Integra

Conheci Laércio no século passado, nem é bom lembrar a data para não parecermos velhos! O fato é que já faz muito tempo. Cruzei com ele no corredor da Unicamp e começamos a puxar um papo. Não sei bem o porquê, falei com ele que tinha encontrado umas definições bem incríveis de “athleta” nos jornais do século XIX. Ele se empolgou com o assunto e engatou em outro tema empolgante, a potencialidade dos BBS, primórdios da internet.
Ele foi o responsável por me estimular a entrar na grande rede, tendo na ocasião publicado uma nota no BBS sobre o tema que conversamos. Nessa ocasião em que inauguro minha participação no Blog do CEV, resolvi retomar esse nosso assunto e publicar o que anos depois foi o desdobramento daquele papo (esse material está num artigo que integra uma edição da revista Projeto História).
Tomara que os leitores apreciem. De toda forma, fica como agradecimento às lições do mestre Laércio e como celebração da amizade!

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    No processo de conformação do campo esportivo no Brasil, um aspecto a destacar é a circulação de termos ligados à prática e aos exercícios físicos como um todo. Vejamos como isso se refletiu nos dicionários de língua portuguesa, começando pela palavra “athleta”, que está presente já no fundante “Vocabulário português e latino” de Raphael Bluteau (publicado entre 1712 e 1728) (1)
    Nesse e nos seguintes dicionários (2) , o termo tem uma dupla conotação, literal e figuradamente ligado à ideia de luta: aquele que participa fisicamente de combates ou o que se envolve em grandes causas. Nessas obras, as mudanças se referem aos derivados “athletico” ou “athletica”, ao redor dos quais se estabelecem definições como forte, robusto e até mesmo nervoso.
    É no “Novo dicionário da língua portuguesa”, de Eduardo Faria (1850), que podemos identificar uma mudança mais denotada. Sem abandonar as ideias anteriores, mais explicitamente também se define “athleta” como “homem robusto e destro nos exercícios do corpo”.
    Essa obra merece destaque por estar claramente sintonizada com os avanços nos debates acerca das atividades físicas. Isso é claramente perceptível em outros verbetes, como “gymnastica” (“parte da higiene que trata de todos os exercícios e da influência destes sobre os animais”), e “exercício” (que definitivamente incorpora as práticas corporais na definição). O termo “educação” também menciona os cuidados com o corpo por meio de “exercícios convenientes”; a relação com a saúde é explícita .
    Essa linha de definição do verbete “athleta”, na qual o grau de atividade física é ressaltado, é ampliada no “Grande dicionário português ou Tesouro da língua portuguesa”, de Domingos Vieira (1871), e no “Dicionário contemporâneo Caldas Aulete”, de Santos Valente (1881). O que se pode dizer é que o termo se estabilizara, somente se percebendo mudanças já no século XX, quando perdeu a conotação de lutador por uma causa e passou a ser utilizado unicamente para definir o praticante de exercícios físicos, notadamente aqueles que apresentam bom desempenho em suas modalidades.
    Vejamos como os jornais mobilizaram o termo no Rio de Janeiro da metade inicial do século XIX. A primeira vez que identificamos a utilização da palavra, em 1824, foi em uma matéria sobre a necessidade de se instituir uma universidade no Brasil. “Robustos athletas” (4)  é usado como sinônimo de guerreiro. O mesmo sentido é perceptível alguns anos depois, quando se elogia Luiz Pereira Nóbrega de Souza Coutinho por seu envolvimento no percurso da independência do país: “incansável athleta nas coisas da pátria” (5) .
Notadamente ligada a fatos e personagens da política, essa foi a ideia majoritária com que o termo foi mobilizado no período, mesmo quando se aproximava de um sentido mais literal de luta física. Sobre um debate parlamentar, ironizou um leitor: “apaixonado, como sempre fui, por ver dois athletas pelejar, arrastei uma cadeira, sentei-me e prestei atenção” (6).
    O termo foi explicitamente relacionado aos exercícios físicos no artigo “Longevidade Brasileira”, publicado na Revista Médica Fluminense. Começava a ser propugnado um novo uso do corpo, e isso se refletia na valorização de novas práticas, em função da qual se recuperava um suposto passado glorioso na Antiguidade Clássica:
Os gregos faziam deste último meio uma aplicação tão feliz para o restabelecimento da saúde (...), muito cooperaram para que a útil arte da ginástica chegasse entre os antigos a um grau tão grande de perfeição. Com ela, eles não só tinham por fim aumentar as forças e formar athletas, como também desenvolver as sublimes faculdade d’alma, dando mais vigor a todos os órgãos (7)

