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A presente comunicação tem como um dos objetivos, contribuir para a construção do conhecimento histórico da Educação Física no século XIX, mais propriamente, no que cabe aos colégios do município da Corte do Rio de Janeiro. Nessa época, a produção do conhecimento da área ainda muito incipiente e se dava a partir das publicações de teses defendidas pelos médicos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os médicos aqui, agiam na condição de intelectuais da construção do Estado Imperial, e passavam a determinar através dos seus conhecimentos, os caminhos que deveriam ser trilhados nos colégios da Corte.


 Sob forte influência dos médicos higienistas franceses, o Brasil passou a ter seus primeiros estudos sistematizados, via Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que havia sido criada no ano de 1835. Os médicos que aqui se formavam, apresentavam e defendiam suas teses publicamente, tratando de diversos assuntos da ordem higiênica, tão imprescindíveis para a organização do Estado Imperial.

 Logo, os médicos escreviam a respeito da hereditariedade, da organização e localização dos cemitérios e dos colégios, do tipo de alimentação e vestimenta dos alunos, sobre a localização das residências e prescrição de exercícios, como ainda sobre assuntos pertinentes à religião, à moral e à literatura. Enfim, os médicos eram um dos principais organizadores da estrutura social do Estado Imperial.


 Por volta dos anos 1850, muitos foram os estudos médicos que demonstravam íntima preocupação com a organização escolar. Os médicos apresentavam algumas categorias de análise de estudo, sob a influência de higienistas franceses no que competia à organização do espaço escolar no município da Corte. Os médicos por intermédio de algumas categorias apresentavam um modelo higiênico de ensino que compreendia: 1) Circunfusa - preocupava com a topografia e localização dos colégios no município da Corte; 2) Applicata - preocupava-se com o tipo de vestimenta dos alunos; 3) Ingesta - determinava os tipos de alimentos que deveriam ser consumidos pelos alunos, 4) Gesta - prescrevia os tipos de atividades físicas que os alunos deveriam se submeter; 5) Excreta - estudavam a eliminação dos resíduos derivados da alimentação; 6) Percepta - determinava os sentidos religiosos, morais e literários que deveriam ser trabalhados nos colégios.


 A não existência de escolas destinadas à formação de professores de Educação Física, e o próprio termo Educação Física representar conotação diferente dos dias atuais, levam-nos a entender os médicos higienistas do Império, como os intelectuais hegemônicos da Educação Física brasileira no século XIX.


 Os médicos tornaram-se a esperança de todos na organização de uma sociedade mais salubre, utilizavam preceitos higiênicos para tratar de assuntos da ordem física, moral, intelectual, sexual, etc. Tudo indica, que por meio deles, os indivíduos aguçaram o cultivo pela saúde, eliminando aos poucos os antigos hábitos da organização colonial.


 Breve contextualização da educação física e da gesta


 Os intelectuais do Estado Imperial, através de suas teses, compreendiam que cabia à Educação Física o asseio com a educação do corpo físico. Logo, o trato higiênico do corpo dos alunos de modo que os mesmos andassem sempre com unhas e cabelos limpos e cortados, a orientação pela não utilização de roupas que comprimissem o corpo e o uso de produtos (cosméticos) sem orientação médica, eram funções da Educação Física que correspondiam à manutenção da vida e o crescimento do indivíduo. Preocupações com a qualidade sangüínea, com o sistema nervoso, linfático, as raças, hereditariedade, casamentos, a qualidade do ar e da água, estavam presentes na ordem do dia da Educação Física.


 Já a Gesta, presente em diversos estudos médicos, correspondia aos tipos de atividades físicas que deveriam ser ministradas nas escolas do município da Corte, tais como: ginástica moderada e intensiva, exercícios de phonação, saltos, carreira, dança, natação esgrima e até mesmo o sono, correspondiam às atividades mais indicadas pelos médicos nos anos 1850. Estas atividades deveriam ainda ser prescritas, com o propósito de afastar os alunos da prática do onanismo.


 A Gesta era hegemonicamente defendida sob uma suposta neutralidade, livre de qualquer juízo de valor e de qualquer ideologia, sempre caminhando ao lado das regras morais e dos dogmas católicos que eram hegemônicos na formação dos alunos nesta época.


