Resumo

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Integra

Minhas primeiras memórias olímpicas remontam aos Jogos de Montreal quando não despreguei os olhos da televisão encantada com a magia de Nadia Comanecci. Naquela época eu era praticante de ginástica na escola, muito embora também já jogasse voleibol.

Lembro também de cenas dos Jogos de Munique, mais especificamente do atentado à Vila Olímpica, homens encapuzados, tensão, mortes. Como aqueles também eram tempos sombrios no Brasil, não sei distinguir se na minha memória ficou registrado apenas o atentado terrorista ou se aquilo era uma manifestação de todo o medo que sentia pelas coisas que aconteciam aqui. Nada como estudar a memória para agora ter isso mais claro.

Não lembro nada dos Jogos de 1968 no México. Eu só tina 6 anos, a TV de casa era em preto e branco e ninguém era aficionado o bastante para acompanhar jogos durante o dia. Faço essa volta no tempo para tentar lembrar qual é a minha primeira lembrança sobre doping e, inevitavelmente, chego em 1988 e Ben Johnson. Faço esse exercício sempre que deparo com o tema. Muito embora já tenha lido bastante sobre isso, e agora ouço o depoimento de vários atletas que conviveram, principalmente nas piscinas e nas pistas, com aqueles que fizeram uso de substâncias ergogênicas, ainda tento entender quais os caminhos que essa questão trilha.

Ontem, 02 de maio de 2012, em editorial da Folha de São Paulo, Helio Schwartsman discutiu a questão do passaporte biológico, registro eletrônico dos parâmetros biológicos que cada atleta profissional passou a ter para regular sua vida. Essa política foi instituída para coibir o uso de substâncias dopantes, que ajudam o atleta a alcançar bons resultados, a vitória, os prêmios, os patrocínios, enfim, as razões maiores do que parece ter se transformado o esporte no mundo contemporâneo, muito embora, no passado, as coisas não tenham sido bem assim. Cagigal, um grande filósofo do esporte, conta que o termo doping (drogado) começou a ser usado nas corridas de cavalos, primeiro esporte em que se utilizou fármaco clandestinamente para conseguir que um determinado cavalo corresse mais lento e perdesse. Hoje este termo designa a ingestão de substâncias usadas para conseguir justamente o contrário: tentar vencer. E se a proposta do esporte passa a ser a vitória a qualquer preço é de se esperar que qualquer meio justifique esse fim. Uma visão que tem prevalecido no esporte é a de que as metas dos atletas se concentram na competição e na conquista de marcas sempre superiores. Para tanto é preciso aprimorar cada vez mais o corpo deste individuo já excepcional para conseguir estes fins. Quando um atleta tem determinação por vencer a qualquer preço e a instituição e equipe que o cercam compartilham desse espírito, alguns excessos podem ser cometidos, fazendo com que valores éticos sejam preteridos. Assim, a auto-manipulação hormonal mostra-se como um meio eficaz para a superação dos obstáculos que se apresenta. É o que aponta do texto da FSP.

Diante da dificuldade de detectar antecipadamente as substâncias ou estratégias outras que aumentam o rendimento a atitude das autoridades esportivas caminha para a repressão máxima, a fim de punir ou mesmo banir do esporte aqueles que quebrarem as regras. Se até aqui uma amostra de urina ou de sangue era suficiente para gerar uma contraprova que poderia colocar o atleta no banco dos réus, agora as coisas caminham por outras vias.

O ideia do passaporte biológico é destituir o panóptico do controle anti-doping referendado até aqui pelas instituições esportivas para instituir um grande irmão mais poderoso: ele fará o controle longitudinal da vida do atleta denunciando qualquer alteração em seu perfil hematológico ou metabólico que possa sugerir alteração dos parâmetros apontados como normais em algum momento de sua vida. Espera-se com isso coibir, por exemplo, a remodificação genética, um dos grandes temores que ronda piscinas, pistas, quadras, ginásios e campos, favorecendo resultados.

Muito bem. Entendo que essa discussão deve ser feita sem hipocrisia considerando todos os agentes envolvidos nela, superando as questões apenas morais, alcançando a ética que norteia não apenas a prática esportiva, mas principalmente a competição. O esporte em seus primórdios era o campo privilegiado da contenda justa, um terreno metafórico para as disputas que levavam a morte, que viu as regras serem criadas com o firme propósito de garantir a igualdade de direito entre os competidores. Isso fazia dessa atividade humana uma das mais democráticas, afinal, todos eram iguais diante da regra.
Com o fim do amadorismo, o esporte converteu-se em um meio de vida, uma atividade profissional, alterando radicalmente alguns de seus princípios. Agora homens e mulheres com habilidades fora da média são altamente remunerados para cumprir determinadas atuações. Os atletas de alto nível, igual a outros profissionais destacados, permanecem em uma luta constante pela primeira posição. E para isso precisam de um corpo excepcional, perfeito, fora da média, cujo prazo de validade é cada vez mais curto em função dos altos níveis de exigência de treinamentos e competição.

