Integra

26-10-2012

Desde o meu primeiro contato com a Austrália, em uma conferência em Canberra (Capital Nacional,a Brasilia deles) nos idos de 2007, ouvi falar dos aborígenes. O diretor da conferência, no início da sua fala de abertura do evento, deu as boas vindas aos participantes `a terra que um dia pertenceu a uma nação aborígene, e reconheceu que eles são os donos originais daquela terra.

Isto é algo comum na Austrália na abertura de eventos, onde quer que seja, desde pequenas cerimônias em uma escola, até grandes congressos: o ‘acknowledgment’ dos verdadeiros ‘donos’ da terra onde estamos nos reunindo. Nesta conferência, aliás, houve um feroz debate entre duas posições completamente antagônicas em respeito aos aborígenes: de um lado, um professor defendia que, desde os Jogos de Sydney, e por conta da Cathy Freeman, os aborígenes estavam integrados à sociedade australiana; de outro lado, um especialista em tópicos indígenas e direitos humanos, dizia que aquilo era uma ‘estupidez’, que os problemas e o sofrimento aborígenes continuavam enormes, onde quer quer que se olhasse no mapa australiano.

Na sequência deste congresso, rumei para Melbourne, onde fui professor visitante da Victoria University por um período. O meu mentor na ocasião, Chris Hallinan, havia produzido diversas pesquisas sobre a participação aborígene no esporte, denunciando traços de preconceito, discriminação e racismo (1) .
A questão aborígene aqui é muito delicada e séria. O roteiro, repleto de colonizadores europeus, é conhecido dos brasileiros: liderados pelo capitão James Cook (o Cabral deles), os ingleses chegam na Austrália em 1770 e começam a colonizá-la; mas os aborígenes já estavam aqui…há pelo menos 40.000 anos… Enfim, dizimados, expulsos das terras, guerreando e sendo mortos pelos ingleses, os aborígenes australianos (que se dividem em dezenas de nações pelo país) forma resistindo como puderam…Entre 1900 e 1972, durante a política oficial conhecida como “Austrália Branca” (White Australia), cerca de 30.000 crianças aborígenes foram ‘removidas’ (sic) de suas famílias pela igreja e por agências governamentais para serem criadas por famílias brancas… Elas são conhecidas hoje em dia como as “gerações roubadas” e o primeiro ministro australiano( à época Kevin Rudd), em 2008, emitiu um pedido de desculpas oficial, direto do Parlamento australiano (2) .

Por aí pode-se inferir o quanto a questão aborígene seja delicada por aqui – uma questão muito séria em termos de direitos humanos. Há diversas agências governamentais e projetos educativos visando incluir crianças e jovens aborígenes em escolas, programas educativos, esportivos, etc. Na universidade onde leciono, há um departamento exclusivo para lidar com estudantes aborígenes. Eu mesmo fui convidado para dar aulas para aqueles que pleiteiam o curso de formação de professor primário neste departamento – infelizmente ainda não consegui tempo,mas tenho interesse em um dia lecionar lá. Todas universidades possuem departamentos de estudos aborígenes ou indígenas. Há agências para lidar a saúde das populações indígenas, cujos índices estão abaixo das médias nacionais. Há políticas compensatórias para admissão de aborígenes em empregos públicos, universidades e outras. Estuda-se a história, os costumes e a sociedade aborígenes desde os primeiros anos da escolarização por aqui.

Há atletas aborígenes que participaram e continuam participando nos mais elevados patamares competitivos – talvez a mais famosa no Brasil seja a Cathy Freeman – a sua roupa, a sua postura, o seu astral na final Olímpica dos 400 metros nos Jogos de Sydney, ganhando o ouro e desfilando com as bandeiras da nação indígena e da australiana – é um fato realmente inesquecível (3). Aliás, os Jogos de Sydney foram marcados e precedidos por diversos atos de solidariedade aos aborígenes (4) .
Anualmente, no dia 26 de maio, celebra-se o ‘National Sorry Day’; instituído em 1998, o’Dia Nacional das Desculpas’ é um dia para se refletir na enorme discriminação do passado e em como se ajudar a incluir os aborígenes na sociedade atual.

