Integra

 Ponto de partida e objeto discutido


 Investigar, de forma científica, as angústias e contradições trazidas do cotidiano das aulas de educação física, assim como as questões comuns ao processo educacional inseridas na realidade social, é mais do que legítimo; trata-se, antes de tudo, de um compromisso assumido no trabalho em educação física.


 Assim sendo, percebemos tal compromisso refletido em um grupo de 13 professores quando ingressaram em nosso programa de Pós-Graduação - no Curso de Especialização em Fundamentos Teóricos e Metodológicos do Ensino da Educação Física Escolar da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no ano de 1999 - trazendo consigo uma intenção de estudos com questões pertinentes à sua realidade vivida dentro das escolas do município de Juiz de Fora - Minas Gerais, - e adjacências. Na presente fase de desenvolvimento do curso, os professores encontram-se em etapa final do desenvolvimento dos projetos de pesquisas, e avançam para a discussão das metodologias a serem optadas para a monografia de final de curso, o que ocasiona determinadas incertezas sob o ponto de vista do contato com as metodologias científicas.


 O presente texto tem como objetivo apresentar a vigência do materialismo histórico-dialético como referencial teórico-metodológico nas pesquisas em educação física, travando um diálogo epistemológico com outras posturas/metodologias investigativas. Para tal, terá como objeto de exame os projetos de pesquisa e intenções de estudo dos alunos do referido Curso de Especialização.


 Nesse sentido, percebemos, a título de uma classificação inicial dos projetos em andamento, dois grandes grupos: a) um primeiro, com questões pertinentes a aspectos teóricos-metodológicos da educação física tais como conteúdos, planejamento, avaliação e relação teoria e prática; b) um segundo, com indicações a aspectos fenomênicos manifestados nas aulas, tais como o descaso, desvalorização, desinteresse, desmotivação, discriminação, bem como preocupações com interesses, necessidades e disciplina dos alunos. A defesa que se segue da dialética materialista será feita pela apresentação dos seus fundamentos, mediados pela necessidade de responder o quadro de objetos investigativos, sob o ponto de vista da produção do conhecimento e prática pedagógica.


 2. Fundamentos do materialismo histórico-dialético e pesquisa em educação física


 A escolha de um referencial teórico e metodológico parte de um pressuposto inicial, do qual possuímos concordância com a síntese afirmativa de Gaudêncio Frigotto (In: FRIGOTTO, 1998, p.26):


 "Um pressuposto fundamental, quando nos propomos ao debate teórico, entendemos deva ser que as nossas escolhas teóricas não se justificam nelas mesmas. Por trás das disputas teóricas que se travam no espaço acadêmico, situa-se um embate mais fundamental, de caráter ético-político, que diz respeito ao papel da teoria na compreensão e transformação do modo social mediante o qual os seres humanos produzem sua existência, neste fim de século, ainda sob a égide de uma sociedade classista, vale dizer, estruturada na extração combinada de mais-valia absoluta, relativa e extra. As escolhas teóricas, neste sentido, não são nem neutras e nem arbitrárias - tenhamos ou não consciência disto (grifo nosso). Em nenhum plano, mormente o ético, se justifica teorizar por teorizar ou pesquisar por diletantismo".


 Assim sendo, qualquer que seja a metodologia escolhida para fins investigativos, esta partirá necessariamente de uma postura espistemológica, que possui uma concepção de ciência e de mundo. A dialética materialista, nos lembra Frigotto (In: FAZENDA, 1989) em texto mais antigo, é portanto, além de uma postura ou concepção ontológica de mundo, também um método, cuja característica central é a apreensão radical da realidade. Contudo, para além dessas duas instâncias, é também práxis, ou seja, síntese teórico-prática na busca da transformação, também radical, da estrutura social historicamente construída.


 Portanto, uma primeira consideração a ser feita aos estudos que procuram discutir a dicotomia entre teoria e prática nas aulas de educação física, especialmente no que diz respeito à intervenção pedagógica orientada na perspectiva histórico-crítica (COLETIVO DE AUTORES, 1992), é a importância da observância se tal intervenção traz consigo a unidade da postura do materialismo histórico ou marxismo - seu referencial -, no que diz respeito à análise da realidade concreta, e a necessidade de sua transformação.


