Integra

O objetivo do presente trabalho é analisar a atual ingerência que o sistema CONFEF/CREF’s vem promovendo nos campos da intervenção e formação profissional. Vale iniciar destacando que os defensores da regulamentação da profissão, desde antes mesmo da lei de 1o de setembro de 1998 (Lei 9696/98), apontavam que a centralidade desta regulamentação estaria no controle sobre o exercício de responsabilidade e competência jurídica profissional (STEINHILBER, 1996a), ou seja, "[...] QUEM deve ministrar, conduzir, planejar, organizar, desenvolver e orientar as atividades" (STEINHILBER, 1996b, p.44).

Não obstante o discurso dos regulamentadores, já mostrávamos preocupações com relação às várias dimensões que tal lei poderia alcançar, inclusive no campo da formação profissional, (NOZAKI, 1998), tendo em vista que percebíamos, claramente, que uma particularidade tal qual o processo de regulamentação da profissão fatalmente traria implicações na totalidade da educação física.

Outrossim, em relação ao CONFEF, ainda indagávamos "se esse Conselho terá, ele mesmo, autonomia frente às questões hegemônicas que estão se colocando no plano social, principalmente no âmbito da formação de professores" (NOZAKI, 1999a, p.166)

A ingerência do sistema CONFEF/CREF’s no âmbito da formação profissional enquanto estratégia de imposição daquele sistema perante a categoria e a sociedade se deu desde a consolidação da Lei 9696/98. O presente estudo discute duas dimensões dessa ingerência: a qualificação exigida para o trabalho dos não graduados e as influências na formação dos cursos superiores de educação física.

2. A investida aos não graduados e o caso do CREF 1

Diferentemente do discurso de apartamento dos leigos junto ao campo de atuação das atividades físicas da área não escolar, a Lei 9696/98, pelo contrário, acabou por assegurar "os que, até a data do início da vigência desta Lei, tenham comprovadamente exercido atividades próprias dos Profissionais de Educação Física, nos termos a serem estabelecidos pelo Conselho Federal de Educação Física" (BRASIL, 1998, artigo 2o, inciso III).

Como bem percebido no texto da lei, esta delegou ao Conselho Federal apenas a forma da comprovação do exercício de atividades próprias dos profissionais de educação física. Não obstante, o que o CONFEF estabeleceu, via resolução 013/99, de outubro de 1999, além da tal forma, foi: a) a categoria (diferenciada) de registro dos não graduados denominada transitória e com validade de um ano, que depois foi modificada para PROVISIONADO, de caráter definitivo, a partir da resolução 045/02 de fevereiro de 2002; b) a necessidade de comprovação do exercício das atividades por um prazo não inferior a três anos até a data início da vigência da lei; c) a indicação do não graduado de uma atividade principal, com a modalidade e a especificidade explícitas que constariam na carteira de habilitação profissional fornecida pelo CREF; d) a necessidade de freqüência, com aproveitamento, em curso promovido pelo CREF, depois denominado de Programa de Instrução a partir da 045/02, que incluíssem questões pedagógicas, ético-profissionais e científicas, onde os CREFs baixariam as normas e levariam a efeito os cursos, seguindo as diretrizes emanadas do CONFEF (CONFEF, 1999, 2002a).

Como visto, as resoluções 013/99 e 045/02 extrapolam o poder legal que a 9696/98 conferiu para este caso ao CONFEF, e por outro lado, o referido Conselho criou a demanda para qualificação dos não graduados, demanda esta destinada aos próprios CREF’s. Aqui a investida se mostrou em caráter duplo: na cooptação dos não graduados para a filiação no Conselho, e no controle da qualificação deste trabalhador para continuar atuando em uma área da qual já era especialista. O absurdo foi que os CREF’s começaram a promover cursos chancelados por empresas privadas e ligadas a eles, que cobravam matrícula e mensalidades. O caso do CREF 1 (ES e RJ) é singular. A obrigatoriedade dos não graduados em participar do Programa de Instrução, ministrado em primeira instância, enquanto projeto experimental, pela empresa Sprint Assessoria e Promoções e Relações Públicas S.A., de propriedade do presidente do CREF 1, mas não só isso, a própria exigência dos trabalhadores (professores, instrutores, técnicos, mestres...) do campo da dança, da ioga, das marciais, da capoeira, à inscrição no Conselho geraram, em março de 2002, uma Ação Civil Pública expedida pelo Ministério Público Federal, representado pela Procuradoria da República do Rio de Janeiro, como constam naquele documento (RIO DE JANEIRO, 2002).