A ideia de obrigação que caracteriza a apropriação do termo nos posicionamentos médicos vai mesmo, a princípio, em certa medida, afastá-lo dos sentidos originais que marcavam a palavra sport. Vejamos como a definem os já citados dicionários de língua portuguesa.
    No Vocabulário de Bluteau (1712-1728) não existe o termo “sport”, mas sim “desporto”, definido como “divertimento”. No dicionário de Antônio de Morais e Silva (1789), o mesmo verbete é apresentado como “recreação” (que por sua vez significa “prazer, passatempo, alívio do desgosto, do trabalho”).
    Uma pequena novidade surge no Morais e Silva de 1823: o verbete “deporte”, da mesma forma definido como divertimento. Depois disso, somente na obra de Henrique Brunswick (1882) (8) percebe-se uma relevante mudança, que aproxima o termo dos sentidos que estavam já delineados para “athleta”. Assim se considera “desporto”: “Divertimento, recreio. Qualquer exercício corporal ao ar livre (para recreio, ou demonstrar agilidade, destreza ou força); sport”.
Mesmo com essa maior proximidade entre as definições de “desporto”/sport e “athleta”, durante muitos anos sportman seria a palavra utilizada para designar não somente o praticante como qualquer um envolvido com o campo esportivo, inclusive os que organizam os eventos (atualmente chamados de dirigentes) e os assistentes (hoje denominados de torcedores) (9) .
A citação no dicionário da já socialmente consagrada palavra em inglês indica um “desvio” no antigo verbete “desporto”, que no futuro será utilizado exclusivamente para definir o objeto sport. No Brasil, mais ainda, será criado um novo termo, já registrado no “Novo dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo” (1913): “Esporte. Neologismo. Prática metódica de exercícios físicos”.
    Na verdade, devemos ter em conta que a maior parte desses dicionários citados são de origem portuguesa. Quando começaram a surgir obras dedicadas ao “português brasileiro”, os neologismos relacionados ao esporte tornaram-se mais usuais, algo que tem relação com a diferença da força do fenômeno em cada país naquela transição de séculos XIX e XX (10) .

1. Trata-se do primeiro dicionário monolíngue da língua portuguesa. Para mais informações, ver: NUNES, José Horta. Dicionários: história, leitura e produção. Revista de Letras da Universidade Católica de Brasília, v. 3, n. 1/2, dez. 2010; VERDELHO, Telmo. Dicionários portugueses, breve história. In: NUNES, José Horta, PETTER, Margarida (orgs.). História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP/Pontes, 2002, p. 15-64.
2. Dicionário de língua portuguesa, de Bernardo de Lima e Mello Bacellar (1783); Dicionário da língua portuguesa - recompilado dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, de Antonio de Moraes Silva e Raphael Bluteau (1789); Novo dicionário da língua portuguesa: composto sobre os que até o presente se tem dado ao prelo, e acrescentado de vários vocábulos extraídos dos clássicos antigos, e dos modernos de melhor nota, que se acham universalmente recebidos (1806); Dicionário da língua portuguesa recopilado dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado, de António de Morais Silva (1813); Dicionário da língua portuguesa, recopilado de todos os impressos até o presente, de António de Morais Silva (1823); Dicionário da língua portuguesa: composto, de António de Morais Silva (1831); Novo dicionário da língua portuguesa, de José da Fonseca (1831); Dicionário da língua brasileira, de Luiz Maria da Silva Pinto (1832);
3. Um debate sobre esses termos pode ser visto em: PERES, MELO, op. cit.
4. O Spectador Brasileiro, 20/9/1824, p. 4.
5. Nova Luz Brasileira, 22/10/1830, p. 1.
6. O Sete d´Abril, 4/2/1837, p. 3.
7. Revista Médica Fluminense, julho de 1839, p. 140.
8. Dicionário universal português: ilustrado.
9. O surgimento de palavras relacionada ao esporte indica um processo de racionalização das funções e definição de esferas de responsabilidades ao redor de uma prática que se estruturava.
10. Para um debate sobre essas diferenças entre Brasil e Portugal, ver: MELO, Victor Andrade de, Esporte e artes plásticas em Portugal: Amadeo de Souza-Cardoso. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, Porto, v. 10, n. 1, p. 191-199, 2010; MELO, Victor Andrade de. Que modernidade? O esporte em Os Maias (Eça de Queirós, 1888). Aletria - Revista de Estudos de Literatura, v. 22, n. 2, p. 201-217, mai-ago 2012.