Integra

          Quando comecei a estudar a trajetória dos atletas olímpicos brasileiros tive como referência os medalhistas. Isso porque vários deles despontavam espontaneamente no discurso da nova geração como inspiração na busca da identidade do ser atleta. Pouco a pouco percebi que dentre os medalhistas havia aqueles que não consideravam as suas medalhas como um símbolo de mérito. Logicamente isso acontecia com quem havia conquistado uma medalha de prata ou de bronze. O ouro é incontestável! Afinal, é sobre quem ocupa esse lugar que se dirigem as luzes concretas e simbólicas da vitória.

           E aqui chegamos a uma encruzilhada que não está relacionada apenas ao esporte, mas a todas as atividades que envolvem competição. Houve atletas que ressignificassem o metal das medalhas de segundo e terceiro lugares conferindo-lhes 24 quilates, mesmo sem ser ouro. Isso porque o processo de conquista dessa posição tinha um significado pessoal que não acompanhava a narrativa social sobre a derrota.

A derrota está para o esporte como a sombra social que paira sobre aquilo que é refutado em um mundo produtivista como a tristeza, a depressão, o recolhimento, a quietude, o silêncio e outras formas de subjetivação que fogem ao frenesi. Como prática discursiva, a derrota é acompanhada de adjetivações que remetem àquilo que deve ser refutado, impedido ou mesmo negado, uma vez que nenhum atleta treina e compete com a intenção de perder. Some-se ao foco pessoal de quem busca por um resultado favorável, o desejo coletivo de torcedores, patrocinadores e grupos identitários em torno de quem compete.  O esporte atual é produto de uma sociedade pautada em valores associados diretamente a resultados mensuráveis a partir de categorias que valorizam o vencedor, por competências que afirmam o mérito como valor máximo do produtivismo.

Considerando que no universo esportivo o número de derrotados é infinitamente maior do que o de vitoriosos dediquei parte da minha energia de pesquisa a compreender as razões que levavam à negação de uma possibilidade tão presente e real na vida de quem se dedica a competir.

Em um primeiro momento, observei como a agonística, valor fundante da competição esportiva, representada na superação dos limites do atleta que permite a transcendência da finitude por meio da conquista de uma marca até então inalcançável, se relaciona com a valorização da vitória, renegando a derrota como uma possibilidade do competir. A razão de ser de uma prática pautada na agonística, na busca dos limites de um corpo falível cuja fronteira é a própria humanidade, desloca-se da superação das impossibilidades pessoais para a luta contra quem coloca em risco a busca de um desejo nem sempre pautado no próprio desejo, mas na necessidade de um sistema organizado e constituído para lucrar com um resultado positivo.

A condição implícita nessa discussão recai sobre aquilo que acontece com todos os demais atletas que não alcançam esse resultado. Relegados aos degraus menos nobres do pódio, ou pior ainda, distante da possibilidade de usufruir das luzes que iluminam quem nele sobe, aos derrotados restam as sombras da ignorância e do esquecimento, afinal, a derrota é o contraponto imaginário noturno de realizações não menos dignas de registro e análise.

Em trabalhos mais recentes busquei categorizar as diferentes representações da derrota. Isso vale não apenas para redimensionar um dado objetivo da competição esportiva, como também para auxiliar os atletas que vivem esse resultado como uma condição para o qual não foram preparados a lidar.

- A derrota por falta de mérito: quando não se chegou ao nível adequado para o enfrentamento daquela competição em específico.

- A derrota pelo mérito do adversário: quando se utiliza todos os recursos na competição, mas o adversário é reconhecidamente superior,

- A derrota para o imponderável: quando fatores externos à competição interferem no resultado, independentemente do mérito de quem compete. Entram aqui as questões políticas e institucionais, erros de arbitragem, atitudes anti-esportivas, doping.

As competições de futebol dos últimos dias exemplificam cada uma dessas formas de derrota e apontam para a complexidade do fenômeno esportivo. Mais do que uma simples competição, o esporte clama pela reflexão de suas representações. É muito mais do que 22 pessoas buscando superar a defesa de um espaço na busca da colocação de um objeto em uma meta nada metafórica. Nesse jogo de idas e vindas estão esboçados interesses pessoais e coletivos marcados pelo presente e pelo passado.

Quando se trata de times nacionais um encontro entre seleções faz aflorar as marcas políticas do passado que envolve colonialismo, dominação, exploração, subordinação e, por que não, genocídio. E ali, em um campo gramado, cercado por milhares de espectadores, com a bola rolando durante 90 minutos, ou um pouco mais, se desenha as diferentes dimensões da derrota.

Perder na fase de classificação pode parecer normal a quem ainda não alcançou o nível dos grandes times. Afirma-se assim a derrota pelo mérito do adversário. Surpresa é ver times campeões do passado se despedindo antes mesmo de chegar aos confrontos diretos. É a derrota por falta de mérito (ou seria para o imponderável?). E, com a entrada de equipamentos para afirmar resultados há quem tenha saído da competição, ou permanecido nela, mesmo diante das evidências da tecnologia.

Mas, o mais importante que vejo nessa Copa do Mundo é a vitória, e não a derrota, de quem era considerado coadjuvante do espetáculo, ainda que para se chegar a ele tenha sido preciso se classificar diante de outros iguais. Assistir à desclassificação daqueles que se autodefinem como a referência da excelência esportiva, justamente por nações historicamente subordinadas pelo uso da força, prova que o esporte é muito mais do que um jogo, ou melhor, que o esporte é um jogo que não se desvincula da política.

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