Entendo que a lógica que prevalece no esporte contemporâneo é paradoxal na medida em que imputa ao atleta a responsabilidade pela manutenção de um corpo perfeito e fora da média para alcançar resultados cada vez mais improváveis a corpos comuns, absolutamente humanos. Por outro lado, espera-se desses super-humanos, heróis esportivos, atuações cada vez mais incomuns, levando-os a se sujeitarem a quaisquer métodos, técnicas ou estratégias que proporcionem esse resultado. Como ratos de laboratórios, submetem-se ao “novo”, ao “inédito”, ao “indescritível” em busca daquele centésimo de segundo que pode leva-los ao pódio ou ao recorde.

Mas não é justamente essa a lógica do esporte? Pois é. Eu responderia que, em princípio, sim. Mas a partir daqui fugimos do campo da racionalidade rasa e adentramos no terreno da ética do esporte e do doping que poucos no Brasil se atrevem a fazer. Diferente do que ocorre em outros países onde há técnicos, atletas e estudiosos dispostos a discutir essa questão em sua essência, aqui se prefere acatar as regras do jogo, ou seja, nada é possível e permitido, e por outro lado busca-se burlar essas determinações, colocando em risco, não apenas os resultados, mas a própria vida do atleta. O que quero dizer com isso é que funcionando como a Santa Inquisição que busca hereges em todos os rincões do planeta o controle anti-doping tornou o atleta um escravo de um sistema que insiste em caçá-lo, privando-o de sua liberdade de ir e vir, como qualquer outro ser humano. Não estou aqui defendendo o uso indiscriminado de substâncias ergogênicas, mas defendo sim a privacidade do atleta.

Não bastassem os scanners em aeroportos, as portas automáticas dos bancos e tantas outras formas de controle da sociedade, o passaporte biológico agora regula a vida e o corpo do atleta levando-o a ser um escravo do sistema esportivo. Curiosamente, o esporte imaginado por Pierre de Coubertin tinha potencialidade educacional e cultural do Esporte e poderia ser tomado como um agente para a paz universal e para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Óbvio que assim como o Barão podia imaginar que o esporte olímpico pudesse se transformar na potência que agora é tampouco poderia supor que os protagonistas do espetáculo esportivo também pudessem ser uma espécie de entidade biológica manipulável em laboratório.

O que resta é desejar que um pouco da proposta inicial relacionada com a educação e a cultura volte a fazer parte do processo formativo da vida do atleta para que ao invés de regular ou policiar sua existência ele possa ser um agente de transformação. Deixo aqui registrada a proposta de alguns europeus que entendem que se o desejo do ser humano é buscar limites, e que se o esporte é um desses instrumentos, que seja então criada uma competição onde não haja restrições. Ou seja, que cada um use o que bem entender para alcançar o melhor resultado. E assim, toda a discussão gerada em torno do que é proibido ou não mudaria de rumo. Da minha parte sou levada a crer que ainda que fosse liberado o uso de substâncias em uma competição esportiva específica, o desejo de uma medalha olímpica ainda é capaz de levar o incapaz a correr qualquer risco para obtê-la, afinal o herói olímpico é forjado ali e não em qualquer outra arena. Portanto, educação e esclarecimento são fundamentais para que novos escândalos ou desilusões voltem a ocorrer.

Por katiarubio
em 6-05-2012, às 20:22

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Comentários

Pois é, Kátia, minhas lembranças também remontam ao nervosismo de Munique e à grandiosidade da pequena Nadia, em Montreal. Da primeira guardo imagens nubladas enquanto da outra as fotografias são nítidas. Posso dizer que aquela visão da atleta voando entre barras e fazendo peripécias sobre traves determinou minha escolha profissional.
Quanto ao uso de substâncias ergogênicas, minha proposta -romântica, reconheço- é que não se faça uso de nada, absolutamente nada que possa mascarar o desempenho. Que princípios éticos e morais sejam suficientes para que homens se enfrentem como homens que são voltando ao purismo do bom desempenho e de resultados a partir de capacidades, habilidades e esforços humanos.
Muito bom seu texto!

Por Kátia Roiphe
em 24-05-2012, às 17:05.

O esporte foi transformado numa ação que demonstra força, poder. Não é mais uma competição onde vence o melhor. A luta para ser o primeiro leva à distorções de caráter, tão comuns entre nós, humanos.
Tudo tem piorado com a necessidade, quase doentia, de vender a imagem de um “super homem”, do infalível, do feliz sempre.
Para tentar alcançar tudo isso é que existem as drogas. Falsa são as sensações de quem vence sob efeito de anabolizantes, mas quem se importa, se o próprio não liga?

Apesar de grandes esforços, particularmente, não acredito num esporte totalmente limpo, simplesmente porque não acho natural do ser humano aceitar pacificamente uma derrota, um segundo lugar.

Não sei como não permitir o uso de anablizantes e outras drogas, mas confesso que sempre alguém vence alguma prova ou jogo, me vem à memória a imagem do Ben Jhonson e as chinesas da natação.

Por Edison Yamazaki
em 28-05-2012, às 2:14

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