Integra

 Este texto procura colocar em questão a escola, face à problemática do cotidiano e à relação teoria/prática. Desde já é importante registrar que, na realidade, a escola não existe. A escola só existe enquanto um conceito, ou seja, uma realidade pensada. Mesmo o prédio da escola não existe institucionalmente sem o conjunto de práticas de seus atores concretos: professores, alunos, funcionários, pais e responsáveis, autoridades administrativas, etc.
  O pensamento educacional construiu historicamente representações de escola que se distanciam do real funcionamento das escolas de verdade. Sabemos muito mais sobre escolas ideais do que sobre as escolas que realmente temos. Temos mais indicações sobre o que devemos fazer do que sobre o que estamos efetivamente fazendo
  Assinalamos, portanto, a centralidade educacional e política do cotidiano como referencial permanente da ação eflexão educacional. O cotidiano, entendido como um lugar praticado (De Certeau) é a chave para o entendimento das relações sociais e pedagógicas existentes na escola e também para a tomada de decisões coletivas para a superação de problemas que dificultam que a instituição escolar exerça o seu papel de ser um espaço público de potencialização cultural e emancipação política.

A ESCOLA EM QUESTÃO

 A luta pelo direito à escola se encontra como uma das mais importantes na história das lutas dos trabalhadores na busca de melhores condições de vida. Na década de 50 e início de 60, os setores populares explicitaram com maior vigor e consciência as reivindicações dos direitos ao acesso à educação e cultura.
  Desde o início do século os movimentos de trabalhadores perceberam a necessidade da escola como elemento de construção da cidadania e também como forma de se "preservar" a infância do trabalho precoce, comprometedor de uma importante etapa do desenvolvimento. Ainda hoje, faltando poucos anos para o século XXI, as leis de proteção à infância e adolescência, conquistadas na luta, não foram capazes de reverter o quadro de atraso social e educacional, pois, ainda convivemos com a vergonha de termos crianças e adolescentes impedidas de freqüentar a escola devido à necessidade de trabalhar.
  Mesmo num contexto de precarização social as famílias das classes populares insistem em afirmar o valor social da educação. Somente como último recurso, e após anos de fracasso escolar anunciado, é que os filhos das classes populares deixam de freqüentar a escola pública. A insistência dos setores populares em se manter na escola vai muito além da simples garantia de uma vaga, ela faz parte da consciência histórica de que a escola é um espaço-tempo de dignidade humana. A escola é uma instituição que preserva valores públicos e mantém viva em seu interior a esperança de uma vida mais digna e feliz.
  Os professores e cidadãos comprometidos com a luta contra a desigualdade social e a emancipação histórica das classes trabalhadoras necessitam reconhecer que a escola é um espaço de construção de esperanças coletivas, a partir do qual pode se desenvolver uma nova hegemonia política que afirme os valores sociais dos sujeitos, grupos e classes em detrimento dos interesses históricos de dominação presentes numa sociedade como a brasileira.
  Ao concordarmos com Gramsci, quando este afirma que toda hegemonia é necessariamente numa relação pedagógica, devemos entender também que as relações pedagógicas existentes na escola são elementos de um quadro hegemônico. No caso da escola pública brasileira a hegemonia dominante se expressa na arbitrariedade de valores e práticas desenvolvidos no cotidiano e também na sonegação da possibilidade de construção de uma escola pública de qualidade e comprometida com os interesses da maioria da população.
Neste sentido, apontar a importância do acesso de todos à educação escolar não significa a defesa de qualquer educação mas, sim, a afirmação de uma educação escolar qualificada para atender aos interesses emancipatórios de seus alunos.

[...]uma boa educação para as classes populares nunca poderá ser aquela que contribua para manter a injustiça social, que pregue a resignação e que apresente este mundo como o único possível. A boa escola será aquela que desperte ou estimule a consciência crítica, que não deforme a história, que não ignore os vastos espaços de realidade social, que não oculte ou desqualifique o conflito, enfim, que não reprima, que libere (TAMARIT, J. Educar o Soberano. São Paulo: Cortez, 1996).