Mas como eu disse,tudo o que circunda a questão aborígene por aqui é cercado de muito cuidado. No comitê de ética em pesquisa humana do qual participo, na universidade, todas pesquisas são revisadas com extremo rigor – mas pesquisas com aborígenes são revisadas com uma meticulosidade extrema, dada a vulnerabilidade desta população.
Não estou dizendo que tudo são mil maravilhas. Ao contrário, os aborígenes sentem o efeito de uma perseguição e discriminação bicentenária. Foram massacrados, humilhados, assassinados, tiveram suas terras e crianças roubadas. Um absurdo, um genocídio, um atentado aos direitos humanos básicos destes povos. Aborígenes em geral tem características étnicas próprias – eu consigo reconhecer algumas, mas não muitas; há aqueles que tem peles bem escura, um marrom quase preto, entre outras tonalidades que chegam a um “mulato” bem clarinho. Olhos bem arredondados ou amendoados, conheci crianças aborígenes lindas! E bem sapecas… Assim como conheci mulheres aborígenes de olhos azuis… Uma mistura bem interessante…Bonitas demais!

Mas como dizia, apesar de todo o discurso e cuidado oficial – projetos, recursos, pesquisas – aborígenes australianos enfrentam uma série de problemas com educação, trabalho, saúde – e discriminação. Em um país extremamente multicultural, que aliás tem como política oficial o multiculturalismo (a ‘Austrália Branca’ acabou! felizmente) ainda existe racismo contra aborígenes. Eu mesmo testemunhei alguns eventos notáveis.

Em agosto de 2011, eu estava em Cairns, ao norte de Queensland (isso mesmo, onde fica a Grande Barreira de Corais!) em uma conferência sobre pesquisa qualitativa. Encontrei então uma colega que havia lecionado durante 12 anos em uma comunidade aborígene remota, longe da ‘civilização – há muitas pessoas que dedicam parte de suas vidas para ajudar estas comunidades em educação, saúde, recreação,esportes,etc. Ela me comentou que havia uma exposição de arte aborígene (há muitos grupos de arte indígena em Queensland) em uma galeria próxima ao hotel onde estávamos, ela insistiu para que eu fosse, ela tinha certeza que eu iria gostar.

No sábado de manhã, “cabulei” o congresso e fui ver a exposição. O nome da exposição era ‘The Black See’ (o olhar negro). The Black See também faz um jogo de palavras e sons com o ‘Black Sea’ (o mar negro) – seria o ‘olhar negro’ aborígene tão profundo e misterioso quanto o mar? Realmente, muito marcante a mostra, obras sobre o período da ‘White Australia’, sobre segregação e discriminação aborígene… No meio do salão, entretanto, havia duas obras principais: uma pintura e uma instalação, ambas falando de racismo no futebol australiano (não o ‘nosso’ futebol, mas o ‘aussie rules’ , o esporte mais profissionalizado da Austrália (5)): as obras retratavam um episódio no qual um técnico de um time da liga profissional (AFL) de ‘Australian rules football’ havia ofendido um atleta aborígene. Para ofendê-lo, ele não usou um palavrão básico, ele colocou um ‘adjetivo’ antes – deixando claro o racismo latente. O famoso técnico gritou algo como “PRETO FDP!”. Eu conheço de leve o drama. Nos meus anos de técnico de handebol na ‘A Hebraica’, muitas vezes fomos ofendidos por adversários, que não se contentavam em nos xingar de bichas, de merda ou de outra coisa: sempre tinham que colocar mais peso no adjetivo que vinha antes: ‘Seus JUDEUS de merda, ou fdp’ etc. Não sabíamos o que doía mais. Uops, de fato, sabíamos. Ser um fdp ou um merda é uma coisa; ser um ‘judeu de merda’ é outra – sinceramente, mais humilhante; poucos irão brigar ao serem chamados de ‘fdp’; TODOS irão brigar ao serem alcunhados como ‘judeus fdp’. Pretos, chineses, aborígenes…devem sentir algo semelhante.

Naquele sábado, em meio ao impacto das obras do ‘Black See’, outro fato me pegou de surpresa: havia um debate de abertura da mostra, um diálogo entre alguns membros do coletivo de artistas aborígenes responsáveis pela exposição (6), com um jornalista aborígene, ali no fundo da galeria. Aproveitando o embalo, lá fui eu.
Cerca de 50 pessoas em uma sala, e em uma mesa três jovens aborígenes: uma moça ‘quase’branca, com não mais de 30 anos, e dois rapazes da mesma faixa etária.
O jornalista começou a abrir o debate, mas a moça já pediu a palavra e começou, em um discurso inflamado e radical, a denunciar a sociedade australiana como uma sociedade “hipócrita e racista”. Ela falava muito, até que um senhor na plateia pediu a palavra. Beirando os 90 anos, este senhor levantou-se com muita dificuldade. Fez-se um profundo silêncio na sala. Então, aquele homem aborígene, muito digno, preto com cabelos brancos encaracolados, falou apenas algumas palavras: “Eu vim aqui para ver homens aborígenes falarem de suas obras e de suas ideias. Não para ouvir esta moça branca”. Dito isto, se retirou claudicante, apoiado em seu andador. A audiência se manteve em silêncio, até que ele se retirasse, e o debate continuou, acirrado, com a jovem artista reclamando que era assim que a sociedade racista dividia os aborígenes e sua luta,etc.

