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Se ainda estivesse vivo o querido compositor Aldir Blanc estaria batucando, junto com o parceiro João Bosco, a célebre canção “Jogador”. Trilha do filme “O Jogo da vida”, de Maurice Capovilla, inspirada no conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, essa canção descreve a vida de três amigos malandros que usam de suas habilidade na mesa de sinuca para fazer algum dinheiro e sobreviver. Claro está que na modalidade em questão não vale apenas domínio da técnica e fair play. Há que se usar de outros artifícios para levar o prêmio. Nesse mundo em que o jogo é noturno a figura do otário desponta como inerente a uma trama que é maior que a competição.

Diz a canção: "Jogador joga o jogo. Joga vida roubada, joga vinte-e-um. Joga carambola, sinuca, bilhar, joga pra espetar, pra matar, pra defesa.”

A dimensão do jogo descrita por Blanc e Bosco vai além da sinuca, do carteado ou qualquer modalidade esportiva. Coloca a vida como um grande jogo e a existência como a estratégia e a tática necessárias para viver, sem que haja certeza da vitória. E isso não é brincadeira naquele sentido que minha avó queria dizer de algo que não é sério.

O jogo, como escreveu Huizinga é um fenômeno cultural inato à humanidade, anterior mesmo à cultura. Ou seja, ser humano é jogar dentro de determinados limites de tempo e espaço. O jogo depende de regras livremente consentidas, entretanto obrigatórias. Todo esse complexo lúdico é acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria que distingue esse momento deslocado da vida cotidiana. O historiador holandês que viveu no começo do século, e morreu em um campo de concentração por se colocar contra o nazismo, defendia a possibilidade de negação da justiça, da beleza, da seriedade, até mesmo de Deus, mas, não do jogo.

Ou seja, estamos diante de uma marca estética que promove uma posição ética. É campo possível de liberdade para as potencialidades, um espaço legítimo de realização humana. 

Tanto a poesia de Blanc, como a construção erudita de Huizinga, anunciam que a vida é jogo, uma brincadeira muito séria. E tanto a excelência, como a trapaça, estão ali presentes, não como regra, mas como possibilidade.

Esporte é jogo. Política é jogo. Vida em sociedade é jogo.

A eleição estadunidense pode ser compreendida por essa ótica. Jogo democrático de regras complexas, construídas há mais de dois séculos, a escolha do mandatário da grande potência ocidental é acompanhada proximamente por doutos e otários. Entretanto, como na partida do campinho de terra batida das várzeas que existem cada vez menos, parece fazer crer que o dono da bola termina o jogo quando ele se retira com a alma da contenda sob o braço. Nem mesmo a torcida violenta de grupos que promovem uma interpretação unilateral da regra é suficiente para burlar o jogo.

Negação do resultado, mentiras e manipulação são vistas com descrença por quem acredita e defende a regra como uma construção legítima, desde que acordada entre os participantes. Sem ingenuidade, mas com muita ironia, a disputa segue com a incorporação de elementos do mundo contemporâneo como a informação em tempo real, o que dificulta sobremaneira trapaças já praticadas no passado. 

No campo da política algumas disputas são vencidas na prorrogação com placares apertados, depois da contestação do comportamento antidesportivo dos participantes. Ainda assim, o que vale é o que está determinado pela regra. E, como cantou o poeta “e não chia que um bom jogador joga o jogo”.