Resumo

Quando resolvi estudar psicologia imaginava atuar com pessoas e situações sociais que não necessariamente guardassem proximidade com a loucura. Digo isso porque nos anos de faculdade, e principalmente no ano em que estudamos psicopatologia dentro de um hospital psiquiátrico, tive colegas que declaravam em verso e prosa sua paixão por essa disciplina. Convivi proximamente com pessoas com sofrimento mental e sabia que aquela não era minha praia. Ainda assim os semestres de psicopato me ajudaram a ter uma ideia do que são as doenças mentais e principalmente como a linha que separa sanidade da loucura é tênue. O normal e o patológico estão intimamente ligados ao contexto e ao poder que exercem aqueles que escrevem as teorias e os manuais sobre o normal, seja o social ou o psíquico. Mas, é inegável que uma das principais características de qualquer psicopatologia é a fuga de um padrão quase sempre associado a uma cisão com o mundo, a chamada realidade compartilhada pela maioria das pessoas.

Muito bem. Não pretendo aqui divagar sobre conceitos e polêmicas que envolvem as doenças mentais, mas hoje, lendo novamente o jornal, não pude deixar de lançar mão desses conhecimentos para tentar entender o que passa com o esporte brasileiro. Não digo que ele já esteja prestes a ser colocado no pinel, mas não tenho dúvidas que parte dele é delirante.

Jaspers (1956) definiu delírio como o juízo patologicamente falso da realidade que se apresenta com três características: como uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável; é incompreensível para um individuo normal, assim como é impossível submeter-se a essas influências seja pela argumentação ou pela experiência; e ainda a impossibilidade de conteúdo razoável. Ou seja, no delírio a convicção é sempre inabalável, é impossível demover o sujeito delirante do conteúdo do pensamento que ele apresenta, expõe ou defende, independentemente do argumento que se utilize. Não bastasse isso a lógica que opera nos delirantes não se aplica aos demais membros de um grupo social. Ainda dentro dessa linha de argumentação é possível entender que o ser delirante está tão profundamente mergulhado nesse mundo-a-parte criado por ele, que ele próprio se desorganiza o que o leva a um afastamento do mundo. Não é à toa que ao me referir ao delírio inevitavelmente esbarro na esquizofrenia, doença mental caracterizada pela estranheza social em função da dificuldade de se operar pelas regras e o mundo socialmente compartilhado. Ou seja, os delírios podem levar a uma interpretação distorcida da realidade percebida que surge lentamente, o que leva as pessoas próximas a não perceberem essa patologia ou demorarem muito até concluir que aquilo é doença e não apenas uma excentricidade ou coisa assim, uma vez que as ideias produzidas por essas pessoas compõem um sistema altamente organizado e estruturado. Um dos delírios comumente conhecidos é o delírio de grandeza, um subtipo de transtorno delirante persistente, onde a pessoa é convencida de possuir relações com pessoas famosas ou poderosas, ou ainda, ter talentos especiais, fortuna ou dom incomum.

Pronto. E por aqui paramos com esse delírio cognitivo para voltar ao ponto em que ele foi desencadeado.

Leio nessa manhã de segunda-feira, 24 de fevereiro, o balanço da participação brasileira nos Jogos Olímpicos de Inverno. Não fosse eu cidadã desse país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza pediria para o bonde parar para eu descer porque parece que as coisas vão ladeira abaixo e sem freio. Não me julgo muito fora da casinha a ponto de não entender o que leio, nem tampouco sou tomada pela paranoia delirante daqueles que querem que o esporte deixe de existir porque nele habitam todos os demônios contemporâneos que vão da corrupção à exclusão social. Pertenço ao grupo dos que defendem o esporte, que enxergam nele a possibilidade de transformação social e um palco para o exercício da estética do movimento habilidoso assim como acontece na música, na dança, nas artes plásticas. Faço, porém esse exercício de forma atuante, da mesma forma que o faço quando vou ao teatro, a uma galeria, museu ou qualquer espaço onde manifestações artísticas acontecem.

A diferença do esporte para outras manifestações artísticas e culturais é a competição, ou seja, em havendo mais de uma pessoa envolvida o leitmotive dessa ação humana é a busca da primeira colocação. Embora já tenha escrito sobre isso em outros textos, nunca é demais enfatizar que isso não significa buscar o resultado a qualquer preço, fazendo uso de qualquer expediente. A excelência é a razão de ser de todo atleta educado para ser atleta. Isso significa que esse ser prodigioso, capaz de feitos excepcionais não descansa, não se contenta com qualquer resultado.