Tudo isso me voltou à cabeça ao me tornar ciente da horrível situação dos índios Guarani Kaiova no Mato Grosso do Sul. Ao ler a carta deles(7) , e a matéria da Eliane Brum (8) , não consegui acreditar. Acho que ler os documentos vale muito mais do que eu comentá-los aqui. Com certeza existem informações conflitantes (9) sobre as quais não tenho como avaliar ou me informar inteiramente a distancia . Talvez haja uma confusão interpretativa(10) . Mas o que eu gostaria de saber é quando o absurdo e gigantesco gap em relação a estes primeiros brasileiros será sanado…

Enfim, a pergunta que fica mesmo – já que todas as considerações sobre dignidade humana e direitos humanos não parecem bastar quando se trata dos índios no Brasil – é uma só: agora que o mundo está de olho no Brasil, com todos estes mega eventos…É este o ‘legado’?
A morte dos Guaranis Kaiovas será também a nossa. A luta dos Guaranis Kaiovas deveria ser a nossa.

(PS – Obrigadão  Laercio por ceder este espaço aqui no CEV…Espero que eu use com juizo…)

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Notas

[1] Hallinan, C. J., Bruce, T., & Coram, S. (1999). UP FRONT AND BEYOND THE CENTRE LINE Australian Aborigines in Elite Australian Rules Football. International Review for the Sociology of Sport, 34(4), 369-383.http://vuir.vu.edu.au/351/1/Hallinan_Bruce_Coram_AFL_Indigenous_Football.pdf

[2] “For the pain, suffering and hurt of these Stolen Generations, their descendants and for their families left behind, we say sorry,to the mothers and fathers, the brothers and sisters, for the breaking up of families and communities, we say sorry.”

[3] http://www.youtube.com/watch?v=oeXpoRIvDPw

[4] Houve tambem muitos atos contrarios e resistencia por partes de comunidades excluidas, verdade tem que ser dita.

[5] http://historiadoesporte.wordpress.com/2012/04/23/o-nome-de-um-bilhao-de-dolares-ou-a-guerra-do-futebol-por-jorge-knijnik-1/

[6] ProppaNOW

[7] http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=6553

[1] http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/10/decretem-nossa-extincao-e-nos-enterrem-aqui.html

[8] http://www.brasildefato.com.br/node/11000

[9] http://www.dw.de/apelo-dos-guarani-kaiow%C3%A1-ecoa-na-comunidade-internacional/a-16329642

[10] http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/24/cimi-divulga-nota-negando-suicidio-coletivo-de-kaiowas-e-guaranis-em-mato-grosso-do-sul.htm

Por Jorge Knijnik
em 26-10-2012, às 16:33

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Comentários

Caríssimo Jorge, independentemente do seu novo nome adotado, seja bem-vindo à Sociedade dos Blogueiros da Informação Livre, Irrestrita e Global. Espero que seu blog seja um sucesso – assim como está sendo sua carreira – e que nós, leitores, possamos aprender bastante dos seus vastos conhecimentos. Um abração, Julio

Por Julio E. Bahr
em 26-10-2012, às 19:53.

É Jorge, me faço a mesma pergunta: até quando??
Abraço!

Por Mildred
em 27-10-2012, às 1:16.

Posso vigiar seu carro, engraxar seu sapato?

Por Jorge Knijnik
em 28-10-2012, às 0:43.

RArissimo Julio, elogios e apoios provenientes de um blogueiro premiado nacionalmente sao um estimulo formidavel!Obrigado, e aquele abraco!

Por Jorge Knijnik
em 28-10-2012, às 0:45.

Jorge,

Não deixo nunca de me admirar com seu estilo poderoso e sensibilidade aguda.

Por Otávio
em 29-10-2012, às 3:31.

Cheers mate!

Por Jorge Knijnik
em 29-10-2012, às 7:44.