa do Mundo não tem qualquer relação com o desenvolvimento do esporte no Brasil. É um negócio, e um negócio que vai causar um prejuízo muito grande tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista moral. Estamos a poucas semanas da Copa e o que se vê é um exemplo de má gestão e mau planejamento, uma vez que estádios não estão prontos e há construções superfaturadas, além de obras de infraestrutura prometidas para as cidades-sede que não foram feitas. O que fica é um grande prejuízo para a nação. E será uma festa para gringos verem porque o público brasileiro terá pouco acesso aos estádios e aos jogos.

Você faz um trabalho envolvendo os atletas olímpicos. Qual a expectativa em relação aos Jogos Olímpicos no Brasil? Afinal, ao mesmo tempo em que teremos uma Olimpíada em casa, temos os gastos, que não serão poucos...

Com os Jogos Olímpicos a situação não será muito diferente (da Copa) porque os investimentos que se esperavam para o desenvolvimento do esporte não aconteceram como se desejava. Há apenas alguns poucos investimentos nos atletas com chances de medalha para 2016 e isso não é desenvolvimento esportivo. E, mesmo assim, o número de medalhas que o Brasil vai ganhar não deve ser muito maior do que nas três últimas edições, porque o tempo necessário para o desenvolvimento de um atleta de nível olímpico é de oito a doze mil horas de treinamento. Não existe mágica. Ninguém será formado em dois ou quatro anos para chegar aos Jogos Olímpicos e ser um expoente, porque isso é impossível. Atleta olímpico se faz com treinamento, com preparação e planejamento, e isso não aconteceu. Talvez seja um pouco diferente do evento da Fifa, pois a Olimpíada é mais concentrada – tudo acontecerá no Rio de Janeiro. Porém é um Rio que tem de se transformar completamente em dois anos. E, assim como não se forma um atleta da noite para o dia, não se muda uma cidade em um estalar de dedos. Veja que recentemente foi anunciada a demissão da pessoa que ocupava a presidência do comitê gestor da cidade do Rio de Janeiro (a Empresa Olímpica Municipal). Ela pediu demissão porque o projeto da matriz de responsabilidade não é aprovado. De quem é a responsabilidade? Do governo federal, estadual e municipal. A matriz define de quem são as responsabilidades, os investimentos. Se isso não está aprovado, significa que as obras não estão sendo feitas.

Detalhe seu trabalho com os atletas olímpicos. Imagino que localizar alguns deles seja complicado.

São treze anos de pesquisa e só agora as pessoas têm um pouco mais de informação a respeito dela. Já temos 1200 entrevistas realizadas com 1816 atletas e o levantamento do número de falecidos em 320. Estamos perto de fechar esses números, porque há uma quantidade de atletas inacessíveis, cerca de duas centenas, quase todos do futebol. É uma modalidade na qual os atletas jogam fora do país e, curiosamente, não têm identidade com o esporte olímpico. Nós telefonamos, fazemos o contato e pedimos a entrevista, mas eles têm coisas mais importantes para fazer do que falar com uma professora da USP para uma pesquisa olímpica. Enfim, estamos na reta final da coleta de dados e de entrevistas, e começamos a produzir o material acadêmico a respeito dessas informações. Para este ano teremos o lançamento da enciclopédia olímpica brasileira, na qual essas histórias serão apresentadas no formato de verbetes biográficos. Cada atleta será retratado como um verbete com a síntese de sua história de vida.

Seu trabalho permite o contato com atletas que há muito tempo já encerraram a carreira, enquanto outros ainda estão em atividade. Hoje, por exemplo, se fosse explicar a diferença entre um atleta dos anos 1960 e um da atualidade, o que chamaria mais a atenção, além do conhecido amadorismo antigo e do atual profissionalismo?

Amadorismo e profissionalismo determinam as trajetórias e também a identidade do atleta. Mais do que treinar por amor, que o amadorismo preconizava, há a relação profissional estabelecida entre aquilo que o atleta faz e o desenvolvimento de sua trajetória de vida. Se até os anos 80 as pessoas se dedicavam até os 25 anos, aproximadamente, para o esporte, e buscavam estudar, vislumbravam alternativas para o pós-carreira, isso se transformou a partir dos anos 80, com a perspectiva de ganho material com a atividade esportiva. As carreiras tornaram-se mais longevas, e há a expectativa de aproveitamento do atleta também após a “aposentadoria”, a continuidade da carreira esportiva na condição de dirigente, técnico ou gestor.

Das entrevistas que fez, o que mais surpreendeu ao desvendar a história de um determinado atleta?