 A realidade concreta é um conceito central para o materialismo dialético. Para Karl Marx (1982), a realidade não é caótica, desordenada ou fragmentada, incompreensível em sua totalidade. Ela possui uma dimensão concreta, que deve ser apreendida, trazendo a representação caótica da realidade (abstração) inicialmente para o plano do concreto idealizado (pensado) e, a partir de categorias históricas de produção material, chegar finalmente à totalidade concreta, síntese de muitas determinações e unidade do diverso. Outrossim, a realidade concreta também não é fruto do pensamento humano, ou sua consciência, mas justo o contrário,


 "São os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar [...] E, se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico" (MARX, ENGELS, 1989, p.20,21)


 Daí decorre uma síntese para os projetos analisados do segundo grupo, ou seja, dos aspectos fenomênicos manifestados nas aulas de educação física. O materialismo histórico não desconsidera a existência dos fenômenos a serem investigados (descaso, desvalorização, desinteresse, etc.), pois estes integram, sem dúvida, a realidade pesquisada. Não obstante, tal apreensão inicial não corresponde à totalidade concreta da realidade, ou essência do fenômeno. Os fenômenos não podem ser compreendidos simplesmente em seu plano restrito, por meio de representações ideais moldadas na consciência individual, tal como prevê a fenomenologia. Isto porque ele constitui-se em manifestação da realidade, evidenciando-a e ao mesmo tempo escondendo-a. Há de se proceder, necessariamente, portanto, um aprofundamento investigativo em suas bases histórico-estruturais, o que implica analisar, para estes casos (grupo 2), as bases materiais da sociedade que criam as necessidades, desejos, inquietações e descasos, entre outros, dos alunos das aulas de educação física.


 Trabalhar diretamente com a manifestação fenômenica é, seguindo a exemplificação dos autores acima citados (ibid.), justamente operar com a inversão realidade, ou em sua base ideológica. Ideologia na perspectiva marxiana refere-se essencialmente ao conjunto de idéias da classe dominante formuladas para manter sua hegemonia:


 "Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante [...] Os pensamentos dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes; eles são essas relações materiais dominantes consideradas sob forma de idéias, portanto a expressão que fazem de uma classe a classe dominante; em outras palavras são as idéias de sua dominação" (ibid., p.45).


 Neste sentido, é necessário a compreensão de que os pensamentos, desejos e interesses manifestados pelos alunos podem provir, em determinado momento, do interesse da classe dominante, propagado em forma de ideologia, que opera em dois sentidos: a) através da universalização das idéias da classe dominante, que impõe os seus interesses, desejos e valores como os únicos coerentes e possíveis a serem almejados, obscurecendo os reais interesses históricos da classe dominada, e ocultando-lhe a possibilidade de superação do modelo contraditório da atual sociedade, e do sentido histórico da luta de classes; b) criando a falsa idéia de que os interesses e desejos da classe dominante não são passíveis de serem alcançados por todos em seu modelo social. "A classe que dispõe dos meios da produção material dispõe também dos meios da produção intelectual, de modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante" (ibid., p.47).


 A apreensão desta instância fenomênica, ou origem empírico-objetiva (GAMBOA, In: FAZENDA, op.cit.), necessita, na abordagem materialista, de um tratamento, portanto, no sentido do concreto pensado, para chegar, finalmente, à sua síntese, a realidade concreta.

 Assim sendo, a concreticidade torna-se categoria fundamental, e representa a dialética entre sujeito e objeto na pesquisa sob o viés do materialismo histórico. Esta perspectiva supera a relação gnosiológica onde o sujeito pretensamente conseguiria neutralidade e objetividade face o objeto investigado (postura positivista), bem como onde a existência do objeto demandaria da compreensão do(s) sujeito(s), ou seja, só existiria sob o ponto de vista interpretativo e cognoscente daquele(s) que o(s) vê(em) (postura idealista).


