Integra

O objetivo desse trabalho é, além de contar a minha história pessoal na docência de Ginástica Rítmica no Clube Escolar, mostrar ao leitor que, trabalhar o desconhecido é, além de desafiador, possível.

Quando fui convidada para lecionar Ginástica Rítmica no Clube Escolar do Engenho de Dentro, me vi numa situação inusitada. O novo pra mim sempre foi assustador, e o fato de não dominar o conteúdo que deveria lecionar, me deixava preocupada e desconfortável. A deficiente formação acadêmica a qual fui submetida, onde não me foi oferecido a Ginástica Rítmica como disciplina, hora por não haver professor para lecionar, ora por não adaptar a grade curricular ao horário oferecido, me colocou nessa difícil situação. Mas teria que decidir aceitar o desafio proposto, ou aumentar esse sentimento que me afligia: o de impotência frente ao novo. Certa vez, uma sábia mulher, que carinhosamente chamo de mãe, me falou que se não fosse para prejudicar meu aluno, não custaria nada experimentar novidades e inovações. Como sempre a vi como uma grande educadora, minha mãe é professora de matemática há 20 anos, resolvi seguir seus conselhos. Optei por aceitar esse desafio e vi nele, uma possibilidade de vencer esse medo. Precisava me informar mais sobre Ginástica Rítmica, um assunto até então desconhecido. E para que a insegurança não me dominasse, deveria criar estratégias para que as minhas aulas não se tornassem um fantasma a me perseguir.

O ser humano é movido pelos desafios, e quando ele se depara com eles, sua inteligência entra em ação. A criatividade é uma qualidade inerente ao ser humano, mas para que ela desperte, é preciso prática, e um bom motivo, que aqui, vamos chamar de necessidade/vontade. Rubem Alves, em seu livro "Conversas sobre educação", exemplifica muito bem o que estou dizendo. Ele conta que, quando era pequeno, havia uma pitangueira na casa de seu vizinho. Ele sonhava comê-las, mas elas estavam do outro lado do muro.

Para que seu sonho/vontade se realizasse, ele teria que colocar sua inteligência e criatividade para funcionar. Foi então que ele teve uma ótima idéia, de construir uma maquineta de roubar pitangas. Sua vontade o fez pensar, criar. Mas os problemas começaram a aparecer, quando ele usa somente um cabo de vassoura para fazer isso. As pitangas caiam no quintal do vizinho. Como a necessidade faz com que o homem crie e recrie, ele decidiu colocar uma lata de massa de tomate na ponta do cabo de vassoura e na lata, fez um dente para prender a pitanga. Agora sim ele tinha uma maquineta de roubar pitangas eficiente. Sua vontade foi saciada e ele comeu tantas pitangas, quanto pôde.

A partir desse exemplo, podemos observar que, a necessidade de construir uma maquineta para que sua vontade fosse saciada, fez com que ele ativasse sua inteligência criativa para solucionar aquele problema. Eu me via na mesma situação. Precisava construir uma maquineta nova, e minhas pitangas (alunas) estavam lá, esperando para que eu as levasse para o outro lado do muro. Mas como?

Se tem uma pergunta que sempre me assustou, essa era uma delas. O fato de ela nos remeter à método, metodologia, me levava a recordar uma deficiente formação acadêmica a que fui submetida, em termos pragmáticos, onde grande parte da culpa, eu mesmo assumo. E pela falta de domínio do assunto, constantemente fugia da possibilidade de discussão. Mas a necessidade me fazia pensar nisso, e era a partir dela, que eu deveria aprender e criar uma metodologia para ensinar Ginástica Rítmica, pois as minhas pitangas estavam à minha espera. Tinha que escolher um caminho a seguir, o melhor caminho para que chegasse do outro lado do muro.

Encontrei-me numa área, onde o treinamento e a aprendizagem se direcionam para o desempenho e a competição. Além disso, há expectativa da sociedade na formação de um talento esportivo em potencial, um atleta, que compete e deve sempre vencer. Há algum tempo, a Educação Física era prioritariamente utilizada, para a formação desses talentos, embora ainda hajam profissionais que acreditam nesse método de ensino, o que é uma pena.

Pensei no meu papel como educadora, e que tipo de homem eu desejo formar. No meu caso, um homem crítico e autônomo, sempre foi o meu objetivo. Para isso, sempre procurei, através das minhas aulas, transmitir-lhes valores, noções básicas, ensinar a convivência e proporcionar-lhes situações nas quais eles possam construir suas próprias maquinetas.

A direção que deveria seguir não foi uma tarefa muito difícil que resolver. Meu trabalho nunca havia sido direcionado para o desempenho, e esse, definitivamente não era um caminho que iria seguir. O fato de ter feito essa opção me tirou um dos maiores pesos e aflições que tinha. Não deveria, então, me preocupar com as técnicas mais perfeitas e apuradas de execução do ‘grand écart’, exercício de equilíbrio e flexibilidade, muito utilizado na Ginástica Rítmica, nem tampouco com os regulamentos do esporte.

O fato de não enxergar a Educação Física como mera executora e reprodutora de movimentos, me auxiliou na criação de estratégias para as primeiras aulas. Pensei no meu aluno, minha pitanguinha, e principal alvo. Decidi não me preocupar com receitas de bolo, regras, nem nada que viesse pronto e acabado, e resolvi criar meu próprio modo de ensinar Ginástica Rítmica.

