Integra

Introdução

Em nosso estudo de conclusão de curso (MORAES, 2004), ao realizar um cotejo dos jornais proletários com um importante periódico1 da área da educação física da década de 30 e 40 do séc. XX, percebemos que o discurso "oficial" acerca das relações entre trabalho, lazer e educação (física) não foi assimilado passivamente pelos trabalhadores. O movimento operário, resistindo ao amoldamento subjetivo e à homogeneização de valores e hábitos burgueses, engendrou uma resistência política e cultural acerca da educação e do esporte não proletários. Tal fato nos incita pensar em condições, em alternativas, em possibilidades de práticas/experiências culturais que se colocam na contramão da dinâmica do capitalismo e da indústria cultural. Da análise empreendida, podemos dizer que a atitude dos trabalhadores vai ao encontro da questão colocada por Adorno (1995) ao afirmar que a dominação da subjetividade pela indústria cultural ainda não alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre, sendo evidente, tal como constatamos no caso do esporte proletário, que os interesses reais dos indivíduos são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão total. Isso porque, continua Adorno (1995, p. 81), ao menos no tempo livre, as coisas não funcionam de forma tão simples, que, "[...] sem dúvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode envolvê-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas". Nisso reside uma chance para a emancipação do indivíduo, que poderia, enfim, "[...] contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade [Freiheit]" (ADORNO, 1995, p. 82).

Na esteira dessas idéias, objetivamos nesse texto, suscitar algumas questões que possam nos auxiliar a pensar e a enfrentar os desafios lançados ao campo da educação (física) pelas reordenações societárias contemporâneas, privilegiando o viés das (novas) mediações entre trabalho, lazer e educação (física).

As reordenações no mundo do trabalho e sua relação com a educação (física) e o lazer

São as tensões contemporâneas de caráter macroestrutural que nos oferecem elementos fundamentais para a compreensão do discurso e fundamentação da educação física escolar e sua relação com o lazer e o mundo do trabalho. As últimas décadas do séc. XX são fundamentais para entendermos o atual momento histórico. Na esfera do trabalho, basta nos reportamos, junto com Antunes (2003), ao histórico crescimento econômico brasileiro e a situação crítica do capitalismo com o excesso de capacidade e de produção, nos anos 70, demonstrando sinais de esgotamento do modelo de Estado do Bem-estar social e revelando o marco da crise estrutural do sistema capitalista; o desmoronamento do sindicalismo e a "década perdida" e, mais recentemente, assistimos nos anos 90 o que podemos chamar de resposta neoliberal para a crise do modo de produção capitalista.

Já no campo educacional, podemos verificar, em boa parte das pesquisas sobre a relação trabalho-educação, modelos conectivos de análise que identificam uma relação linear das reordenações do mundo da produção para a escola.2 Por sua vez, os estudos sobre o fenômeno do lazer indicam que, sobretudo a partir do pós-guerra, essa temática ganhou maior evidência e passou a ser concebido também como um espaço de consumo, assim como um direito social e elemento importante ao "equilíbrio societário". Apesar dos esforços que vislumbram novas bases para o entendimento da relação entre educação (física), trabalho, lazer e a formação humana, a recomposição do capitalismo em roupagens neoliberais, a partir da década de 70, garantiu um espaço promissor não só para os avanços da tecnologia, resultando na precarização da vida, na inevitabilidade do consumo, na incerteza, na flexibilização, na desorganização, etc.

Desse modo, observar essas reordenações no cenário social pode contribuir para a investigação de possibilidades formativas nos diversos aspectos da sociedade hodierna e também evidenciar o que vem ocorrendo com o lazer, o tempo livre e a educação (física), permitindo-nos analisar em que medida essas esferas ainda têm se restringido às relações da racionalidade produtiva. As mudanças ocorridas no mundo do trabalho podem ser caracterizadas, entre outros fatores, pela utilização da microeletrônica,3 a flexibilização e precarização do emprego (e também das relações sociais) e a expansão do setor de serviços4 A crise do trabalho (que não é só econômica, mas também cultural e social) e sua relação com o campo da educação (física) e o lazer, trazem novos elementos para (re)pensarmos os referenciais que têm na produção, no trabalho e na vida adulta os condicionantes da formação e da conduta humana, pois é notório as interferências dessas mudanças em círculos cada vez mais amplos na vida cotidiana dos povos, misturando o publico e o privado, o trabalho e a vida, embaralhando o tempo e gerando uma nova cultural do trabalho que se mistura a aspectos da vida dos quais esteve separada ou delimitada (PAIVA, 1999).