 Efetivamente, a boa escola pública não será fruto de mirabolantes planos educacionais estratégicos. De propostas educacionais construídas de cima, e enviadas para as escolas para que estas implementem a nova e "original" reorganização curricular, para que os professores tomem contato com as "inovadoras" teorias educacionais e para que as escolas se capacitem para os "novos tempos" da informática e da mídia eletrônica.
  É preciso afirmar que nenhuma política educacional será vitoriosa se ignorar o terreno real e concreto das práticas cotidianas existentes no interior das escolas e o contexto sócio-cultural de seus alunos e professores. Ignorar a realidade cotidiana da escola pública é apostar na manutenção de uma instituição que se apresenta, para os setores populares, predominantemente de forma seletiva e excludente. Desdenhar do cotidiano é perpetuar o gradeamento dos currículos e manter o isolamento dos campos de conhecimento; é fazer da avaliação uma arma de destruição em massa, e continuar a convivência criminosa com índices de reprovação de mais de 40% nos primeiros anos de educação básica; é desconhecer que o currículo oficial é arbitrário e não é o único saber social legítimo.
  O processo de controle político existente na sociedade necessita da construção de hegemonias para se afirmar. A hegemonia mediante a educação é uma das formas deste controle.
Na valorização do cotidiano pode estar o diferencial entre transformar a escola pública numa fronteira avançada dos direitos sociais e culturais ou manter a situação na qual a escola é apenas mais um filtro e peneira da cronificação da excludência social e política.

*O COTIDIANO E A RELAÇÃO PRÁTICA/TEORIA/PRÁTICA


  A ênfase na dimensão do cotidiano não parte de uma simples iniciativa "metodológica" de abordagem da relação ensino/aprendizagem, tal como se encontra no repisado discurso de que a escola "precisa partir do cotidiano/realidade do aluno". A formulação, tal como é apresentada, deixa transparecer um percurso hierárquico que realiza a trajetória de um conhecimento simples e comum para um conhecimento mais elaborado, científico e escolar.
  Do nosso ponto de vista a defesa da centralidade do cotidiano está no reconhecimento que o conhecimento:
. é prática humana concreta, ou seja, é resultante de ações que estão carregadas de sentido e buscam resolver problemas concretos.
. é social, uma vez que é produzido no contexto de relações sociais efetivas. O sujeito do conhecimento não está isolado de seu contexto social;
. é histórico, refletindo, ao mesmo tempo, o contexto de determinadas condições históricas e o processo de acumulação de saberes da humanidade.

 Neste sentido, o conhecimento cotidiano não é apenas visto como trampolim para o atingimento de conhecimentos mais válidos. O conhecimento cotidiano é em si mesmo conhecimento válido.
  Ao afirmarmos a validade do conhecimento cotidiano buscamos ressaltar a necessidade de se combater a dualidade existente no discurso que isola a teoria da prática, e também a prática da teoria. Numa breve observação do cotidiano da maioria das escolas é possível constatar a existência de duas tendências em permanente estado de tensão. De um lado estão os práticos que enfatizam a necessidade de se buscar respostas ‘práticas’ - rápidas e objetivas - para problemas concretos do cotidiano da escola. Do outro lado, estão os ‘teóricos’ que, na opinião dos práticos, estão sempre ‘teorizando’ sobre a escola e não apresentam soluções ‘práticas’. Os teóricos, por sua vez, acusam os ´práticos´ de recusarem a reflexão teórica e buscarem saídas fáceis, do tipo ‘receita de bolo’.
  A alternativa para o referido impasse não nos parece estar numa conciliatória composição entre os dois posicionamentos. Nos termos que se colocam, o casamento entre ‘práticos’ e ‘teóricos’ é impossível, uma vez que ambos partem do equívoco de compreender o processo de conhecimento de maneira parcelar.
  Ao assumir que a teoria é superior ao conhecimento cotidiano, o partido dos teóricos constrói uma relação de hierarquização entre conhecimentos que em última análise termina por depreciar a prática. Da mesma maneira o partido dos práticos, ao abrir mão do esforço de reflexão (de refletir sobre a ação) teórica condena a prática pedagógica ao pragmatismo da ação imediata.
  A dialética entre prática e teoria está, por outro lado, no reconhecimento que o conhecimento ‘cotidiano’ está filo e ontogeneticamente na base de todo o conhecimento. O referencial da prática cotidiana é a garantia que a teoria não se esvaziará seu potencial de acessar e intervir na realidade. Da mesma forma, o valor da teoria estará na capacidade de ordenar, organizar e hierarquizar ‘objetos de conhecimento’ que não coincidem com os fatos, mas, que são o ‘concreto pensado’ (Kosik, K.).
  Neste sentido, a valorização do cotidiano não significa apenas a apreensão do imediato-empírico, das situações cotidianas imediatamente assimiláveis. O reconhecimento do cotidiano não acontece apenas pela identificação das atividades do dia-a-dia mas, fundamentalmente, pela compreensão da historicidade do real que articula os diferentes momentos da prática social. O cotidiano de alunos e professores é uma complexa rede de relações sociais que não se esgotam no interior da escola e no convívio doméstico.  Torna-se necessário reconhecer que na cidade os condicionantes históricos e culturais que estruturam essa rede não são imediatamente assimiláveis. É como afirma o mestre Paulinho da Viola: "a vida é mais do que parece".