Para a Procuradoria, a exigência de curso de nivelamento (Programa de Instrução) esbarra na impossibilidade de atos internos ao Conselho criarem tal exigência, que deveria estar expressa na lei federal:

"Logo, ante o princípio da legalidade, novo requisito somente poderia ser criado por lei, de modo que não poderia o Conselho Federal exigir, por resolução, para a realização da inscrição definitiva nos Conselhos Regionais, a freqüência a curso de nivelamento, como fez no mencionado art. 7º, da Resolução 013/00 (f.13), desbordando pois, dos limites legais. Esta exigência também contraria o inciso XIII, do art. 5º, ou seja, as limitações a qualquer direito fundamental devem estar expressas em leis federais" (ibid. p.8).

Para além da ilegalidade da obrigatoriedade do não graduado em se qualificar a partir do Programa de Instrução, a Procuradoria também contesta o enquadramento daqueles que ministram atividades no campo da dança, da ioga, das artes marciais e da capoeira ao CREF 1. Chama a atenção, por outro lado, de que a Lei 9696/98 não indicou quantos e quais seriam as áreas de atuação da educação física, e que aquelas atividades não pertenceriam aos seus quadros. Argumenta que a Constituição Federal prevê, no seu artigo 215, o dever do Estado em proteger as manifestações culturais, esclarecendo, no artigo 216, que constituem patrimônio cultural brasileiro as formas de expressão relativas à identidade, ação e memória dos grupos formadores da sociedade brasileira, o que justifica o não enquadramento da dança bem como a capoeira enquanto integrante da cultura brasileira, mas também várias modalidades de artes marciais, e também a ioga, que foram trazidas para o Brasil por imigrantes orientais, "fazendo parte indissociável da cultura nacional" (ibid., p.11). Aliás, a Ação Civil aproxima-se de nossa concepção (FARIA JUNIOR, et.al., 1996) quando ressalta que o professor de artes marciais - bem como o de ioga - deve transmitir conhecimentos que não são oferecidos nos cursos superiores de educação física, porque suas atividades possuem códigos culturais e filosóficos próprios, e que portanto, o CREF 1 não pode exigir a inscrição daqueles trabalhadores.

Ainda para a Procuradoria, nem mesmo a cobrança das anuidades para qualquer inscrito possui fundamento legal, já que a lei não confere ao CREF 1 o poder para exigir qualquer anuidade ou valor aos inscritos em seu quadro, lembrando que:

"já exist[em] várias decisões judiciais considerando que as anuidades pagas aos conselhos profissionais têm natureza jurídica de taxa, sujeitando-se, portanto, ao respectivo regime legal, especialmente ao princípio da legalidade, vale[ndo] dizer [que]: não há taxa sem prévia e expressa previsão em lei" (ibid., p.12,13).

3. A investida na formação superior em educação física

Se por um lado, o sistema CONFEF/CREF’s avançou na tentativa de ingerência de áreas que não são exclusivas da educação física, e do controle da qualificação dos ditos trabalhadores não graduados, por outro, também tentou, desde sua criação, dar o tom para a formação superior em educação física, participando e criando fóruns nacionais e regionais para a construção de políticas nessa área, e se auto-denominando como entidade representativa da categoria para esta questão. Mais recentemente, com a homologação das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Educação Física (BRASIL, 2002) percebemos a clara influência que o CONFEF exerceu, intimamente ligada, por sua vez, aos projetos dominantes de formação humana na contemporaneidade.