A primeira providência que tomei, foi a de conhecer meu público. Antes mesmo de pensar na primeira aula, precisava saber quem eram esses alunos, quantos anos tinham e se já haviam feito Ginástica Rítmica anteriormente no Clube Escolar. A partir das informações recebidas, me deparei com o seguinte quadro: eram meninas, entre 7 e 14 anos, onde a metade já havia feito Ginástica Rítmica e a outra, não. Algumas delas, nem sequer tinham a idéia do que fosse o esporte, pois haviam sido convidadas por mim, durante as inscrições, para experimentar algo diferente. Diante desse quadro, optei por, na primeira aula, falar um pouco mais sobre o esporte em questão, sobre o curso, os objetivos e mostraria um vídeo com apresentações de Ginástica Rítmica de nível escolar e profissional. Mas observei que somente isso não seria o suficiente, pois para formar um Homem crítico e autônomo, deveria proporcionar um espaço para ele se expressar. Além disso, precisava conhecer as expectativas delas com relação ao curso, e aproveitei o espaço para levantarmos a questão ‘esporte de rendimento’, e discutirmos, após o vídeo.

Minha expectativa foi alcançada, quando, na primeira aula, percebi que as alunas estavam dispostas e animadas com a proposta por mim lançada, que era de participar da elaboração das apresentações, e ser agentes nesse processo de aprendizagem, sugerindo, criando e atuando. Surpreendi-me quando percebi o descontentamento delas com relação ao treinamento para desempenho, pois já haviam passado por essa experiência e não se adaptado.

Dentro dessa proposta, desenvolvi as demais aulas. Nas primeiras aulas práticas, procurei propor exercícios de habilidades por mim conhecidas e dominadas. Inicialmente trabalhamos a flexibilidade e o equilíbrio, aliados à movimentos da ginástica artística, como:

rolamento, vela e avião. Posteriormente, e gradativamente, foram sendo introduzidos alguns movimentos específicos da Ginástica Rítmica, como: bouclé, grand écart, além de saltos e giros. E mais adiante, acrescentamos os aparelhos utilizados nesse esporte, e disponíveis na unidade de ensino, que são: arco, bola, fita e corda.

Algumas características são mantidas, para que a aula não perca a identidade. A criatividade é uma delas, onde, procuramos nos desvincular da execução somente de movimentos já construídos e damos a oportunidade das alunas criarem seus próprios movimentos, pois, afinal de contas, cada um deles foi criado por alguém, e nada no mundo é finito e imutável. A ludicidade também está sempre presente em nossas aulas, com o objetivo de, além de proporcionar prazer a quem pratica, tornar o aprendizado mais sedutor e interessante. E como estamos tratando de uma aula que ocorre dentro de uma Instituição Escolar, não podemos esquecer que, burlar/modificar as regras já existentes, é um exercício muito prazeroso e eficiente, já que algumas delas são impossíveis de se utilizar no ambiente em questão, e acabaria por limitar o processo criativo a que o aluno está sempre aberto.

Algumas experiências foram enriquecedoras no desenvolver das aulas, onde além de mostrar à todos, que nada na vida está pronto e acabado, contribuíram para a evolução de todos os envolvidos.

As pitanguinhas estavam empolgadas para mostrar seus frutos, afinal de contas as regras oficiais da Ginástica Rítmica, anteriormente utilizadas, haviam limitado seus feitos de serem postos em prática. Elas queriam que tudo que estava sendo criado fosse aplicado em uma apresentação. Para isso, separamos um momento para que elas experimentassem o processo de criação de uma coreografia. Então, em dois momentos, nos liberamos e colocamos o nosso lado criativo para funcionar. Criamos duas coreografias, uma delas com música e a outra sem, com o objetivo de não reproduzir os movimentos característicos da própria letra. A partir daí, os questionamentos se iniciaram, pois, apesar das alunas concordarem com a proposta de libertação por mim sugerida, elas ainda estavam presas às regras que o passado havia lhes colocado como único caminho possível. O primeiro deles foi com relação à utilização de música cantada. As experiências anteriores lhes haviam mostrado que não era possível a utilização de músicas cantadas nas apresentações de Ginástica Rítmica. Aproveitando cada questionamento, discutíamos sobre as vantagens e desvantagens da utilização de música cantada, sobre a facilidade que ela proporcionava aos iniciantes, quando se trata de tempo musical, ritmo, além de outros assuntos que permeavam nosso ambiente e nossa realidade. Assim estava sendo desfeita, aos poucos, a casca de rigidez por elas incorporada. E todas as vezes que alguns desses questionamentos eram levantados, relembrávamos a nossa primeira conversa, de que seríamos criativos e utilizaríamos as regras, da maneira que nos fosse mais conveniente, a nosso favor.

E se por um lado, a rigidez das regras lhes afligiam, o processo criativo pelo qual elas estavam sempre passando, as levava às mais diferentes idéias e sugestões. Foi assim que, na nossa primeira apresentação, pudemos utilizar uma fita dupla, ou seja, duas fitas presas em um único estilete, sonho antigo de uma das alunas, que a rigidez das regras não permitiu, mas que nesse novo processo que estávamos submetidas, era mais do que possível. E ficou lindo!

Quem disse que não podia?

Obs. A autora, professora Anamaria Rodrigues da Silva Coutinho (anamariarsilva@bol.com.br) leciona na rede municipal do Rio de Janeiro e é aluna de especialização em educação física na UFF.

Referências bibliográficas

  •  Alves, Rubem (2003) Conversas sobre Educação. Campinas - SP: Ed. Verus