 A função do intelectual


 Em relação à construção do espaço escolar, Gondra (1998, p. 40), afirma-nos que "a medicina impôs um determinado projeto para a educação que, resumidamente, atendia a dois princípios: o da localização das ‘casas de educação’ e o da sua organização interna". Assim sendo, os médicos enquanto intelectuais do Estado Imperial atuavam na condição de criador, mantenedor, intérprete, bem como transformador das relações sociais presentes no século XIX.


 Apesar de reconhecer os médicos como intelectuais do Estado Imperial, creio que uma boa definição de intelectual seja apresentada e defendida por Corbisier (1980, p. 18), ou seja, "intelectual é todo homem pelo simples de ser humano, quer dizer, inteligente". Logo, vejo que todo e qualquer operário, professor, técnico ou cientista pode atuar na condição de intelectual. No entanto, faz-se necessário à tomada de consciência do contexto sócio-histórico como um todo, bem como das contradições das classes sociais que a caracterizam.

 É justamente essa tomada de consciência política, que os possibilita a atuar na condição de intelectuais. A consciência política é uma das condições sinequanon para a atuação do intelectual.


 Dessa forma, para Corbisier (1980, p. 26) "é necessária a tomada de consciência, da sociedade como um todo, e das contradições de classe que a caracterizam. Essa tomada de consciência política os converte em intelectuais". Ainda no que tange à tomada de consciência, vale ressaltar que não há um momento pré-determinado para que isso ocorra. Vejo que essa tomada de consciência está mais propícia a manifestar-se em determinado momento de transição ou crise social à qual os homens estejam inseridos. Corbisier (1980, p. 27) adverte-nos novamente, e afirma que existem três momentos que irão anteceder a tomada de consciência, sendo assim discriminados:


 O primeiro momento é o trabalho alienado e da consciência por parte do trabalhador. O segundo momento é o da reflexão, tomada de consciência. O trabalho continua alienado, o trabalhador não trabalha para si, mais para outrem. Toma consciência dessa alienação. A superação ou desalienação é parcial, meramente teórica. O terceiro momento é o da práxis, luta revolucionária. O trabalhador, teoricamente desalienado, empreende, praticamente, a luta contra a alienação.


 Nessa lógica, vejo que tanto os professores de Educação Física hoje como os médicos do Brasil Império em suas teses, atuam na condição de intelectuais. Hoje, temos um grande número de professores de Educação Física que a partir da sua prática (aulas, cursos, congressos, palestras, livros, artigos, etc) procuram intervir, construir, reconstruir e até mesmo legitimar a presente organização educacional, social e econômica. Da mesma forma, os médicos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nos anos 1850, procuravam intervir na organização econômica, educacional e social do Estado Imperial, com a intenção de fertilizar espaços de ocupação da ordem burguesa que começava a se instalar.


 Conclusão


 A intelligentsia da Educação Física no século XIX elaborava suas idéias e as materializa, principalmente, por intermédio das teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tratando de assuntos que extrapolavam a ordem médica. Esses intelectuais entendiam a Gesta enquanto conhecimento inserido na área biomédica, e escreviam desde a prescrição de atividades físicas à falta de saneamento básico. No intuito desta comprovação, Gondra (1998, p.40) , adverte-nos que "a medicina impôs um determinado projeto para a educação que, resumidamente, atendia dois princípios: o da localização das ‘casas de educação’ e o da sua organização interna". Tudo leva a crer que a relação da Educação Física com o conhecimento biológico funde-se neste contexto.


 Para os intelectuais do século XIX, a Educação Física, significava a educação do corpo físico. Esta educação deveria corresponder ao trato higiênico dos alunos com seu corpo, de modo que o mesmo estivesse sempre limpo e sadio.


 Já a Gesta, que correspondia às atividades físicas a serem realizadas pelos alunos, deveriam contribuir na formação de um jovem robusto, viril e livre das endemias e epidemias que assolavam o Estado Imperial brasileiro.


 Referências bibliográficas


 Coelho, Edmundo Campos. As profissões imperiais. São Paulo: Record, 1999.
Corbisier, Roland Albuquerque. Intelectuais e revolução. Rio de Janeiro: avenir, 1980.
___________. Filosofia política e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Costa, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Gondra, José Gonçalves. Artes de civilizar: medicina, higiene, e educação escolar na Corte Imperial. 2000. (Tese de doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
___________. Conformando o discurso pedagógico: a contribuição da medicina. In: Faria Filho, Luciano M. (Org). Educação Modernidade e Civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998
Gramsci, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.