E então, vejo no jornal que dos 13 atletas que foram a Sochi e competiram em 14 provas 4 ficaram na última colocação, 5 ficaram entre os 5 últimos e os demais não tiveram colocações que justificassem o balanço positivo feito pelos dirigentes. Daí a minha impressão de estar lendo depoimentos delirantes! O que justificaria de fato o entendimento de uma avaliação dessas? Como gozo de boa sanidade (e já passei por muitos testes psicológicos na vida) sou levada a crer que querem me ludibriar fazendo crer que a máxima do Olimpismo – o importante é participar e não ganhar – valeu sempre acima de tudo. Será que querem que eu seja ingênua, desprovida de bom senso ou senil?

Nós que estamos envolvidos com o esporte até o último neurônio sabemos o que significa políticas públicas para o esporte, massificação, iniciação esportiva, especialização, e também o que é esporte escolar, de participação e de alto rendimento, para não esquecer da caracterização proposta pelo Prof. Tubino, presente em nossa Constituição Federal, que levou o esporte à condição de um direito de todo cidadão. Vivemos ao longo desses muitos anos que o Século XX teve (porque ao que tudo indica foi muito mais do que 100…) discutindo e estabelecendo estratégias para o desenvolvimento do esporte no Brasil e, claro, consequentemente, a formação de atletas olímpicos capazes de representar o país nos grandes eventos esportivos internacionais, vitrine dessas políticas ou da falta delas.

Sejamos minimamente lúcidos e razoáveis e minha tentativa vem no sentido de contribuir com isso analisando as mais de 1.200 entrevistas que já fiz com atletas olímpicos de todos os tempos. Diante da histórica precariedade de recursos materiais e humanos que marcam a história do esporte olímpico brasileiro ainda foi possível conquistar a incrível marca de 109 medalhas (afinal eu sempre conto a honrosa condecoração de Vanderlei Cordeiro de Lima com a medalha de fair play Pierre de Coubertin, distinção pra lá de rara). Muitas, inúmeras dessas medalhas são frutos de projetos, determinação e empenhos individuais. E isso foi possível porque, de alguma forma, a prática da modalidade ocorreu em função das condições ambientais que geraram um contato quase que natural com o esporte. Alguma novidade? Claro que não. Os canoístas brasileiros, quase todos, tiveram contato com um rio que se não ficava no quintal de suas casas estava a poucos metros de distância. Muitos dos iatistas moravam próximos a represas ou mar e seguiam de perto o que parentes e amigos também faziam, e assim tornou-se uma das modalidades mais medalhadas de nossa história. Sem contar, óbvio, o atletismo, que basta o corpo e um espaço para iniciar sua prática e graças à disposição heroica de incontáveis homens e mulheres notáveis desse país chegaram a produzir talentos raros para a história do esporte.

Diferentemente das crianças dos países onde o inverno é marcado pelo branco e frio da neve e do gelo e que têm suas brincadeiras envolvidas com trenós, patins, esquis e outros apetrechos as nossas brincam com terra e água (a menos que sejam brasileiros nascidos e criados nesses lugares frios). Isso quer dizer que para brasileiros nascidos e crescidos no Brasil uma prática posterior em neve ou gelo os obrigará a desenvolver um repertório motor para assimilar essas atividades tão distintas das nossas. Isso é um dado objetivo e, portanto fácil de ser utilizado no entendimento do resultado brasileiro em Sochi! Por que então investir o precioso dinheiro do esporte brasileiro em aventuras como essas? Nada contra brasileiros que vivem fora ou têm contato com a neve desde pequenos participar disso. Mas, não à custa de um dinheiro tão precioso no desenvolvimento de projetos que podem efetivamente dar as condiçõesae inúmeras crianças e jovens de praticar um esporte que pode leva-los a ser atletas e exercer sua excelência, promovendo a razão de ser do esporte.

Espero que propostas delirantes não levem ao convencimento de que assim que formos uma nação desenvolvida teremos neve no natal, como profetizou Cacá Diegues em Bye bye Brasil, ou pior ainda, que leve a uma epidemia de falta de visão com todos os seus horrores conforme José Saramago profetizou em Ensaio sobre a Cegueira.

Jaspers, K. Genio y locura : ensayo de análisis patográfico comparativo sobre Strindberg, Van Gogh, Swedenborg, Hölderlin. Madrid: Aguilar, 1956.