A relação entre educação física e lazer: buscando possibilidades

Em termos gerais, a temática do lazer na sociedade contemporânea, sobretudo a partir das últimas décadas do séc. XX, tornou-se elemento/objeto de significativo mote para as políticas sociais do poder público, nas reivindicações de comunidades e movimentos sociais, nas ações empresariais privadas, abarcando um espaço cada vez maior no cenário social. Na produção do conhecimento, o lazer, integrado aos demais planos da vida social, ganhou configurações conceituais, educacionais e socioculturais. É interessante notar que as atuais pesquisas sobre a temática do lazer vêm esboçando um rompimento com visões parciais e desconectadas da trama social e com estudos embasados em argumentos frágeis e idealistas, apontando reflexões que se aprofundam na (re)construção de seus sentidos (social, histórico, político e cultural), no entendimento e apreensão da sua possibilidade de produção cultural, no seu aspecto de luta, resistência, manobra sobre os ardis capitalistas e a indústria cultural e no seu potencial crítico, reflexivo e criativo.5
Os reordenamentos no mundo do trabalho e no cenário educacional apontam desafios e possibilidades para a (re)construções e (re)significações dos diversos tempos e espaços educacionais, das relações sociais, das relações entre cultura e educação (física), das diversas (sobre)vivências educativas e socializadoras, da política, da idéia de produção, do ideal de trabalho... Nessa trama, despontam como questões importantes: que desafios são lançados ao campo da educação (física) por esse presumível novo status social do lazer na sua relação com o trabalho? Quais as possibilidades de novas mediações entre trabalho, lazer, educação (física) na formação do sujeito político contemporâneo? Que desafios se colocam para a construção de novas relações sociais e políticas para além da direta mediação da esfera produtiva?

Buscar elementos para compreensão e (re)construção das relações societárias atualmente pautadas pela inserção dos indivíduos na condição de consumidores (BAUMAN, 1999), pela mercadorização da vida e do consumo fugaz e incessante, é tarefa para a sociedade e seus setores educativos: pensar em ações, interações e mediações que sinalizem a possibilidade de (re)construção de práticas culturais que privilegiem outras dimensões da vida que não somente o trabalho e, que por meio de valores mais justos e críticos, encaminhe nossas reflexões para a uma leitura clara das novas e constantes mudanças que a produção de mercadorias traz/impõe ao nosso cotidiano. Se a educação física esteve atrelada ao trabalho, a transição da sociedade de produtores para a sociedade de consumidores coloca para o campo da educação (física) a necessidade de discutir seriamente seus papéis numa sociedade de consumidores, identificando os impasses, limites e possibilidades que se colocam para essas áreas, numa perspectiva crítica no atual momento societário. Essas colocações trazem outros questionamentos: Quais seriam as possibilidades emancipatórias de uma educação (física) crítica e do lazer no contexto de uma sociedade de consumidores? Que valores e saberes privilegiar ou excluir na escola e nas relações sociais para a construção de processos educativos da dimensão estética que vão na contramão da tendência da semiformação?

Os estudos comprometidos com o esforço de transformação do atual quadro societário, relevam a importância da dimensão da cultura6 como um fator positivo nas reflexões sobre os desafios colocados para o campo da educação (física) e suas relações com o lazer e o trabalho. Desse modo, criar condições para a transformação dos sujeitos em "produtores culturais" é possibilitar a apropriação das condições da produção do saber teórico-prático, lúdico e educativo, que por sua vez contribui para a criação e transformação da cultura que perpassa os aspectos da vida humana, inclusive o lazer (ISAMAYA; STOPPA; WERNECK, 2003). Bracht (2003), na esteira dessa idéia, pensa com esmero o lazer como uma possível referência teórica e prática da educação física escolar, acrescentando ao debate sobre a relação entre a educação física, o lazer e a educação estética alguns elementos que, mediados entre si, possibilitam pensar numa educação (física) contra-hegemônica, em experiências de contra-cultura, em práticas de resistência. Esses elementos seriam a cultura na sua dimensão criativa/produtiva e a ludicidade na sua mediação com a esfera lógico-racional. Seria pelo caminho da educação estética a alternativa que Bracht (2003) propõe para pensarmos uma relação entre educação física escolar e lazer e uma educação para o lazer. Uma educação dos sentidos desponta como uma questão riquíssima e que traz contribuições para pensarmos práticas de contracultura. Nas palavras de Duarte (2001, p. 41) "Se a dominação do mundo ‘globalizado’ se exerce [...] de um modo eminentemente ‘estético’, cabe ainda refletir sobre as chances que nesse contexto, teria uma possível emancipação através do estético".