Todos os atletas que foram aos Jogos têm histórias muito interessantes, porque ser atleta olímpico no Brasil é uma aventura, e a conquista da vaga olímpica é uma superação tanto dos limites individuais quanto de limites sociais – superação da falta de apoio, de condições materiais, de conhecimento técnico... Tudo isso é incrível. Mas o que chamou a atenção, especialmente, são as famílias de alguns atletas já falecidos que não sabiam que eles tinham sido olímpicos. É incrível! Nos deparamos com três famílias que não sabiam ou que tentavam esconder esse passado.

Mas por que esconder?

Questões familiares, como o homem que se separou e casou de novo e a nova mulher faz questão de apagar o passado dele. Também um caso de ex-marido. Isso dificulta o trabalho de preservação de memória. Encontramos um atleta que participou da Revolta da Chibata e por isso a família tentou, de alguma forma, não falar do passado dele, com receio de suscitar essa participação. Ele era marinheiro, e é uma história realmente maravilhosa. Outra coisa surpreendente são atletas homônimos de atletas olímpicos, e quando fazemos o contato eles inventam uma história para participar do projeto. Já houve dois casos desses. A pessoa se dá ao trabalho de criar uma história sobre si mesmo para ter a foto aparecendo no facebook, ou seja lá o que for. Isso acaba sendo tão importante nesse contexto da pesquisa quanto à história dos atletas, que eu me sinto constrangida de dizer: “gosto mais dessa ou mais daquela” porque para mim todas são muito especiais.

Você contou com ajuda por parte das entidades esportivas no acesso a dados?

Nenhuma, pelo contrário. Fazemos um trabalho de detetive. Tenho uma equipe de três pessoas que buscam incessantemente os falecidos e atletas que sumiram. Fazemos um levantamento em jornal de época e contato com a família. Toda e qualquer pista é sempre muito valiosa. As instituições que colaboram são os clubes – isso eu não posso deixar de citar, pois têm sido grandes parceiros. Também o CNPq e a Fapesp, que entraram com apoio material para que esse projeto se realizasse ao longo de quinze anos e, recentemente, um aporte pela Lei Rouanet e o Bradesco – para a publicação da enciclopédia.

Como é o relacionamento dos atletas com a maioria dos dirigentes? É difícil para um atleta em atividade ser crítico, por temer represálias, mas os que encerraram a carreira devem se sentir mais à vontade.

Há diferentes momentos históricos e essas relações são contextualizadas. Há a época na qual o esporte é dirigido pela aristocracia, com atitude muito blasé em relação à prática esportiva. Há o momento no qual começa a entrar dinheiro nas institui ções, e isso muda a atuação do dirigente, com inúmeros casos de corrupção relatados pelos atletas. Além disso, há a dificuldade muito grande em fazer o atleta ocupar, na entidade esportiva, o papel que lhe cabe, que é ser protagonista de tudo. Há uma disposição, um trabalho quase hercúleo, das instituições em afastar os atletas das posições de gestores e partícipes das grandes decisões. É absolutamente surreal porque são eles que promovem toda a existência do movimento olímpico.

Existe uma reclamação de longa data no meio esportivo no que diz respeito à longevidade dos dirigentes nos cargos de chefia das entidades. Existe alguma opção fora do país que se possa usar como exemplo?

Isso é uma característica da organização olímpica desde sua formação. Eu, recentemente, publiquei a seguinte frase do Barão Pierre de Coubertin (criador da versão moderna dos Jogos Olímpicos) “Nós não nascemos para ser um sistema democrático”. Em suma: que se dane a sociedade – nós achamos que é desse jeito e assim será. Você tem desde a fundação uma instituição que não se organiza para ser democrática, mesmo que se passe um século e se transforme como o mundo se transformou no século XX. A estrutura tem uma cultura que não está preocupada com a democracia, mas com o sistema criado para ser ele mesmo: aristocrático, feudal, autocrático. E pouco importa a sociedade. Mas o que o Barão de Coubertin não viu e que os dirigentes esquecem é que todas as entidades esportivas dependem dos estados nacionais e das organizações sociais. Não adianta fazer um discurso de autonomia que não corresponde à realidade da sociedade e do esporte contemporâneo. Como o esporte do Brasil vive? Das verbas da Lei Piva. E de onde vem a verba da Lei Piva? Do poder público. Então, que autonomia é essa? Parece criança quando quer sair da casa dos pais: “quero viver sozinho, mas me dá uma mesada de R$ 10 mil para eu poder me sustentar”.

Existe luz no fim do túnel? É possível ter esperança mesmo vendo as instituições mal geridas? É possível pensar em um esporte brasileiro forte no futuro?

A esperança está na mudança das estruturas. Se elas mudarem, eu acredito que sim. Mas sem que ocorra essa mudança de cadeira, de nomes, de rostos, de identidade, isso não vai acontecer. Vai haver a perpetuação de um sistema corrompido, viciado e que em nada contribui para o desenvolvimento do esporte, porque a máxima é tirar proveito daquilo que o esporte dá, e não desenvolver aquilo que o esporte pode ser.

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