A evidência mais concreta de que para o CONFEF a preocupação central era delimitar, cartorialmente, a intervenção do profissional de educação física, e que esta avança, por sua vez, na própria delimitação do perfil deste trabalhador, ou seja, na sua formação, é a sua Resolução 046/02, que discorre sobre os campos de atuação do profissional, e define a sua capacitação, competências e atribuições necessárias. Incorre na mesma perspectiva corporativista de ingerência de áreas não exclusivas da educação física já anteriormente discutidas e numa perspectiva terceirizadora da mesma, quando define, em seu artigo 1o que "o profissional de educação física é especialista em atividades físicas nas suas diversas manifestações [...] tendo como propósito prestar serviços que favoreçam o desenvolvimento da educação e da saúde" (ibid., p.2,3). Esta resolução, construída através do Fórum Nacional dos Cursos de Formação Profissional em Educação Física, promovido pelo CONFEF, e de alguns Fóruns Regionais, organizados pelos CREF’s, permanece sem aclarar o entendimento do que é educação física na medida em que coloca os diferentes significados que este termo possa vir a ter (atividades físicas, desportivas, profissão, componente curricular obrigatório, área de estudo, etc.), e promove detalhamento sobre a intervenção, o exercício, os meios e os locais da intervenção profissional.

Contudo, é quando discorre sobre a capacitação profissional e as especificidades da intervenção profissional, que tal resolução demonstra grande influência sobre as Diretrizes Curriculares, mas também uma grande comunhão teórica e formulativa com estas últimas. De fato, como nos mostra o texto (CONFEF, 2002b), sua gênese vem do próprio processo de construção das Diretrizes Curriculares, pois seria "impossível estabelecer uma formação fundamentada nos princípios de qualidade, competência e ética, sem a identificação para qual Intervenção Profissional se destina essa preparação" (p.3).

Passemos, portanto, para a análise das Diretrizes Curriculares para a Graduação em Educação Física, entendendo-a como um documento muito permeado e em estrita coadunância com a Resolução 046/02 do CONFEF. O objetivo aqui é atentar para a pertinência das Diretrizes ao projeto de formação do trabalhador de novo tipo exigido pelo capital, e o enquadramento da formação em educação física nesse contexto. Inicialmente ressaltamos que em outra análise apontávamos que a educação física não se coloca centralmente, enquanto disciplina escolar, para o projeto de formação das competências (NOZAKI, 1999b). Contudo, é fácil argumentar que um documento que pretende fornecer parâmetros para a formação profissional sob o ponto de vista de um projeto dominante, seja em qualquer área, deve obedecer aos pressupostos mais gerais dessa formação.

Senão vejamos. O modelo das competências, baseado na formação do trabalhador para as novas formas de organização para o trabalho flexível, polivalente, que valoriza os atributos cognitivos e atitudinais já tem sido alvo de estudos na área da educação (ANDRADE, 1996; BRUNO, 1996, FRIGOTTO, 1995; MACHADO, 1994; MANFREDI, 1998, RAMOS, 2001). As Diretrizes da Educação Física acompanham as demais diretrizes desse tipo na perspectiva da formação de competências quando ressalta, em seu objetivo: "levar os alunos dos cursos de graduação em saúde a aprender a aprender, que engloba, aprender a ser, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a conhecer" (BRASIL, op.cit., p.3), bem como quando elege como competências gerais a tomada de decisões, comunicação, liderança, planejamento, supervisão e gerenciamento.

Não obstante o caráter geral do enquadramento das Diretrizes Curriculares no projeto dominante de formação humana, esta também se articula sob o caráter específico da educação física, agora sob o julgo das formulações do CONFEF. Tal orientação que por vezes se torna difícil de se identificar, visto que se utiliza de termos conceituais de várias matrizes (atividade física, motricidade humana, movimento humano) se aclara quando não consegue diferenciar os objetivos da educação (na escola) e da saúde (fora dela), subordinando a primeira à segunda, na defesa do pressuposto da promoção de estilos de vida saudáveis. Este tipo de formulação além de não compreender que a questão da saúde não se promove por meio de estilos de vida, visto que este é puramente superficial, apóia-se na perspectiva da educação para o tempo livre como forma de recomposição do trabalho.

4. Conclusão

O sistema CONFEF/CREF vem ingerindo na formação profissional da educação física, que media, por sua vez, a própria orientação da área. Além dessa dimensão, ressalte-se a propagação ideológica desse processo. Portanto, combater o centro hegemônico da educação física hoje passa pela revogação da Lei 9696/98 como perspectiva estratégica de luta dos setores progressistas.

Obs. O autor, professor Ms. Hajime Takeuchi Nozaki é professor assistente do Dep. Desportos da FAEFID/UFJF e aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação - UFF


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