Bracht (2003) nos convida a repensar uma prática educativa (da educação física) que trate a cultura (corporal de movimento) no sentido de algo vivo a ser assimilada, assumida e, acima de tudo, produzida, criada e que traga a tona, recordando Chauí (1989, p. 53), a concretização da cidadania cultural,

[...] em que a cultura não se reduz ao supérfluo, a sobremesa, ao entretenimento, aos padrões do mercado, a oficialidade doutrinaria que é ideologia, mas se realiza como um direito de todos os cidadãos, a partir do qual eles se diferenciam, entram em conflito, trocam as suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras alternativas, movam todo o processo cultural.

Para finalizar, não poderia dizer que temos a pretensão de responder todos os questionamentos suscitados nesse texto. Pelo contrário, restam ainda muitas dúvidas sobre as possibilidades do lazer e da educação física e sua relação com a educação estética de suplantar novos valores, novas práticas educativas, novos imaginários acerca das relações entre trabalho, educação (física) e lazer, novas práticas pedagógicas que estimulem a ressignificação das relações sociais e laborais na contemporaneidade. De qualquer modo, acreditamos que se levarmos a cabo o conceito de cidadania cultural em nossas práticas educativas já se esboça um bom começo.
A autora, Cláudia Emília Aguiar Moraes é do LESEF/CEFD/UFES

Notas:

1 A revista Educação Physica (1932-1945).

2 Arroyo (1998 e 1999).

3 Ou a descorporificação do trabalho para Bauman (2001, p. 141).

4 Essas características da metamorfoses do mundo do trabalho constituem um dos poucos pontos consensuais do debate acerca da perda ou não da centralidade do trabalho na formação social do ser humano.

5 Werneck (2000), Bracht (2003), Isayama, Stoppa e Werneck (2001), Marcellino (1983 e 1987).
6 Cf. Daolio (2004).

Referências

  •  Adorno, T. W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • Antunes, R. Os sentidos do trabalho. Campinas: Cortez. 2003.
  • Arroyo, M. G. Trabalho  Educação e teoria pedagógica. In: Frigotto, G. (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 138-165.
  • ¬¬¬__________. As relações sociais na escola e a formação do trabalhador. In: Ferreti, C.J.; Silva JR., J. R.; Oliveira, M. R. N. S. (Org.). Trabalho, formação e currículo: para onde vai a escola. São Paulo: Xamã, 1999. p. 13-41.
  • Bauman Z.. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • ¬¬¬__________. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • Bracht, V. Educação física escolar e lazer. In: WERNECK, C. L. G; ISAMAYA, H. F.: Lazer, recreação e educação física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 147-172.
  • Daolio, J. Educação física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004
  • Duarte, R. Mundo globalizado e estetizacao da vida. In: Ramos-de-Oliveira, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B.: teoria critica, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2001.
  • Isayama, H. F; STOPPA, E. A; WERNECK, C. L G. Lazer e mercado. Campinas: Papirus, 2001.
  • Marcellino, N. C. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.
  • ¬¬¬__________. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.
  • Moraes, C. E. A. Educação física, lazer e o mundo do trabalho na revista Educação Physica (1932-1945) e um contraponto possível com os jornais proletários. 2004. Monografia - Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2004.
  • Paiva, V. Introdução: virando o milênio. In: Paiva, V. O mundo em mudança: virando o milênio. Revista Contemporaneidade e Educação: revista semestral de Ciências Sociais e Educação, Ano IV, n. 6, 1999.
  • Werneck, C. Lazer, trabalho, e educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG; CELAR-DEF/UFMG, 2000.