 Para o primeiro grupo de projetos analisados, faz-se importante ressaltar que, não só o homem é fruto de determinações históricas, porém todas suas produções, sobretudo a própria "[...] educação é vista como uma prática nas formações sociais e resulta de suas determinações econômicas, sociais e políticas [...], também é espaço da reprodução das contradições que dinamizam as mudanças e possibilitam a gestação de novas formações sociais" (ibid., p.103-104). Desta feita, retiram-se dois pressupostos para a investigação de aspectos teóricos-metodológicos da educação física, tais como seleção de conteúdos, planejamento e avaliação, bem como políticas educacionais destinadas a tais instâncias: a) que estes aspectos partem de uma sociedade historicamente localizada e socialmente determinada, que possui uma arquitetura hegemônica que demanda um tipo de formação humana; b) que, apesar de estruturalmente determinada, a prática educacional, sob o ponto de vista da dialética, pode vir a ser um espaço de discussão e explicitação das contradições do atual modo de produção. Para este grupo de projetos, o desenvolvimento histórico dos conceitos a serem tratados, bem como a sua relação com o contexto atual no modo de produção capitalista, configurariam interessantes caminhos a serem pesquisados.


 Por sua vez, o conceito de totalidade - enquanto meta de apreensão da realidade - é distinto de tudo a ser apreendido. A totalidade não pretende conhecer todos os aspectos da realidade, contudo,


 "[...] Se a realidade é entendida como concreticidade, como um todo que possui sua própria estrutura (e que portanto, não é caótico), que se desenvolve (e, portanto, não é imutável nem dado uma vez por todas), que se vai criando (e que, portanto, não é um todo perfeito e acabado no seu conjunto e não é mutável apenas em suas partes isoladas, na maneira de ordená-las), de semelhante concepção da realidade concepção da realidade decorrem certas conclusões metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas da realidade [...]" (KOSIK, 1986, p.36).


 Tal posicionamento afronta diretamente as posturas relativistas - pós-modernas ou não - que negam a possibilidade do conhecimento humano atingir a totalidade dos aspectos da realidade. Ou seja, o materialismo histórico-dialético vislumbra a possibilidade de enfocar temas tais como desmotivação, discriminação (racial, de gênero ou de idade, por ex.), disciplina nas aulas de educação física, entre outros, e dar um sentido social estruturado, apontando relações destes fenômenos com os movimentos sociais históricos das classes em antagonismo.


3. Concluindo


 O materialismo histórico-dialético mostra-se, a despeito das críticas hoje posicionadas à referência marxista e da possibilidade e necessidade de concretização do projeto histórico socialista, um referencial de postura, método e práxis vigentes para a compreensão e superação da realidade concreta estabelecida. Novas abordagens e metodologias vêm sendo criadas, com preocupações mais pontuais e técnicas científicas diferentes para a investigação no campo educacional. Neste sentido, o materialismo histórico não se fecha como posicionamento ortodoxo às outras formas metodológicas. Não obstante, ressalta a importância de que as discussões, abordagens, questionamentos e formas investigativas sejam feitas de forma subordinadas à sua temática central, ao seu núcleo constitutivo, ou seja, na perspectiva da luta de classes como motor da história, e na busca da emancipação humana.


 Um interessante apontamento para a opção da investigação educacional no plano materialista neste momento histórico seria aquele sugerido por Frigotto (op.cit., p.25):


 "Trata-se de entender a formação humana no contexto de reestruturação produtiva e globalização excludente, da dramática crise estrutural do trabalho assalariado que produz esterilização numa ‘existência provisória sem prazo’ (FRANKEL, 1945), e, portanto, das novas formas de alienação do trabalho"


 Obs. O autor é professor assistente da FAEFID - UFJF


 Referências bibliográficas


Coletivo de autores. Metodologia do ensino em educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
Frigotto, Gaudêncio. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: Fazenda, Ivani (org). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989.
____________ In: Frigotto, Gaudêncio, 1998.
Gamboa, Silvio Ancízar Sanchez. A dialética na pesquisa em educação: elementos de contexto. In: Fazenda, Ivani (org). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989.
Kosik, Karel. Dialética do concreto. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Marx, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
____________ Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.